Por Alice de Souza.
Certa vez, enquanto esperava o ônibus com a filha, uma senhora estendeu a mão para a criança de cerca de um ano e ofereceu um salgadinho, sem consultar a mãe se podia. Aquela cena nunca foi esquecida por May Solimar, publicitária e ilustradora, tamanho o desconforto gerado. Atitudes como a dessa mulher desconhecida são comuns na relação entre adultos e crianças. Colocar a mão na barriga da grávida ou apertar a bochecha de um bebê ainda são vistos como gestos banais, mas podem revelar desrespeito ao corpo do outro e causar incômodo quando não há consentimento, além de potencialmente perigosos.
Isso acontece porque parte da população olha para a criança como um “ser público”, uma percepção que está atrelada à ideia de que as crianças não têm vontade ou que a vivência delas no mundo é uma extensão dos adultos, acredita Andrea Viviana Taubman, autora do livro “Não me toca, seu boboca!”. “Adultos muitas vezes veem as crianças como prolongamentos de si mesmos, sem diferenciação, e negam que elas pensam e sentem de forma autônoma”, afirma.
Além de adultos agirem dessa forma em inúmeros contextos e segmentos da sociedade, a criança pode ser repreendida quando se nega a abraçar, beijar ou se deixar tocar por outra pessoa mais velha. “Quem nunca viu, por exemplo, uma criança fazendo expressão de desagrado, medo ou nojo ao se negar a um carinho indesejado e ouvir algo como: ‘largue de ser malcriado, titio só quer um beijinho, o que custa?’”, exemplifica Andrea.
May Solimar já presenciou uma situação parecida na rua: o pai de uma criança discutiu com outro homem depois que a menina se recusou a tocar na mão do desconhecido, que estava estendida. “Quando pediu que o homem parasse de insistir naquele gesto, ele resolveu falar que o pai estava criando uma menina mal educada”, relatou. O episódio e as inúmeras situações pelas quais passou com a própria filha a fizeram escrever, nas redes sociais, sobre o tema.
Na prática, porém, a ação desse pai ainda é pouco usual. São raras as famílias que educam as crianças para o consentimento ou não consentimento do acesso ao corpo, o que abre espaço para riscos, tanto de saúde como de segurança física.
O incômodo expresso pelas famílias
Desde que a filha nasceu, há sete anos, May já perdeu as contas de quantas vezes sentiu o espaço da menina ser invadido: de apertar as bochechas a passar a mão na cabeça. “Acho que as pessoas têm a imagem de que ela é só um ser fofo, como um bichinho de estimação, e que, por esse motivo, pode tocar, ou até oferecer coisas. Foram inúmeras as vezes que desviei das mãos das pessoas, enquanto minha filha estava no colo”, diz.
O mesmo ocorreu com a jornalista Maria Eduarda Vaz, mãe de uma menina de dois anos e quatro meses. Ao contrário de várias amigas, ela não chegava a se incomodar quando alguém tocava na barriga quando estava gestante, porém passou a rever o próprio jeito de lidar com as crianças e expressar o incômodo com quem tentavam tocar na criança no início da pandemia da covid-19, quando ainda era um bebê. “Antes, eu era até dessas pessoas que tocavam na barriga da grávida. Hoje, já refleti bastante e mudei. Cada vez mais, acho que estamos nos empoderando sobre até quando o corpo pode ser tocado”, conta. “Tem gente que vai visitar a criança ainda na maternidade e pega na mão do bebê, uma pessoa recém-nascida, sem as proteções. É uma questão de noção. Se alguém pega na nossa mão e está suja, a gente vai lavar”, exemplifica.
Para ela, o grande desafio é saber impor os limites com os demais adultos, conhecidos e desconhecidos. “Sinto que esse é um comportamento de pessoas mais velhas, há uma questão geracional. É uma atitude em que você fica sem graça de dizer: ‘olha, não toca na mão dela, pois ela pode botar na boca’. As pessoas dizem que não tem nada demais. Aí, é um sofrimento silencioso”, diz. Maria Eduarda criou estratégias para lidar: quando ocorre com um conhecido com quem tem intimidade, intervém; em outras situações, se afasta e passa álcool na mão da filha.
Para May, o importante é gerar reflexão, por isso levou a questão para as redes. “Às vezes, a pessoa não entende. Se todo mundo começar a refletir sobre isso, haverá mais perguntas antes das atitudes”, acredita. Outro caminho, segundo Andrea, é tentar estabelecer um diálogo. “Grande parte de nós não cresceu com esses conceitos claros, por isso reforço uma questão que não parece muito óbvia: antes de nos sentirmos confortáveis para falar sobre isso com as crianças, precisamos conversar primeiro com ‘nossos botões’ e nos sentirmos suficientemente tranquilos em relação ao que isso mobiliza em nós”, conclui.
Os riscos de invadir os limites
Para além de uma questão de saúde, ao favorecer o contato da criança com substâncias e organismos desconhecidos, um toque indesejado pode abrir caminho para ações mais graves, como um abuso físico. Por isso, é fundamental falar sobre consentimento com as crianças e introduzir na educação delas a percepção de limites. “Uma criança que é educada para dizer “sim” a tudo o que os adultos mandam parece muito conveniente, não é?”, lembra Andrea, mas os abusos e as violências, de um modo geral, não acontecem de uma hora para outra, ressalta.
Se uma criança não se percebe com direito nem ao próprio corpo e que esse é um contorno que deve ser inviolável, muito dificilmente vai distinguir se alguém estiver desrespeitando qualquer outro direito. “Nenhum toque destinado a ser um toque de carinho deve provocar na criança dor, medo, aflição, angústia, tristeza ou vergonha. Se isso acontecer, a criança deve estar com as ‘antenas bem ligadas’ para desconfiar que há um perigo rondando, se distanciar desse perigo e relatar a algum adulto de sua confiança que possa ajudá-la a sair da situação”, afirma Andrea.
Segundo ela, uma criança que tem a autoestima fortalecida e a noção clara do que devemos ou não consentir que o outro faça conosco é menos vulnerável a ser impactada pela ação de abusadores e abusadoras. “Se houver uma consciência sólida do sujeito em relação ao direito que tem sobre o próprio corpo, espera-se que haja uma resistência proporcional ao aliciamento, que poderá nunca ser quebrada. Negar a criança como sujeito impede que ela pense e aprenda a se proteger”, explica.
A criança abusada corre o risco de se identificar com o agressor, se sentir culpada pelo acontecido e se vincular ao sofrimento, construindo uma personalidade melancólica, além de ser impactada no seu desenvolvimento cognitivo, afirma a escritora. Ao crescer, a criança pode repetir na vida social (amizades, namoros, casamento, trabalho) as interações abusivas que observou como naturais para as relações.
Os limites do toque no corpo – e também dos pensamentos – precisam ser ensinados pelos adultos de referência. “Trabalhar os conceitos sobre o que é público e o que é privado favorece a construção de um arcabouço relacionado a permissões e interdições, ampliando as chances de a criança ter, no crescimento, mais domínio sobre as situações com que poderá se defrontar.
Desde o nascimento, e em cada etapa da infância, é possível identificar oportunidades de introduzir noções de consentimento na educação, o que dará à criança instrumentos para lidar com as situações pelas quais pode passar quando não estiver sob a vigilância dos pais 24 horas por dia. Na hora de trocar a fralda, por exemplo, diga ao bebê: “com licença, vou trocar sua fralda e limpar seu corpo. Mais tarde, você vai cuidar muito bem dele, quando puder fazer isso sem minha ajuda”. Dessa forma, o sujeito recém-chegado ao mundo vai se desenvolver compreendendo que o corpo lhe pertence e deve ser tratado com cuidado e respeito.
Para abordar o tema em diferentes fases, o recomendado é aproximar a linguagem para o universo infantil e falar a verdade de modo lúdico, usando recursos concretos – como obras literárias e audiovisuais – para melhor compreensão do bebê ou da criança. Além de dispor de um conjunto de informação com linguagem adequada à fase de desenvolvimento, é importante fortalecer o vínculo de confiança com os adultos de referência e estimular a intuição da criança nesse processo.
Outra estratégia envolve deixar a criança se expressar verbalmente sem interrompê-la e sem invalidar suas emoções, praticando a escuta ativa e os princípios da Comunicação Não Violenta, para que elabore com leveza essas questões.
Dependendo do contexto, a partir dos quatro anos, a criança começa a construir, paulatinamente, uma vida social um pouco mais “autônoma” (brincar na casa dos colegas de escola, eventualmente dormindo fora, por exemplo). “Se compreender que a gentileza e a capacidade de ser sociável podem ser manifestados pelas atitudes e pela fala, sem necessariamente envolver contato físico para demonstrar afeto, a criança correrá menos riscos de ter seu corpo acessado de forma inapropriada”, ressalta Andrea.
May Solimar busca, aos poucos, introduzir o tema na vida da filha de sete anos. “Sempre disse a ela que ninguém tem o direito de tocá-la sem que ela permita e se sinta à vontade, nem mesmo sua família. Para mim, isso é um princípio básico de educação e autocuidado. Quero que ela entenda o respeito ao espaço individual como algo imprescindível”.
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Para saber mais sobre o tema, conheça a série “Que corpo é esse?”, do Canal Futura: