Por Moara Crivelente.*
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) está selecionando os seus alvos para a próxima década. Sobrevivendo à custa das que denomina ameaças difusas de todos os tipos, intervenções e agressões mundo afora desde o fim da União Soviética, a OTAN continua reiventando motivos para a continuidade da sua existência. Em junho, na cúpula em Madri, o novo “conceito estratégico”, um documento tido como só menos importante que o próprio tratado constitutivo da organização, será definido.
A OTAN foi constituída em 1949 por governos recém-saídos da Segunda Guerra Mundial e que poucos anos antes haviam assinado a Carta das Nações Unidas de 1945 com a promessa de cooperação internacional pela paz e a segurança para todos, para evitar a repetição daquela catástrofe. O alvo do bloco era então a União Soviética como estandarte do Comunismo e que exercera papel protagonista na derrota do nazi-fascismo que se alastrava pela Europa e pelo mundo.
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Alegando defender a democracia, em seu ano fundador o bloco político-militar já alistava como membro a ditadura fascista de Portugal –que ademais, ainda explorava colônias na África e na Ásia e por isso só se tornaria membro da ONU mais tarde. A aliança encabeçada pelos Estados Unidos acolheu aquele regime autoritário e colonialista especialmente porque o país tinha a oferecer uma vantajosa posição geoestratégica e a base militar das Lajes, no arquipélago dos Açores. Considerando que até os dias de hoje potências e membros da OTAN seguem tendo tanto colônias e ocupações militares como regimes autoritários, a exemplo da França, do Reino Unido, dos EUA, da Turquia, da Polônia e da Hungria, esta é apenas uma entre tantas incoerências fartamente apontadas.
Anotadas as contradições fundamentais, saltamos para a dissolução da União Soviética e o desaparecimento do alvo contra o qual a OTAN se constituiu. Desde então, o bloco tem se dedicado a rever o seu “conceito estartégico” a cada dez anos, buscando formas de justificar a continuidade da sua existência. Esta tarefa é anunciada como um empenho que “define o propósito e a natureza duradoura da OTAN, suas tarefas securitárias fundamentais e os desafios e oportunidades que enfrenta em um ambiente securitário em mudança. Também especifica os elementos da abordagem da Aliança à segurança e oferece diretrizes para a sua adaptação política e militar”.
Além das revisões estatégicas, a OTAN tem se empenhado pela expansão geográfica da sua lista de membros, com um contínuo processo de alargamento e a redefinição dos seus propósitos –como as “intervenções humanitárias”, a exemplo da invasão da Sérvia com a intervenção na província de Kosovo em 1999– e da sua esfera de atuação. Assim transborda do espaço euro-atlântico e se alastra pelo globo com destacamentos prontos a intervir em bases militares mundo afora e diversos termos de parcerias extra-regionais, como demonstrado recentemente na parceria com a Colômbia e as conversações com o Brasil.
O bloco, que começou com 12 integrantes, conta hoje com 30, fagocitando novos membros a leste, às portas da Rússia, acolhendo ex-repúblicas soviéticas e vizinhos como a República Tcheca, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia. A Ucrânia, note-se, tem ensaiado a adesão desde 2002, com uma instância de diálogo para agilizar o processo estabelecida em 2005, atropelando compromissos prévios. Em 1990 e 1991, em sua declaração de soberania e em sua Constituição, respectivamente, a Ucrânia afirmara que se manteria um estado neutral que não aderiria a blocos militares nem teria armas nucleares. Diante das tensões provocadas pelo processo de adesão à OTAN, intensificadas em 2014 com a derrubada do governo de Viktor Yanukovich, que insistia pela reafirmação da neutralidade, a Ucrânia continua em fila de espera, junto com Bósnia-Herzegovina e Geórgia, mas pode ser passada a posição prioritária no processo precisamente por conta da atual fase de confrontação com a Rússia.
As guerras da OTAN e a sua existência reinventada
Em junho de 2022, provavelmente ainda mobilizada pela catastrófica situação provocada no leste europeu, a OTAN irá adotar um novo “conceito estratégico”, atualizando aquele definido na Cúpula de Lisboa em 2010. Dando o tom do que vem aí, o secretário-geral Jens Stoltenberg disse em 25 de fevereiro, após o início da nova fase da confrontação no leste europeu, que os aliados discutiam “a maior ameaça à segurança euro-atlântica em décadas”, em conversações que incluíam parceiros como a Finlândia, Suécia e União Europeia. “A Rússia estilhaçou a paz na Europa”, declarou então, embora o conflito no leste de Ucrânia já esteja em seu oitavo ano, com ataques devastadores à região de Donbass protagonizados por milícias e forças regulares respaldadas pelos “aliados”. Em janeiro, em uma das conferências de consulta realizadas, membros e parceiros discutiram as novas “ameaças”, debatendo inclusive proposas de entidades civis e think tanks como o German Marshall Fund dos EUA, que reforça a visão político-estratégica do conceito, não apenas a militar, e enfatiza na necessidade de a Europa assumir papel mais preponderante “ao lado dos EUA” na “defesa coletiva” e como interveniente credíveis e de prontidão face a quaisquer “crises e emergências”.
O processo preparatório das revisões estratégicas começou em 2019 e se definiu na cúpula de Bruxelas em 2021, com a tarefa de elaborar a “Iniciativa OTAN 2030”, um conjunto de prioridades para “garantir que a OTAN continue militarmente forte, se torne ainda mais forte politicamente e adote uma abordagem mais global.” O processo parte do conceito de 2010, que mobilizou o bloco para desenvolver parcerias em todo o mundo e abrir as portas para novos integrantes entre “democracias europeias”, por um “engajamento ativo e uma defesa moderna”. Comprometendo os membros com a reinvenção constante da OTAN –o que pressupõe ainda o almejado aumento da fatia dos seus PIBs para o setor militar, o conceito estratégico de 2010 definiu como ameaças a proliferação de mísseis balísticos e armas nucleares, o terrorismo, os ataques cibernéticos e até mesmo problemas ambientais.
O histórico de atuação da OTAN demonstra que se trata não de uma “aliança defensiva”, como a definem seus líderes, mas de um bloco político-militar dedicado a intervir no mundo por todos os meios. Dos exemplos mais recentes tem se destacado as intervenções na Iugoslávia nos anos 1990 –ressaltando que a atual confrontação na Ucrânia não é só agora “o retorno da guerra” à Europa após o fim da Segunda Guerra Mundial, como parte dos meios de comunicação a retratam– e no Afeganistão, na Líbia, no Mali, entre outros.
Adicione-se a isso a alarmanete distribuição de ogivas nucleares pelos países membros na Europa, na chamada “política de partilha” desta que se admite como “uma aliança nuclear”, em que estes armamentos de destruição em massa desempenham papel central na sua “política de dissuasão e defesa”. Atualmente, países como Itália, Holanda e Bélgica, entre outors, abrigam dezenas de ogivas que o secretário-geral da OTAN recentemente garantiu estarem prontas para o uso.
Embora a aliança ainda não esteja envolvida diretamente, diversos membros, inclusive Portugal, República Tcheca, Espanha e Alemanha, já enviaram equipamentos militares para as forças ucranianas, inundando de armamentos um país de cidadãos transformados em milicianos –especialmente desde que o governo decidiu convocar a população distribuindo metralhadoras— e abastecendo um exército composto inclusive por batalhões neonazistas proveninentes de antigos grupos paramilitares. Note-se que enquanto acadêmicos e líderes empenhados em legitimar tais ações dizem que o já famigerado Batalhão Azov é agora parte das forças regulares e está “despolitizado” –ou seja, “limpo” daquelas influências– há evidência até das mesmas esferas de que isso não ocorreu. As forças ucranias seguem infiltradas e em parte até mesmo inspiradas por neonazistas. Assim, seguem fustigando ataques a Donbass contra russo-falantes e a perseguição brutal a comunistas ucranianos, cujas denúncias parecem não ter comovido a liderança europeia, mesmo com os questionamentos levantados pela esquerda no Parlamento Europeu.
Portanto, considerando o papel da OTAN e seus membros neste e em outros conflitos e ameaças nas diversas latitudes, as revisões do seu conceito estratégico não são mero exercício retórico, assim como a chamada “Guerra Fria” não foi mero posicionamento dissuasor. Como naquela confrontação indireta teve consequências muito concretas e devastadoras para os povos, a exemplo do Vietnã, da Coreia, da Iugoslávia e dos golpes militares e cercos instigados e implementados pelos EUA na América Latina e na África para derrubar governos progressistas tidos como aliados da União Soviética, a definição das “ameaças” contra as quais a OTAN conintuará mobilizada teve e continuará a ter consequências concretas em todo o mundo. O exemplo mais midiatizado hoje é certamente a Ucrânia, embora definitivamente não seja o único.
Por isso, preparando-se para uma contra-cúpula em Madri, a exemplo de eventos já realizados em Lisboa, Dublin e Bruxelas no passado recente, os movimentos sociais e forças populares anti-imperialistas em todo o mundo, inclusive membros do Conselho Mundial da Paz, preparam-se para reforçar a contínua campanha pela extinção da OTAN como um bloco político-militar ofensivo responsável pela confrontação generalizada que impede a consolidação da paz e mantém os povos sob a ameaça constante da guerra.
Veja aqui a coleção de matérias, entrevistas e declarações do CEBRAPAZ sobre a OTAN
*Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional e integra a Direção Executiva do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (CEBRAPAZ).
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