Clássico francês relançado pela EdUFSC denuncia racismo cultural na Universidade

    os_herdeiros_edufscPor Moacir Loth.

    Há meio século os pensadores Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron inauguravam uma “nova fase na pesquisa sociológica” com a publicação do clássico Os herdeiros: os estudantes e a cultura, que denuncia, cientificamente, a “origem social” como causa do “fracasso” e da “eliminação” das classes menos favorecidas na escola e nas universidades. Traduzido por Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle e relançado pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (EdUFSC), o livro desmascara o sistema de ensino francês, provando que “são fatores culturais” que determinam “as escolhas, o prolongamento da escolarização e o sucesso escolar”. Graças ao seu entorno familiar, constatam, as classes altas adquirem e reproduzem seu status cultural, perpetuando as “desigualdades” e “injustiças” nos processos de escolarização em todos os níveis, mas sobretudo no ensino superior. É quase “por osmose” que se provoca a exclusão, resumem.

    Ione Ribeiro Valle, professora do Centro de Ciências da Educação da UFSC, reportando-se aos autores, sublinha que, “por vias secretas e amplamente legitimadas”, o sistema de ensino “fabrica” uma verdadeira “aristocracia social”, fazendo “perdurar uma lógica de castas sob uma fachada de racionalidade meritocrática”. Em 1996, Ione publicou pela EdUFSC Burocratização da educação: um estudo sobre o Conselho Estadual de Educação do Estado de Santa Catarina. E neste ano está lançando a segunda edição de Sociologia da Educação – Currículo e saberes escolares, incluída na Série Didática da editora.

    O autor de Homo Academicus, Pierre Bourdieu, também traduzido por Ione para a EdUFSC, batiza o fenômeno de “racismo de classe”, que, em última análise, preserva os privilégios econômicos, sociais, políticos e culturais nas sociedades modernas. Bourdieu e Jean-Claude Passeron, baseados em enquetes e pesquisas, rasgam o “véu da neutralidade” dos mecanismos de reprodução social ancorados numa suposta “democratização da educação”. Os autores defendem políticas públicas permanentes para “neutralizar metodicamente a ação dos fatores sociais de desigualdade cultural”, invocando, inclusive, a questão de gênero, exposta com a discriminação das alunas.

    As chances de acesso ao ensino superior, de acordo com as pesquisas, encontram-se diretamente ligadas à origem social. Um filho de “quadro superior” tem oitenta vezes mais chances de ingressar na universidade do que um filho de operário. “Na verdade, para as classes mais desfavorecidas, trata-se pura e simplesmente de eliminação”, diagnosticam os filósofos ao “desmontar o mito da escola republicana proclamada como instrumento de democratização e de promoção de mobilidade social”.

    Embora concebidos em outro contexto e desconectados com a história brasileira, os conteúdos oferecidos pelo clássico francês não deixam de ser oportunos para debates, reflexões e decisões. Pierre Bourdieu e Jean-Claude são, 50 anos depois, aliados da política de ações afirmativas, que estabelece, contra “a eliminação”, cotas para o ingresso e permanência de índios, negros e oriundos de escolas públicas nas universidades brasileiras. Provam que o vestibular é, com certeza, segregador social, político e cultural!

    Os autores constatam que “as classes altas enxergam na ideologia uma legitimação de seus privilégios culturais que são assim transformados de herança social em graça individual e mérito pessoal”. Dissimulado ou mascarado, o racismo de classe ou de inteligência “pode se exibir sem jamais aparecer”. Enfim, concluem, “a eficácia dos fatores sociais de desigualdade é tamanha que a igualização dos meios econômicos poderia ser realizada sem que o sistema universitário deixasse de consagrar as desigualdades pela transformação do privilégio social em dom ou em mérito individual”.

    Para os pensadores, o privilégio cultural fica evidente “quando se trata da familiaridade com as obras que somente a frequentação regular do teatro, do museu ou do concerto pode oferecer”. Estabelecendo chances, condições de vida ou de trabalho totalmente diferentes, a origem social, na opinião dos filósofos, “é, de todos os determinantes, o único que estende sua influência a todos os domínios e a todos os níveis dos estudantes”. Denunciam que a “cegueira às desigualdades sociais” autoriza a explicar a injustiça como “desigualdades naturais, desigualdades de dons”.

    Bourdieu e Passeron ponderam que “as políticas das democracias populares podem tender a favorecer sistematicamente a entrada no ensino superior e o sucesso nos exames dos filhos de operários e de agricultores”. Acrescentam, porém, que “o esforço de igualização permanece informal enquanto as desigualdades não forem efetivamente abolidas por uma ação pedagógica” implementada dentro de uma política pública de Estado.

    A obra reeditada mereceu resenha crítica publicada no Caderno de Cultura (DC) e na revista Subtrópicos (EdUFSC). Docente do Programa Multidisciplinar em Ciências Humanas da UFSC, Alexandre Fernandez Vaz destacou que “na escola a alta cultura se reduz a um pastiche, inútil para os já preparados e nocivo para os que não a trazem como herança”, o que acaba por reproduzir o fenômeno da exclusão. Para o crítico, os autores “predicam uma educação como expressão de transformações mais amplas na sociedade”, já que almejam “uma escola que leve a sério, com suas técnicas e métodos, o ensino da cultura erudita para todos”.

    O fato é que, ainda hoje, independentemente das realidades e diferenças de cada país, Os herdeiros e Homo Academicus são obras que mexem e reviram as entranhas da academia. No Brasil e no mundo.

    Fonte: Agecom.

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