Por Claudia Weinman, para Desacato. info.
O município é Mafra, no planalto norte do estado de Santa Catarina. Vivem, em área central da cidade, próximos da rodoviária, 12 famílias Kaingang, com mais de 40 pessoas. O espaço físico é de pouca estrutura, como é a realidade de vários povos indígenas em contexto urbano no território brasileiro. Para se ter uma ideia, no ano passado, a maior denúncia dos Kaingang de Mafra foi com relação a água contaminada, resgatada de um rio poluído que cerca os fundos do acampamento Ven Kanér, utilizada especialmente para banho. Para beber e fazer comida, os indígenas a buscavam em uma torneira da rodoviária, porém, com a pandemia, o risco de contaminação pela covid-19, deixou a comunidade ainda mais vulnerável.
Sadraque Corrêa Garcia, cacique do acampamento Ven Kanér de Mafra, traz um relato de que desde 1984 já existia uma família indígena residindo no município, nesse acampamento. “O meu cunhado, Mauro da Silva, que é o vice-cacique hoje. Ele, sua esposa e filhos já viviam e são naturais daqui. Todos os anos as famílias indígenas vinham para cá para vender seus artesanatos e passar suas temporadas aqui, inclusive, têm as famílias que já são permanentes. Depois veio a minha mãe, minha família morar para Mafra, na época eu tinha dois anos. Meu irmão mais velho vive aqui, é casado, minha irmã, a Giselle Garcia, que faz mais de 30 anos que mora aqui, têm filhos e filhas que são naturais de Mafra. Viviam no acampamento lidando com artesanato”.
Em conversa com um dos membros do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, do regional Sul, Jacson Lopes Santana, ele detalha sobre a saída dos indígenas Kaingang de Chapecó que passaram a ocupar a região de Mafra, por ser um local de maior aproximação com o litoral catarinense, o que facilitava a venda do artesanato, um dos principais instrumentos de sobrevivência. “Há mais de trinta anos um grupo de Kaingang que estava acampado aos fundos do cemitério, no centro da cidade de Chapecó, [a Oeste do estado catarinense], migrava rumo ao litoral para a venda do artesanato. Passando por Mafra, resolveram acampar perto da rodoviária, era para simplesmente realizar a venda do artesanato, uma passagem pela cidade. Ali, começaram a ouvir de outros parentes, que a região era morada antiga dos Kaingang, sendo assim, firmaram nesse lugar um espaço de resistência. E nesta busca pela sobrevivência, começaram a sofrer ameaças por pessoas que representam os poderes locais e que diziam para voltarem ao lugar de onde saíram”.
As ameaças
O cacique Sadraque disse que a área onde estavam havia sido embargada pelo MPF e prefeitura de Mafra. “Havia uma ordem de despejo das famílias aqui do acampamento indígena. Mas aí fui lá, marquei reunião com o Juiz e perguntei o porquê ele queria fazer esse embargo porque há muitos anos eles já ocupavam essa área. Então pedi ao Juiz que ele não fizesse essa ordem de despejo pois, pelo tempo que minha família já estava ocupando a área, tinham direito ou poderiam trocar por causa do tempo que ocupavam a área”.
Jacson explicou, também, que historicamente houve pressão do poder público e da sociedade de Mafra para a “retirada” dos indígenas da área central. “Quando houve a pressão para saírem, eles foram até o MPF e Funai para encontrar uma solução, de pelo menos terem um espaço próximo para viverem com dignidade. Então tiveram algumas propostas, uma que ficava aproximadamente dez quilômetros longe, outras um pouco mais e uma das sugestões era uma área do exército, porém, essa era uma área complicada por ser distante da cidade, o que dificultava o acesso a outras questões importantes, como a venda do artesanato”.
Entre conversas, reuniões e pressões, seguiram-se os últimos três anos. Em meados de 2020 o Conselho Indigenista Missionário junto com a Pastoral Indigenista de Joinville, passou a acompanhar o andamento desse processo. No mês de agosto uma nova reunião aconteceu para refletirem sobre a situação junto aos Kaingang. “Elencamos quais eram as necessidades e eles falavam que diante dessa situação, ameaças, tentariam resistir de outra forma. Então decidiram ficar nesse espaço mais centralizado e a partir daquele momento elencaram-se algumas demandas para se ter um espaço mais adequado”, disse.
A luta por água potável, energia elétrica e estrutura de casas
Água potável, atendimento de saúde pela Sesai, luz, estruturação de algumas casas. Essas foram algumas das reivindicações que os Kaingang fizeram para o MPF em outubro. Naquele momento, segundo Jacson, o MPF pontuou junto aos representantes da Sesai, Funai e prefeitura, que os indígenas não deveriam sofrer intimidações no local e que a estrutura solicitada deveria ser encaminhada. “O MPF disse que garantiria a segurança deles no local. Isso foi determinante, pois não adiantaria ter um local com estrutura mínima se a prefeitura continuasse pressionando a saída deles”, enfatizou.
Mauro da Silva, o vice-cacique, celebrou a chegada de caixas d’água e a execução daquelas condições mínimas para a sobrevivência do ser humano. “Um presente de natal essa água potável, estamos muito agradecidos. Estou muito feliz, foi bem pertinho do natal e as crianças também estão tomando um “bainho” no chuveirinho, água potável, água limpa. É o que nós queríamos. Estamos fazendo as casas também, estamos contentes”, disse.
O cacique Sadraque também sente o alívio, embora compreenda que a luta continua viva na comunidade. “As famílias lavavam suas roupas e cobertas no rio poluído. Tomavam banho nesse rio. Era muito precária a situação das famílias que sofriam no inverno, as mães sofriam muito, a água trazia alergias, feridas. Não tinha outro meio de ter acesso a água. Hoje temos uma água boa, fizemos uma torre, em parceria com a Sesai, Casan, construíram uma torre e colocaram a caixa d’água. Agora cada casa que sair terá uma água boa, potável para cada família. A água é tudo”, acrescentou.
O indígena Marcelo Garcia, que hoje reside fora da comunidade, mas que acompanha todo o processo de luta junto aos Kaingang, também relatou sobre a situação vivenciada pelas famílias. “Acompanhei o sofrimento dos parentes de perto. Sempre trabalhei nas empresas. Sempre pediram porque não vim morar com eles, eu moro em casa alugada. A situação era muito difícil, tomavam banho no rio, no frio, vi agora o desenvolvimento deles, correram atrás, procurando ajuda. As crianças estão tomando banho todos os dias, não vão estar embaixo de sujeira. A luta pela instalação de luz é também para que as crianças possam estudar, com internet, a escola pede estudo pela internet. Muitos não conseguiram acompanhar. O passo maior é instalação de luz também”, reforçou.
O vice-cacique, Mauro da Silva, finalizou dizendo: “Agora nós vamos ter um lugar adequado, lugar digno, e assim vamos à luta, ela nunca vai parar. Não é só aqui a situação indígena, mas no Brasil inteiro”.
A luta da comunidade vai garantir a construção das 15 casas no local, além de uma horta comunitária e luz. Durante a pandemia as crianças não tiverem acesso à energia elétrica, menos ainda à internet e as atividades da escola.
_
Leia mais:
Falta água potável no acampamento Kaingang de Mafra/SC. Assista!
Falta água potável no acampamento Kaingang de Mafra/SC. Assista!
Ven kanér e a resistência Kaingang. Por Jacson Santana.