Caravana das Originárias revela o protagonismo da mulher indígena em meio a desafios

Entre relatos de violência, mulheres indígenas reúnem-se para somar forças e buscar soluções. A caravana resultará em um dossiê com relatórios sobre os problemas e desafios encontrados e a busca de soluções. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

Por Wérica Lima, para Amazônia Real. 

Manaus (AM) – O barulho dos maracás, as pinturas de jenipapo e urucum, junto com os cantos tradicionais, revelam na mulher indígena a força ancestral que vem das florestas, lutando há décadas pelo direito de existir. Elas reúnem-se na aldeia ou na cidade, presencialmente ou online, para demarcar seus territórios, as telas e somar forças na busca por existir e acessar direitos negados.

É com essa garra que as indígenas da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) realizam a primeira Caravana das Originárias da Terra, uma jornada de mobilização que percorre cidades localizadas nos seis biomas do Brasil. Elas buscam protagonismo, acolhimento, reflexão e fortalecimento.

A Caravana começou em maio deste ano e já realizou 10 encontros presenciais em cidades representativas de quatro biomas – Caatinga, Cerrado, Pantanal e, agora, Amazônia. Antes do Amazonas, a mobilização já passou por Ceará, Pernambuco, Maranhão, Pará, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Cerca de 45 povos diferentes e mais de 700 mulheres já participaram diretamente e três mil indiretamente.

Em Manaus, 80 mulheres indígenas reuniram-se nos dias 18 e 19 deste mês. Os próximos biomas serão Mata Atlântica e Pampa, no sul e Sudeste. A Anmiga planeja participar de encontros regionais das articulações de mulheres indígenas em Tocantins (TO), Salvador (BA) e Dourados (MS) e tornará a caravana permanente, alcançando territórios não visitados em 2022 nos próximos anos.

A Caravana das Originárias da Terra é resultado de uma luta que transcende as gerações de mulheres e representa uma conquista a todas aquelas que no passado sofreram e lutaram para terem suas vidas, artesanatos e territórios respeitados.

“Nós estamos aqui para dizer que esses espaços precisam ser ocupados para levar nossa história. Nós mulheres sofremos muito, muitas mulheres estão silenciadas por todos os tipos de violência, não só a violência doméstica, mas as que já sofreram todos os tipos de violências possíveis”, afirma Isabel Dessana, 35, doutoranda em antropologia social pelo Museu Nacional da UFRJ, integrante da coordenação da Anmiga e uma das organizadoras da edição da caravana em Manaus.

Mesmo com o crescimento de organizações, movimentos e atos referentes à luta indígena, até 2019, por exemplo, as mulheres não tinham uma programação voltada a elas no Acampamento Terra Livre (ATL).

Foi nos intervalos das programações de 2017 do ATL que as mulheres começaram a falar de aspectos mais específicos, como representatividade nos espaços de poder, violência de gênero e bioeconomia. “Mesmo assim a gente sentia dificuldade porque os homens ficavam o tempo inteiro tentando criar coisas para ficar ali na frente, subir no palco, pegar o microfone, falar que ia começar a reunião das mulheres indígenas e tentar ficar à frente. Era nosso espaço, queríamos que deixassem a gente falar”, afirma Ana Patté, uma das co-fundadoras da Anmiga. Ana é do povo Xokleng da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, em Santa Catarina.

Organização nas redes sociais

Ana Patté (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

primeira marcha das mulheres indígenas, que reuniu mais de três mil pessoas em Brasília, em 2019, foi um marco para a criação da Anmiga. Seminários, rodas de conversa, reuniões online e grupos de Whatsapp ajudaram a formar uma rede sem homens e sem uma liderança máxima em meio à pandemia, abrindo portas para que todas participassem das decisões e tivessem nacionalmente uma articulação própria.

A Anmiga nasceu em março de 2021 e começa a ir além das marchas para ocupar os espaços de poder e abrir caminhos para que os direitos sejam aplicados na prática.

A Caravana das Originárias já visitou dez regiões diferentes e em cada lugar identifica vivências semelhantes enfrentadas pelas mulheres nas bases e cidades, ao mesmo tempo em que ressalta a especificidade de cada território, conforme explica Ana Patté.

Esses pontos estão sendo documentados em relatórios feitos pela Anmiga em cada lugar onde a caravana passa. Esses documentos formarão um dossiê a ser encaminhado para organizações governamentais e não governamentais para reivindicar soluções, amparo e direitos.

Os desafios da mulher indígena

Isabel Cristine, do povo Munduruku (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Entre os pontos documentados estão, por exemplo, o racismo estrutural no Nordeste, os empreendimentos e hidrelétricas nos territórios indígenas no Pará e a falta de estrutura e subsídios para as mulheres indígenas que são chefes de família em Manaus (AM).

“Essa foi uma das pautas que a gente mais ouviu, junto com a dificuldade que elas sentem por serem empreendedoras e não terem um espaço, um local fixo para ter suas exposições e vendas. Porque isso é um trabalho, é a forma como alimentam suas famílias”, diz Ana Patté sobre as reivindicações das mulheres indígenas em Manaus.

Outra questão levantada em Manaus foi a necessidade da história indígena estar na grade curricular das escolas da cidade, sem estereótipos. As mulheres relatam dificuldades provocadas pelo preconceito, racismo e desconhecimento sobre os povos indígenas, além da falta da língua nativa no ambiente escolar.

Para Isabel Cristine, do povo Munduruku, mestranda em história intelectual pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), enquanto a educação não tiver a perspectiva indígena de forma integrada, as histórias, a cultura e a língua serão apagadas.

“Em ambos os espaços nós somos condicionadas a uma situação de subalternidade. A diferença é que, quando estamos nas universidades, de alguma maneira ocupamos um espaço de poder e este poder possibilita que nossos corpos sejam levados a outros lugares a partir da nossa fala”, diz Cristine. “A gente aprende desde o ensino básico a partir do conhecimento do não indígena”.

Ela critica os estereótipos reproduzidos pelos professores e o reflexo disso na sociedade. O padrão de mulher branca, com suas experiências e problemas, ainda predomina e todas são vistas a partir de um ideal feminino que não inclui as questões da mulher indígena.

“Nós, mulheres que estamos em contexto urbano, passamos a retrair nossos comportamentos e nossos hábitos exatamente para não sermos ridicularizadas dentro dessa sociedade. É violento conosco e foi com nossas avós, mães”, acrescenta.

Agressão ao corpo território

Braulina Baniwa (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Apesar do movimento de representatividade, Braulina Baniwa, integrante da Anmiga, diz que a ocupação ainda é pouca. “Se falarmos sobre ocupar espaço nas instituições, somos bem poucas, ainda não dá para dizer que a gente está numa representação. Eu não falo da invisibilidade, mas da própria ausência do corpo indígena nos espaços”.

Com o aumento de invasões nos territórios, os crimes contra a mulher praticados por madeireiros, garimpeiros e fazendeiros também têm sido intensificados. Braulina conta que diversas denúncias chegam até a Anmiga relacionadas a estupros. Outras violências, como as patrimoniais, de saúde e sexualização também são frequentes.

“A gente trabalha com o conceito do corpo território, porque a terra também é nosso corpo. Quando uma de nós é morta de forma violenta, a gente morre um pouquinho com ela. Para esse enfrentamento só as mulheres podem trazer estratégias de cuidado e acolhimento. Falar de violência de gênero é também pensar no bem viver dessa mulher, para que ela possa transitar no espaço sem que o corpo dela seja utilizado”.

Violência de gênero e racismo estrutural

A cacica Terezinha Ferreira, na aldeia Gavião, no Tarumã-Açú
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Seja nos espaços formais ou não formais, no trabalho, escola ou aldeia, as mulheres estão sucessivamente sendo invalidadas pelo seu gênero e pelo racismo estrutural de décadas.

“Você não sabe o que diz, não entende de nada” é uma frase que percorre a trajetória de Terezinha Ferreira, 47, do povo Sateré-Mawé, e se repete nos depoimentos e denúncias daquelas que ocupam cargos, lideram e não se calam.

Terezinha, que mora na aldeia Gavião, na região do Tarumã-Açu, em uma área ribeirinha de Manaus, faz parte da Comissão de Saúde da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime) e da Associação de Mulheres Indígenas do rio Tarumã Açu (Amirta). Ela denuncia as perseguições que sofreu junto com tentativas de silenciamento durante os oito anos em que foi conselheira no Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) em seu território.

Ao ver a necessidade de acesso à saúde nas comunidades onde mora, ela decidiu não se calar e buscar melhorias como botes para remoção de pacientes. Quando ficava à frente das ações e tomava decisões, era interrompida por homens que desacreditavam de sua capacidade.

“Sempre quando nós mulheres nos colocamos, os homens acham que somos incapazes,  como ouvi muito falar: ‘Você não sabe’. Mas eu busquei conhecimento, procurei ler o regime, a Constituição, para poder saber o que estava fazendo. Não foi fácil porque os parentes indígenas olham para a gente assim, mas a gente sabe o que está fazendo sim”, ressalta Terezinha.

O acesso à saúde que era mais difícil no passado no seu território, está melhor agora. Ela acredita na força da mulher para transformar os espaços e buscar melhorias.

“Eu vi a necessidade da saúde na base como hoje está. Os homens ficam meio distantes, sempre nas nossas reuniões a gente vê eles encostados e tem muitos que não dão valor às nossas conversas. Mas na nossa área já tivemos conquistas, hoje estamos com a articulação das mulheres no Tarumã Açu e vejo que cada vez mais temos que tomar espaço”, afirma.

Reunida às outras mulheres que formam uma grande rede, Terezinha encontra forças. Para ela, a falta de respeito pela luta e conquista da mulher e a perseguição são frustrantes. “Tenho uma força tão grande, que Tupã me ajuda, a de não desistir e guiar nosso trabalho como mulher. Teve uma hora que, se não fosse a Makira-Êta, o grupo da Copimi e as mulheres que são do nosso movimento, eu não teria conseguido”.

Acompanhado da violência de gênero, o racismo estrutural há décadas está associado às indígenas até mesmo no ambiente familiar. Danielle Brito, do povo Munduruku, de 39 anos, professora de letras na Ufam de Humaitá, no sul do Amazonas, e doutoranda em estudos da linguagem pela UFMS, cresceu vendo o próprio pai desprezar a existência das filhas e da esposa, por terem origem indígena.

Nascida na TI Coatá-Laranjal, a mãe de Danielle veio para Manaus ainda criança, aos 5 anos. Trabalhando em casa de família como muitas indígenas que tentam a vida na cidade, conheceu o pai de Danielle, um homem branco de boas condições financeiras.

O relacionamento abusivo era marcado por falas sexistas e machistas, atreladas ao racismo. “Constantemente ele falava que ela tinha que aceitar a situação, que não podia reclamar pois veio do ‘mato’ e não tinha família, não tinha para onde ir. Esse discurso a gente ouvia sem entender”, lembra Danielle.

A origem mantinha-se escondida e a única coisa que Danielle sabia era que pertencia ao povo Munduruku. O pai dizia que ela estava cada vez mais parecida com a mãe. “ Ele estava querendo dizer que os nossos traços indígenas estavam se manifestando e parecia que aquilo não era uma coisa positiva. Ela [minha mãe] sempre se desculpava, pedia desculpas pois não gostaria que a gente carregasse esse fardo, era como se fosse um fardo para ela, e o meu pai sabia e utilizava isso como uma forma de violência psicológica”, conta.

Após a separação no relacionamento, Danielle cresceu e começou a levantar questionamentos e estudar sobre suas vivências, aproximando-se de movimentos políticos e sociais até chegar aos indígenas.

“Somente no doutorado foi que eu me aproximei do movimento indígena. A partir daí a mamãe começou a entender que não era vergonha ser Munduruku, que ela não tinha culpa de nada e que foi um processo de colonização. Hoje ela passa por um processo de se identificar enquanto mulher indígena e de se sentir orgulhosa do seu lugar de origem”.

O artesanato que alimenta

A artesã Marinalva Tikuna (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Entre trançados e sementes, as bolsas e os acessórios ganham forma e iluminam o caminho das mulheres que vendem artesanato, compram suas comidas e bens necessários para viver. Manaus é também a aldeia de muitas jovens que saem das bases em direção às cidades para estudar e levar a cultura adiante.

Do Alto Solimões, Marinalva Celestino, do povo Tikuna, 31, da comunidade Wotchimaücü, veio para Manaus aos 24 anos, quando seu pai a incentivou, junto com seu irmão, a cursar uma graduação.

Estudante do 7º período de enfermagem na Uninorte, Marinalva teve uma longa jornada até chegar onde está. Nos seis primeiros meses em Manaus, além da dificuldade em falar português, começou a trabalhar como empregada doméstica e seus cabelos, olhos e corpo incomodavam a patroa, que a tratava como um ser inferior.

Tímida e sem estar acostumada com a agitação da cidade, ela se isolava e não se encaixava nas realidades, com uma solidão reprimida pelo preconceito e racismo, chegando a trancar a faculdade no 2º período.

Após decidir parar de esconder sua cultura, começou a trabalhar com o que sabia fazer: artesanato. É da venda dos acessórios e bolsas que hoje ela paga a faculdade de enfermagem.

“Quando eu mudei para o Parque das Tribos, comecei a trabalhar com artesanato e aí minha vida começou a mudar completamente. Conheci minhas amigas que deram conselhos para ser decidida, aceitar a cultura. Então voltei para a faculdade, comecei a vender os produtos e a cada mês alcançar as metas para poder pagar o curso”, conta Marinalva.

Mas como nem tudo são flores, o retorno não é muito, já que há “pouco comprador” e não há espaço físico para as vendas. Além do dinheiro para alimentação e despesas, ela precisa pagar a mensalidade do curso. Na rua, em exposições e galerias, Marinalva oferece o artesanato em busca de compradores. Antes de conseguir um terreno no Parque das Tribos, o primeiro bairro indígena de Manaus, ela também pagava aluguel.

Às vezes, quando tem dificuldade, vende o artesanato mais barato. A mãe, que mora na aldeia, envia de cinco a três dúzias de artesanato por mês para ajudar. Mesmo com tanta luta, Marinalva não pretende desistir. “Eu vou continuar a trabalhar com artesanato. Eu amo muito, vale a pena para mim”.

A mãe das associações e a importância da Anmiga

1ª Jornada Caravana das Originárias da Terra 2022, da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas, Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga)
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

A Associação das Mulheres Indígenas do Alto rio Negro (Amarn), fundada em 1987, é a mais antiga das associações registradas no Brasil. Com sede em Manaus, ela surgiu a partir das condições a que as mulheres eram submetidas na capital amazonense e nos espaços em que frequentavam. Com o tempo, as reuniões feitas em uma casa cedida foram tomando forma e crescendo, incentivando o surgimento de novas organizações e movimentos.

O resultado da luta das avós e mães da Amarn e de outras associações históricas são materializadas nas conquistas, encontros e por meio da fundação da Anmiga, que forma um núcleo nacional.

Isabel Dessana cresceu em meio a essas mulheres, integra a Amarn e faz parte da Anmiga. Para ela, sem o passado é impossível existir o presente.

“Hoje estamos ocupando esses espaços porque as mulheres do passado fizeram isso antes da gente. Na época elas não tinham voz e nem vez. Esse espaço foi conquistado através de muitas lutas. As mulheres ocupando esses espaços também vão abrindo portas para as novas gerações que estão chegando”, diz.

Os paradigmas e tabus quebrados por meio dos encontros possibilita a formação de redes de apoio e escuta.

“Essa caravana para mim é muito importante porque é aqui que eu troco ideias. O que eu aprendo aqui eu tenho que levar para o meu povo também, pois a maioria ainda não está sabendo o que eu passei na capital, o que está acontecendo comigo dentro e fora da faculdade”, ressalta Marinalva Tikuna.

Para Danielle Brito, a escuta, a dança e os diálogos são a porta de entrada para a cura. “A Caravana das Originárias da Terra é super importante porque aqui a gente olha para outras mulheres. Cara a cara a gente vê realidades que se repetem, cada uma passa por violências diferenciadas e quando nos falamos, olhamos, nos curamos. A partir daí a gente cria uma rede de proteção e fortalecimento”.

Chamadas internacionalmente de “guardiãs da floresta”, Isabel afirma que não é fácil manter o trabalho. “A nossa luta não é só por uma causa, mas por todas as causas, trazendo os nossos conhecimentos ancestrais, culturais, a luta pelo meio ambiente, trabalhar isso nas nossas associações de base e levar para o coletivo”.

“A gente também espera colaborar nesse processo de fortalecimento para que elas se encontrem mais vezes e reivindiquem com o nosso apoio esses espaços. Nosso desejo é que todas as mulheres tenham comida na mesa e que comam de suas roças porque a gente só vai ter de fato uma mulher saudável se ela tiver o território dela demarcado e se esse corpo território que também está em outros espaços for respeitado”, conclui Braulina Baniwa.

Para contribuir com a Caravana e apoiar a jornada das mulheres indígenas pelo Brasil, é possível doar através de uma vaquinha no site oficial da Anmiga.

Marcha das Mulheres indígenas em Brasília em 2021 (Foto: Leonardo Milano)

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