Dia Nacional da Comunidade Muçulmana no Brasil e o enfrentamento da Islamofobia

Por Divulgação/GRACIAS

Por Francirosy Campos Barbosa

Desde 1998 venho estudando comunidades muçulmanas em São Paulo, estudos esses que se expandiram para outras cidades, estados e países. São 26 anos de pesquisa em 2024. Nesses anos de campo além dos cotidianos permeados por aprendizados de rituais, leituras, convivência diária, pude acompanhar momentos de muita tensão e sofrimento para os muçulmanos. Esses eventos gatilhos (11 de Setembro de 2001, Charlie Hebdo 2015, Palestina 2014, 2018, 2023 entre outros) quase sempre acarretaram violências, por desconhecimento de valores e práticas islâmicas.

O Islam no Brasil ainda é associado a árabes, e não a asiáticos, africanos e brasileiros. Os comentários que muitas mulheres ouvem é: “você é de lá?”; “Volta para o seu país!”. Quase sempre carregados de estereótipos e desvalorização de árabes e muçulmanos. Em 2020 resolvi estudar o fenômeno sobre Islamofobia no Brasil, pesquisa que vinha sendo desenvolvida por Felipe Freitas de Souza membro do GRACIAS (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes), grupo a qual coordeno. Somamos nossas pesquisas a fim de que pudéssemos dar uma devolutiva à comunidade islâmica e à comunidade em geral sobre o que os muçulmanos falam sobre Islamofobia. O trabalho de enfrentamento à Islamofobia gerou dois relatórios em 2022 1e 20232.

O mês de janeiro traz duas dadas importantes que devemos sempre refletir sobre o fato de vivermos em um país laico, e isso implica que todas formas de religiosidades importam e devem ser respeitadas. Em 21 de Janeiro celebramos o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa no Brasil, Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007. A data foi escolhida, porque neste dia ocorreu o falecimento da Iyalorixá Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum (BA), mais uma vítima de intolerância por ser praticante de religião de matriz africana. Mãe Gilda teve sua casa atacada, e veio a sofrer um infarto. Infelizmente sua história não é a única no Brasil, nem mesmo após a lei e tantas outras que buscam proteger os povos de matrizes africanas. Os brasileiros seguem intolerantes. O dia 24 de janeiro é outra data importante do nosso calendário – Dia Nacional da Comunidade Muçulmana no Brasil (PROJETO DE LEI N.º 10.941-A, DE 2018 (Do deputado Vicentinho do PT).

Qual é a relação dos muçulmanos com o 24 de janeiro? Essa é data que marca a Revolução do Malês – Revolta de muçulmanos africanos escravizados de 1835, data essa que no período remonta ao mês do Ramadan (do ano 1250 no calendário islâmico), foi na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835 que eles se rebelaram contra a escravidão que viviam. A escravidão e o racismo são proibidos no Islam. Os negros malês (muçulmanos) escravizados no Brasil sabiam disso. Não há distinção entre um crente branco e um negro muçulmano, e a escravidão é proibida a partir do advento do Islam. Comemorar a Comunidade Muçulmana no Brasil neste dia, é retomar a história dos primeiros que aqui chegaram – os africanos muçulmanos – e sua resistência

A intolerância religiosa entre religiões afro-brasileira e islâmica se entrelaçam em profundidade quando nos deparamos com essas duas datas. A violência escravagista permanece entre nós. Os senhores de engenhos continuam a empunhar seus chicotes e suas armas. Mudam-se as vestimentas, os hábitos, mas a intolerância religiosa, o racismo, o preconceito permanece. No Brasil devemos falar sempre do racismo que mata, da xenofobia e islamofobia que humilha, exclui adeptos de outras religiões que não sejam as predominantes.

Nos últimos meses por causa da situação vivenciada por Palestinos desde 1948, vimos crescer a Islamofobia como aponta o nosso II Relatório. É urgente retomar a formação de pessoas sobre a História de povos árabes, africanos, asiáticos que professam o Islam e espelhar na nossa comunidade islâmica no Brasil que apresenta nos dias de hoje uma pluralidade ímpar formada por estrangeiros de várias nacionalidades e brasileiros.

Cabe consultar a tese recentemente defendida de Ashjan Sadique Adi3 sob minha orientação: “Os discursos sobre árabes e muçulmanos…”; assim como o livro “Judaismo, Cristianismo e Islam” (Editora Vozes, 2023) em atenção a parte do Islam escrita por mim e por Atilla Kus (doutorando em Ciências da Religião/PUC), para compreensão da Revolta dos Malês cabe consulta o documentário que realizei em 2015: “Allah, Oxalá na trilha Malê”4.

A intolerância religiosa, a islamofobia, a violência contra povos de matriz africana, só cessarão por meio da produção do conhecimento. É preciso difundir ainda mais a produção de intelectuais negros-as-es, de pessoas que estudem temas transversais. A lei 10.639 precisa se tornar uma realidade no nosso país. O enfrentamento a toda e qualquer discriminação religiosa deve ser realizada por todo cidadão brasileiro, nossas fronteiras devem ser da boa convivência e respeito. No Alcorão (2:256) a citação “não há compulsão na religião” já proíbe o muçulmano de impor sua religião, mas é preciso que a comunidade seja respeitada e acolhida, seja como migrante, seja como brasileiro.

Francirosy Campos Barbosa é antropóloga, docente associada ao departamento de psicologia da FFCLRP/USP, e dos Programas de Pós em Psicologia (FFCLRP) e de PPGAS (FFLCH), coordenadora do GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes, pós-doutora pela Universidade de Oxford.

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