Por Elissandro Santana, para Desacato. info.
“O conceito de Racismo Institucional foi definido pelos ativistas integrantes do grupo Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton, em 1967, para especificar como se manifesta o racismo nas estruturas de organização da sociedade e nas instituições”.[1] No Brasil, esse fenômeno é uma praga naturalizada e afeta a vida de nossos irmãos negros historicamente massacrados pela arquitetura mental colonial institucional-societária. Diante de algo tão grave, precisamos falar sobre a questão enfrentando-a abertamente, com resistência e sem medo, por isso, esta entrevista com Verônica de Souza, tertúlia necessária e profunda com esta que é uma das intelectuais mais atuantes em Porto Seguro e, consequentemente, no Extremo Sul Baiano, no tangente às questões sobre racismo e escrita negra, desponta como uma contribuição na luta contra esse mal que nos corrói desde os primeiros processos de formação de nacionalidade. Enfim, caro/a leitor/a, eu espero, de coração, que esta entrevista sentida, de ambos os lados, do meu e, principalmente, da entrevistada, intelectual que tanto aprecio e respeito, sirva de reflexão e resistência!
Elissandro Santana: há meses esboço uma entrevista sobre Racismo Institucional com a Senhora e me sinto honrado por haver aceitado o convite, mas antes de qualquer questionamento nessa vertente, peço-lhe que se apresente para que o público do Desacato a conheça, caso ainda não tenha tido contato com a sua produção intelectual e frentes de atuação.
Verônica de Souza: Eu me chamo Verônica de Souza Santos. Sou mãe do João Victor e da Flor de Maria. Tenho um companheiro há oito anos, pai dos meus filhos, que se chama Luís. Sou professora da rede federal, lotada no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – Campus Porto Seguro, para onde fiz concurso e sou servidora desde 2012. Sou estudante de doutorado do Programa de Pós-graduação em Língua e Cultura da Universidade Federal da Bahia, na linha de pesquisa dos Estudos da História da Cultura Escrita. Minha pesquisa está pautada nos manuscritos de Carolina Maria de Jesus, mais especificamente em seu Quarto de Despejo. Atualmente, sou membro-presidente do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Porto Seguro. Também, membro do Conselho Municipal de Cultura de Porto Seguro, no setor de literatura, pela Academia de Letras de Porto Seguro, da qual sou membro-fundadora. Integro também a Academia de Letras do Brasil, seccional Sul e Extremo Sul da Bahia. E, por fim, mas não menos importante, faço parte da ONG Universal Zulu Nation, nomeada Zulu Queen, pelo Afrika Bambaataa, personalidade muito conhecida no Movimento Cultural Hip Hop. Meus interesses de pesquisa estão relacionados às questões envolvendo as mulheres negras, os povos negros, a periferia, a língua e literatura, o movimento cultural hip hop e elementos outros envolvendo as maiorias minorizadas.
Elissandro Santana: pesquiso e escrevo sobre Racismo Ambiental há anos, mas, hoje, em especial, o meu interesse se dá em torno do Racismo Institucional, problema histórico recorrente em várias organizações, inclusive, na escola e nas universidades, o que é um contrassenso, dado que nestes espaços este é um ponto que já deveria ter sido resolvido.
Acerca da questão, poderia nos dizer se como professora e mulher negra vivencia esta faceta colonial tacanha?
Verônica de Souza: É importante que eu inicie esta conversa agradecendo este convite e destacando que falar desta questão é ainda muito difícil para mim. Isto porque suas práticas são de uma complexidade e uma sofisticação sem igual que falar sobre o assunto é importante para pensarmos no combate, doloroso para tratar e buscar uma possível cura e espinhoso por conta, como já disse, da sofisticação que testa por diversas ocasiões a sanidade dos nossos atos e, muitas vezes, até a nossa sanidade mental. Para uma mulher negra que vive numa sociedade como a brasileira e que se reconhece como tal é impossível não vivenciar tal prática. Infelizmente, os racismos não escolhem lugar para ocorrerem. E, sabendo de como se trata de um mecanismo sofisticado em qualquer de suas tipologias, o racismo não escapa aos estabelecimentos de ensino, sejam eles as escolas ou as universidades. Ao contrário, temos estes espaços como ambientes altamente excludentes e direcionados a práticas cada dia menos veladas. Costumo dizer que vivemos num país racista “que tem que ter certeza de que não é racista”, mas mais do que isso: nos últimos anos, as pessoas, ainda que tenhamos combatido fortemente as práticas de tentar nos inferiorizar, de silenciamentos, de anulação, os nossos algozes, têm perdido o medo de nos atacar, de demonstrar incômodos, de não nos aceitar nos espaços. Ou seja, a cada dia temos visto até mesmo pessoas que se dizem ativistas sociais atentando contra nossa tentativa de sobrevivência.
Elissandro Santana: o Racismo Institucional é uma “(…) falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica”[2]. Com base nesse campo conceitual e em sua empiria enquanto cidadã e profissional, esta situação é uma realidade?
Verônica de Souza: Mais do que isso… o racismo, como eu já disse, é muito bem aparelhado… de tal maneira que fornece elementos para a forma de desigualdade e violência que moldam a nossa vida diariamente. E o racismo institucional é, talvez, ainda mais profundo, porque ele é camuflado… Como seria isso? Hoje em dia as pessoas, cada vez menos, têm conseguido disfarçar suas práticas racistas. E como eles tentam reverter a situação? Nos expondo… Transferindo para nós a culpa pelas desigualdades, pelas diferenças e assim colocam à prova nossa sanidade mental, desmerecem nossa capacidade intelectual. Diante disso, nos vemos diariamente tentando provar nossas competências. Isso sem falar que retrucar os desmandos racistas nos dá o título de vitimistas, mimizeiros e raivosos, ocasionando o medo de revelar tais práticas. Esse silenciamento, essa tentativa de subverter a situação é o que tem nos matado de muitas outras maneiras diariamente. Como se não já bastasse um sistema que nos mata fisicamente todos os dias, há projetos institucionais, estruturais e pessoas que nos anulam diariamente. Didaticamente, pensemos nos principais e mais legitimados cargos institucionais ocupados, quase sempre estamos falando de um indivíduo tipo padrão, isto é, branco, homem (quase sempre), hétero-normativo. Quando não, se trata de uma mulher, porém, branca e também hétero-normativa. Os cargos já têm um padrão da “boa aparência”. E esta boa aparência está associada a características fenotípicas de pessoas brancas, que são pessoas que usufruem de condições construídas por uma sociedade que se organiza a partir de normas e padrões que prejudicam as pessoas negras.
Elissandro Santana: poderia descrever, a partir de exemplos, ou da forma discursiva como desejar, se já sofreu racismo institucional por ser uma intelectual negra ao longo de sua empiria profissional?
Verônica de Souza: Como não? Por diversas vezes… Primeiramente, gosto de ressaltar que minha trajetória de militância ainda está na idade infantil, mas idosa nas experimentações, diria eu, nada palatáveis… Eu gosto de exemplificar o racismo institucional com uma passagem de dois autores: Charles Hamilton e Kwame Ture. Arrisco-me a dizer que eles tenham sido os primeiros a tratar o adjetivo institucional para se referir ao racismo num livro intitulado “Black power: politics of liberation in America”. Conheci este texto a partir do livro do jurista Silvio Almeida. O exemplo é, a meu ver, bem adequado para falar de racismo institucional. Até porque se trata de uma prática menos evidente, menos perceptível que o racismo individual. Diz assim: “Quando terroristas brancos bombardeiam uma igreja negra e matam cinco crianças negras isso é racismo individual, muito deplorado pela maioria dos segmentos da sociedade. Mas quando nessa mesma cidade, no Alabama, quinhentos bebês negros morrem a cada ano por falta de comida adequada, abrigos, instalações médicas e outros milhares são destruídos e mutilados fisicamente, emocionalmente, intelectualmente por causa das condições de pobreza e discriminação, na comunidade negra, estamos falando de racismo institucional. Quando uma família negra se muda para uma casa num bairro branco e é apedrejada, queimada ou expulsa eles são vítimas de um manifesto de racismo individual que muitos condenarão, nem que seja em palavras. Mas é o racismo institucional que mantém os negros presos em favelas dilapidadas, sujeitas às presas diárias de favelados exploradores, mercadores, agiotas e outros agentes discriminatórios”. Aí você me questiona: “Verônica, você já sofreu racismo institucional?”. Quando uma mulher negra começa a retrucar o racismo individual dentro de um espaço institucional ela já está vivenciando, muitas vezes, o racismo institucional e estrutural, que deixemos claro, são conceitualmente distintos. Sofrer o racismo institucional é não ter colaboradores para debater uma questão que acomete o seu povo, sofrer racismo institucional é ser tratada como barulhenta, brigona quando se levanta as condições adversas a que está submetida, são os silenciamentos para que “eles” não sejam desafiados, é observar que existe uma estrutura que não te dá direito de voz, em uma instituição que ainda peca por não acolher aos seus. E é aí que o racismo institucional é difícil de ser identificado porque ele se camufla como um racismo individual e isso se torna um problema de uma pessoa só ou de um pequeno grupo…
Elissandro Santana: caso seja viável, discorra sobre a forma como o Racismo Institucional impacta em sua vida profissional e na rotina da população negra em todo o país no âmbito das organizações.
Verônica de Souza: Observe… Na unidade em que eu trabalho, identifico cinco professoras negras hoje. Não posso falar com propriedade se elas debatem o assunto com aspectos de luta ou de militância ou de ativismo porque, além de sermos de áreas distintas, as nossas rotinas de trabalho nos impedem até mesmo de nos aproximar. E isso é uma prática do racismo institucional porque somos apenas cinco num corpo docente de talvez 80 professores. Olha essa estatística… Eu posso falar por mim… Eu falo muito sobre questões raciais e de gênero. Eu procuro levar isso para os meus estudantes, eu quero combater essa prática de só falar de negro no mês de novembro. Olhe para o calendário. Nossa agenda urge discussão o ano inteiro! Aí eu olho para a minha instituição… Quantas mulheres negras e homens negros em altos cargos? Não falo nem tanto de mestrado e doutorado executado porque o número é até razoável, mas se aprofundar a questão, em que condições esses cursos foram alcançados? E aí vamos falar de questões que acometem o povo negro causado por esse racismo institucional: a saúde mental, a solidão, as produções, os cargos políticos… As mulheres negras trabalhadoras, e me refiro especificamente às da educação, lutam entre a maternidade, o trabalho, uma vida social difícil, estudar e nesses casos não há como separar a questão de raça. Nilma Lino Gomes e Bell Hooks, intelectual americana, são algumas das referências em intelectualidade feminina negra… Elas são pontuais no traçado característico que as mulheres intelectuais têm que adotar para ser tornar uma intelectual: dividir-se entre uma vida de cargas horárias extensas, alternando-se entre o trabalho na rua e em casa, sem nunca abrir mão de uma maternidade dedicada e intensa e enquanto todos dormem, ela tem que estudar nas madrugadas para dar conta das demandas intelectuais. Não existe descanso… Estamos falando de um racismo intelectual quando você tem dois filhos, volta de uma licença maternidade do caçula, obviamente, e feliz com a notícia de, em meio a tantas dificuldades, ter passado num processo seletivo para o doutorado de etapas muito disputadas e seu colega, homem, branco, estudioso das questões sociais, olha para você e diz: “nossa, você é louca, fazer um doutorado a 720km de distância, com dois filhos, você não vai conseguir” e o outro, aquele que conseguiu fazer um doutorado com afastamento, sem filhos, coincidência ou não, branco, te diz “você tem duas horas a menos que eu porque você está fazendo o doutorado, então não pode reclamar que está sendo difícil”. É um racismo institucional, quando para uma mulher, negra, todas as normas e padrões para conseguir um afastamento se tornam não difíceis, mas impossíveis. É aquela ideia de que “quando a gente consegue vencer uma barreira e passar para o outro lado da ponte, descobre que há mais duas outras escaladas a fazer porque o sistema reestruturou a passagem para que o objetivo fique ainda mais difícil”. Quem está lendo isso, pode pensar que se trata de uma prática individual, mas como já disse antes: a institucionalidade do racismo o torna menos evidente do que a sua individualidade.
Elissandro Santana: estimada intelectual, é sabido ou, pelo menos, acredita-se que o enfrentamento ao Racismo Institucional já é um compromisso do Brasil, incorporado no Plano Plurianual 2012-2015[3], mas, na prática, sente esse combate por parte do Estado Brasileiro?
Verônica de Souza: De jeito nenhum. As hierarquias imediatas quase sempre colocam a culpa nas hierarquias mediatas, se é que me entende… Mas a olho nu, é possível ver os privilégios sendo direcionados a uns e não a outros e aí são observados fenótipos, relações pessoais e institucionais, convívios. O mais doloroso disso tudo é quando vemos pessoas que dizem se dedicar ao estudo e combate de práticas como o racismo e fazê-las perpetuar-se. Ao longo da ainda curta trajetória de militância, eu vi pessoas brancas, homens em sua maioria, dizendo lutar contra o racismo, combatê-lo etecetera e tal. Expor em suas redes preocupações, cuidados, direcionamentos com a população negra e nos bastidores fazem o quê: práticas algozes! Sim! Silenciar, desprestigiar, desqualificar, desvalorizar pessoas negras. E fazem isso num grau de sofisticação tão grande, tão cruel que a frase “você não sabe o que diz, eu sou antirracista, tenho até parentes negros” parece natural. O estado brasileiro não combate nem no plano microscópico nem no plano macroscópico. Não temos uma publicidade forte que promova a igualdade e a diversidade, os obstáculos para ascensão das maiorias minorizadas ainda são muitos dentro das instituições, os espaços de debates são praticamente invisíveis, o acolhimento (risos) esse não existe… O estado brasileiro precisa primeiro ter consciência intelectual e sensibilidade para este assunto… E ainda está longe disso… As instituições são racistas porque a sociedade é racista e isso implica em algumas questões. Pensemos em algumas… Se uma instituição tem padrões que funcionam à base de regras que privilegiam determinados grupos raciais, é porque o racismo é uma ferramenta para aquela ordem social. Não é criado pela instituição, mas reproduzido por ela. Neste caso, lembremos da história da educação… De forma exageradamente resumida, por conta do espaço dessa conversa, o sucateamento da educação pública começa com o acesso dos grupos raciais negros aos espaços de ensino. O que é que o sistema faz? Uma vez que o acesso passa a ser para “todos”, a estrutura educacional vai perder sua qualificação. Com o passar dos tempos, aquelas escolas públicas que mantêm um padrão de qualidade bom pode até ter um acesso relativamente uniforme e acessível, e aí não estamos falando de ingressos imediatos, mas de listas e listas de chamadas, o que torna esse acesso questionável e posteriormente ao ingresso do discente uma estrutura que o expulsa com condições de quase que impossível permanência. Este estudante vai ingressar no estabelecimento de ensino, mas não consegue se manter e por quê? Porque mora em bairros muito afastados e a mobilidade da cidade não colabora, porque aquele professor do primeiro horário não entende esta situação e a situação de vida do aluno (seria uma obrigação do professor entender?), porque o estudante enfrenta às vezes o dobro de disciplinas que efetivamente tinham em outras escolas e sem uma base de conhecimento bem estabelecida para dar prosseguimento aos seus estudos, enfim… há uma reprodução desse racismo e essa estrutura social traz uma série de conflitos que ocasiona à instituição a atuar de maneira conflituosa, alocando-se dentro do conflito. O fato de questionarmos se a instituição e seus agentes têm de ceder para agregar a diversidade e esses sujeitos já nos coloca numa zona de conflito! Um outro fator é que o racismo não se limita à representatividade. A mera presença de pessoas negras em espaços de poder não faz com que a instituição deixe de ser racista. O racismo é decorrente do modo “normal” como constituímos as relações, não sendo uma patologia social nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Faz-se necessárias mudanças profundas nas relações, sejam elas de ordem econômica, social e política. É preciso abrir as feridas, pois o racismo é uma tecnologia de poder para o Estado.
Elissandro Santana: baseado em sua empiria profissional, acredita que, na atualidade, as organizações estão adotando medidas de prevenção e de enfrentamento ao Racismo Institucional?
Verônica de Souza: Como disse anteriormente, essas medidas existem, em muitas instituições de maneira conveniente. Não como práticas cotidianas, planejadas, bem elaboradas e executadas. Sabe quando parece que está na moda falar disso? Pois é, estamos vivendo essa moda… Que vejo tão logo cessando… Não existe um debate coletivo. Existem tentativas de formação de grupos, mas ainda em desunião, dois aqui, três ali… Os movimentos negros têm reivindicado das organizações o enfrentamento e o combate ao racismo institucional, mas tudo ainda é muito tímido. Falar sobre o assunto constrange, desconforta tanto a quem sofre quanto a quem violenta e quando a sociedade que violenta é desafiada, o que se instaura são o medo e o interesse próprio. O racismo se estabelece a partir de duas questões: i) produção de ideias que forneçam uma explicação “racional” para a desigualdade social e ii) constituição de sujeitos cujos sentimentos não sejam abalados profundamente diante da discriminação e da violência racial e que considerem ‘normal’ ou ‘natural’ a existência de brancos e não-brancos. Lembra aquela frase daquele ator negro americano sobre consciência humana que as pessoas são espalhando por aí…? Pois bem! Como já antecipei, é necessário implementar práticas antirracistas efetivas. É dever de uma instituição que realmente se preocupe com a questão racial investir na adoção de políticas internas para isto. Falar em medidas me lembra duas questões: o mito da mulher raivosa que, novamente, acaba individualizando mulheres por conta da quantidade e apaga a ideia de uma institucionalidade ao racismo. O que eu quero é que quando uma mulher negra clama pelo debate da questão racial e de como a instituição se posiciona é porque algo está errado. Imagine uma instituição ser notificada pelo Ministério Público por não praticar as leis 10.639/03 e 11.645/08. Esta notificação por si só já nos sinaliza algo. Quando tendenciamos a aplicação dessa lei e surgem aí os discursos de “eu não sei como aplicar a questão do negro ou do indígena à minha área”, o sinal vermelho alerta. Mas onde se está o racismo institucional: no momento em que a instituição acolhe esse discurso daquele professor que se recusa a estudar as temáticas e mudar o seu planejamento anual. O racismo institucional se solidifica quando o colega negro é silenciado, recriminado por fiscalizar o colega branco e até não-branco para que execute a legislação. Quando a escola quer nada mais do que cumprir um “mais do mesmo” para “se ver livre do problema”. Uma instituição que passa por cima das legislações para confortar aqueles que se recusam a cumprir uma legislação sobre este assunto além de criminosa é racista sim. É necessário revisar as práticas institucionais, às vezes é necessário pegar na mão do coleguinha e dizer “faça melhor seu trabalho, ao menos por obrigação”. Ainda que ele se sinta ofendido. É obrigação dele porque se fosse num sistema privado, ele cumpriria mesmo contra a vontade para não ser demitido. É racismo institucional quando vemos no único momento em que a instituição escolar se vê compelida a realizar atividades pelo Novembro Negro e aí a escola tem que falar de religiões de matrizes africanas, mas está situada ou é povoada por evangélicos neopentecostais e outros e considera um absurdo o debate sobre uma religião que é vista de maneira negativa. Como lidar com isso? Como quebrar essas correntes? O Estado precisa pensar essas questões… Elas existem, estão postas…
Elissandro Santana: Por fim, agradeço a oportunidade por debater comigo esta temática e peço, por favor, que teça algumas considerações finais para os leitores e as leitoras do Portal Desacato.
Verônica de Souza: É muito difícil ser objetiva e breve num espaço como este sobre um assunto como este. Falar de racismo institucional nos daria horas, dias, meses, anos de conversas… Não é fácil, é complexo, controverso, desconsertante, violento. A cada dia tenho estudado sobre essa questão e confesso, ao invés de uma solidez, uma fragilidade maior. Lembram da história dos muros? Pois é… Quando achamos que chegamos lá, eles ampliam a estrada e ela fica mais difícil. Confesso que ainda não tenho as palavras precisas para respostas precisas a esta questão. Acho que nem o maior dos teóricos consegue isso! Porque não depende de nós… O racismo não é um problema de quem o sofre, é um problema de quem o pratica. E precisamos tratar dele a partir desse olhar. A naturalização do racismo precisa ser combatida. E muitos de nós só o reconhecemos a partir da vida política e dos estudos. Eu sofro racismo desde que me entendo como existente neste mundo. No entanto, o despertar para a desigualdade racial foi para mim muito tardia. E esta compreensão ainda se constrói dia após dia. Acho que estarei em constante processo de aprendizagem sobre isso, ou ao menos, enquanto as práticas racistas ainda existirem. Porém o conhecimento é uma ferramenta crucial para a questão e aliado a ele a prática antirracista. Engraçado dizer isso porque esta semana, eu vivi uma situação que ainda estou maturando… Uma pessoa muito próxima a mim, porém de uma geração anterior, isto é, já passados seus 70 anos, me disse que eu via racismo em tudo. Nossa! Aquilo mexeu comigo e me pôs completamente em movimento em relação ao que foi dito: fiquei pensando meu comportamento, corpo, práticas, escritos, tudo… Daí um alerta se acendeu: explicar para aquela pessoa porque naquela situação o que ela dizia e como dizia se instaurava o racismo e depois confluir para a ideia de que ela não tinha o conhecimento necessário para identificar o conceito acerca do racismo. Justificável por se tratar de uma geração e de pessoas que como ela não discutiram sobre o assunto ou sequer tiveram acesso! Ao mesmo tempo, observo pessoas conhecedoras da questão, mas que usam esse conhecimento não para extirpar o problema, mas para dominá-lo a fim de mantê-lo. Sofisticado, né? Mas uma prática velha. Eu diria, de tempos coloniais. Imagina alguém que verbaliza sobre as práticas racistas, se esconde por trás desses textos e no dia-a-dia corrói os sujeitos violados pelos racismos, silenciando-os, desqualificando-os, desvalorizando-os. E fazendo deste conhecimento para dizimar as maiorias minorizadas. Não seja este tipo de pessoa. É necessário práticas antirracistas: o corpo fala. É preciso reconhecer a prática racista e posicionar-se efetivamente diante dela; é necessário superar as desigualdades pensando em políticas, isto é, é necessário atuar na frente contra o crime de racismo, com as afirmações constitucionais, na frente contra a segregação, avançando nas políticas que implicam a inclusão do negro em todas as áreas sociais, e na frente contra o preconceito, usando todos os recursos à disposição, como as leis 10.639 e 11.645 no âmbito educacional; é necessário não apenas reconhecer que tem privilégios, mas abrir mão destes. E abrir mão de privilégios é colocar a sociedade do avesso. Por fim, é necessário uma proatividade e não apenas solidariedade. É importante que todos e todas estejam preparados para combater este câncer que é o racismo. Enfim… Ainda me falta ar quando tenho que tratar deste assunto. Sei que ainda temos muito a percorrer e precisamos fazê-lo logo antes que sejamos mais uma vez invadidos pelo retrocesso.
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[1] https://racismoinstitucional.geledes.org.br/o-que-e-racismo-institucional/#_ftnref1
[2] Carmichael, S. e Hamilton, C. Black power: the politics of liberation in America. New York, Vintage, 1967, p. 4.
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Elissandro Santana é professor da Faculdade Nossa Senhora de Lourdes e do Evolução Centro Educacional, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.
[3] https://racismoinstitucional.geledes.org.br/caminhos-para-o-enfrentamento-do-racismo-institucional/
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