“Da luta não fujo”: 39 anos do assassinato de Margarida Alves

Desde 1985, já foram registrados mais de dois mil assassinatos de lideranças camponesas, indígenas, quilombolas, defensores de meio ambiente, sindicalistas e advogados; relembre alguns casos

Por Fernanda Rosário e Elias Santana Malê, para Alma Preta Jornalismo.

Imagem: I’sis Almeida/Alma Preta com frases retiradas de protestos

“É melhor morrer na luta que morrer de fome”. Esse é um trecho do discurso de Margarida Alves na comemoração do 1º de maio de 1983. Mulher camponesa e sindicalista rural, ela foi mais uma dentre tantos ativistas, como Chico Mendes, Dorothy Stang e Bruno Pereira, assassinados pela defesa de direitos sobre o território.

Neste dia 12 de agosto, fazem exatos 39 anos que Margarida Maria Alves foi assassinada, aos 50 anos, no final da tarde de 1983 com um tiro em seu rosto feito por uma escopeta calibre 12. O crime aconteceu na porta de sua casa, em Alagoa Grande, no Brejo da Paraíba, na frente do único filho e marido.

De acordo com a historiadora Ana Paula Romão – autora do livro “Margarida, Margaridas: Memória de Margarida Maria Alves (1933-1983) através das Práticas Educativas das Margaridas”-, a ativista é muito conhecida por sua luta por direitos trabalhistas, como repouso semanal e 13° salário, por exemplo, para as pessoas do campo.

“Ela vivenciava um contexto em que havia muita fome. O Nordeste tinha uma grande massa de pessoas que trabalhavam com precariedade no campo do trabalho. Muitas vezes, eles eram chamados de boias-frias, que são pessoas contratadas por épocas e sem nenhum direito trabalhista. Ela lutou muito por isso e começou a ganhar causas”, conta Ana Paula.

Ainda segundo a historiadora, no próprio período em que Margarida atuava, ela relata um caso em que chegou a ganhar 100 causas trabalhistas na Comarca de Campina Grande (PB).

“Ela acreditava no sistema judiciário, então ela tentava resolver utilizando estratégias de divisão de comarcas. Ela mudava de comarca, porque ela entendia que o juiz de outro local seria mais isento do que o juiz local. E quando ela mudava para uma Comarca que não estava dentro daquele poder oligárquico, ela ganhava”, explica a autora do livro, que também integra a Comissão Nacional Camponesa da Verdade.

Interior da casa de Margarida com os dizeres Da luta não fujoInterior da casa de Margarida Maria Alves | Crédito: Museu Casa de Margarida Alves

Segundo Mazé Morais, secretária de Mulheres da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), Margarida Alves ficou à frente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande durante 12 anos – a primeira mulher nesse cargo na cidade – e moveu mais de 600 ações trabalhistas.

“Mesmo sendo considerada semi-analfabeta, aprendeu com a vida a coragem de enfrentar todo tipo de desafio, até mesmo os mais opressores, como o machismo, os interesses dos latifundiários e o regime militar. Ela foi uma grande liderança, mulher rural, negra e pobre que transformou a sua vida em luta por milhares de pessoas pobres e excluídas do direito à cidadania e do acesso a direitos básicos”, pontua Mazé Morais.

De acordo com Ana Paula Romão, a memória de lutas de Margarida Maria Alves tem um componente de educação popular. Ela fundou o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural junto a Paulo Freire, iniciativa que contribui para o desenvolvimento rural e urbano sustentável. Ela também foi impulsionada a fazer a auto-organização das mulheres camponesas, porque não era comum na época dela uma mulher estar à frente de um sindicato, sobretudo no meio rural.

Entretanto, suas conquistas em torno dos direitos dos trabalhadores rurais, contra a violência no campo, exploração trabalhista e a favor da reforma agrária, revoltou muito os proprietários de terra.

A impunidade marca a violência no campo

De acordo com a historiadora Ana Paula Romão, o assassinato de Margarida foi encomendado por grupos de oligárquicos e políticos, não sendo uma única pessoa por trás do crime. Entretanto, o assassinato é atribuído ao chamado Grupo da Várzea. O grupo era composto por fazendeiros, deputados e prefeitos e tinha como líder Agnaldo Veloso Borges.

Margarida Alves em discursoMargarida ao centro com seu único filho (sem camisa) e seu marido (de camisa azul-clara) | Crédito: CEDUP, Guarabira-PB, 1982

Segundo a secretária de Mulheres da Contag, Mazé Morais, o principal acusado do assassinato de Margarida ficou sendo Agnaldo, proprietário da usina de açúcar local, a Usina Tanques – contra a qual a ativista movia muitas ações trabalhistas – e seu genro, José Buarque de Gusmão Neto, mais conhecido como Zito Buarque. O genro de Agnaldo chegou a ser levado a julgamento, mas foi absolvido.

Foram acusados pelo crime o soldado da PM Betâneo Carneiro dos Santos, os irmãos pistoleiros Amauri José do Rego e Amaro José do Rego e Biu Genésio, motorista do Chevrolet Opala, que mais tarde foi assassinado, morte entendida como “queima de arquivo”.

Os irmãos pistoleiros estão foragidos desde a época do assassinato. Ana Paula conta que Agnaldo, já falecido, nunca foi preso.

“Houve uma mobilização muito grande [após sua morte], ao ponto que seis meses depois do seu assassinato estourou a primeira greve dos canavieiros na Paraiba que até hoje é considerada a maior greve desse segmento campones”, explica Ana.

Em sua homenagem, a data de 12 de agosto também passou a ser conhecida como Dia Nacional de Luta contra a Violência no Campo e pela Reforma Agrária.

Segundo Ronilson Costa, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em levantamento feito a partir de monitoramento da organização, desde 1985, já foram registrados mais de dois mil assassinatos de lideranças camponesas, indígenas, quilombolas, defensores de meio ambiente, sindicalistas e advogados. Todas são pessoas que eram lideranças na defesa de seus territórios ou estavam, de uma certa forma, apoiando essas comunidades.

“Pelo levantamento que nós fizemos em 2019, menos de 10% dos casos de assassinatos foram a julgamento. Isso já acende um alerta de como há impunidade em relação à violência no campo”, explica.

Ainda de acordo com o coordenador nacional da CPT, dos cerca de 9% de casos que foram a julgamento, apenas alguns casos (menos de 7%) conseguem ser condenados. “No caso dos condenados, há pouquíssimos mandantes dos crimes. Então atuar como mandante é uma certeza quase que absoluta de que não haverá punição”, acrescenta.

Relembre alguns casos de violência do campo sem punição

Matéria anterior da Alma Preta Jornalismo falou sobre o Massacre do Pau D’Arco, onde 10 trabalhadores rurais foram assassinados durante operação policial. Em janeiro de 2021, um dos sobreviventes do massacre também foi morto no local. Ocorrido em 2017 no Pará, neste ano faz cinco anos da morte dos trabalhadores.

Em 2018, aconteceram as audiências de instrução e julgamento e, dos 17 policiais que haviam sido identificados como participantes do massacre pela Polícia Federal, 16 foram indiciados a participar de Tribunal do Júri, ainda sem data marcada, enquanto é aguardado julgamento de recursos.

Ronilson Costa também relembra o caso da chacina de Taquaruçú do Norte, em Colniza/MT, onde trabalhadores rurais foram executados por pistoleiros em um projeto de assentamento.

“Em abril, fez 5 anos desse caso. É outro emblemático. Nove trabalhadores foram mortos com requintes de crueldade, como esquartejamento e balas de grosso calibre. É um dos casos que seguem impunes. A maioria das famílias abandonaram o território por conta das ameaças e possibilidades de uma nova invasão e ataque”, explica o coordenador da CPT.

Um outro caso também muito emblemático, segundo Ronilson, foi o de Corumbiara, ocorrido na região sul de Rondônia. O massacre completou 27 anos nesta semana (9). O conflito envolveu policiais militares e um grupo de sem-terra, o que resultou em 12 mortos, 55 trabalhadores rurais feridos e torturados e outros 300 presos, segundo informações do Repórter Brasil.

“No caso de Corumbiara, foi se percebendo que ao longo do tempo, agentes públicos que estavam envolvidos nesse massacre acabavam sendo promovidos a cargos públicos dentro do governo do estado de Rondônia. Essa é uma afronta muito grande às lutas por direitos dos trabalhadores, porque quem comete o crime acaba sendo premiado com promoções de cargos públicos”, explica Ronilson.

“A lista é enorme de casos que ficaram na impunidade e que caíram no esquecimento. Boa parte das reivindicações de Margarida Alves continuam sendo atuais. O Judiciário brasileiro teria que adotar formas diferenciadas de tratar sobre a violência no campo. A impunidade precisa ser tratada também como uma condição que incentiva a violência no campo”, ressalta.

Incidência política para transformar a realidade

Mazé Morais acredita que entre as pautas que os movimentos sociais, sobretudo do campo, precisam fazer para enfrentar o cenário de violência é incidir no processo eleitoral 2022 para eleger um candidato do campo democrático popular para governar o país e que seja comprometido com a construção de um país livre da violência.

Mazé Morais ContagMazé Morais na Marcha das Margaridas de 2019 | Crédito: César Ramos

Nesta sexta-feira, foi apresentada em ato virtual em memória de Margarida Maria Alves uma carta-compromisso intitulada “Margaridas nas eleições para fazer florescer a democracia”. Essa carta é direcionada às candidaturas do campo democrático popular e é fruto de diálogos estabelecidos com organizações e movimentos sociais, articulados em torno da Marcha das Margaridas a partir de uma Plataforma Política construída coletivamente.

A Marcha das Margaridas foi criada em 2000 inspirada pela luta de Margarida Alves e ocorre a cada quatro anos nas ruas de Brasília. A próxima marcha está prevista para agosto de 2023.

“A marcha das margaridas leva como pauta as reivindicações de todas as camponesas do Brasil e temos uma diversidade, porque temos mulheres assentadas, acampadas, da CPT, do MST, quebradeiras de coco, marisqueiras, quilombolas, indígenas. Todas que a gente chama de via campesina feminina se organizam para a marcha”, finaliza Ana Paula Romão.

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