“Quando as leis tumultuam esta ordem superior, imutável porque ancorada ao próprio sentido da vida, eis que se perdem os pontos de referência mais fortes e se corre o risco de escorregar no declive das distinções hierárquicas: é assim que nascem as normas racistas, a xenofobia, o nacionalismo mais tosco”, escreve Raffaele K. Salinari, intelectual, jornalista, médico especialista em Cirurgia de Urgência e Obstetrícia, que trabalhou por vinte anos na África, Ásia e América Latina, como médico responsável por diversos programas de desenvolvimento sócio-sanitários, em artigo publicado por Il Manifesto, 28-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Carola Rackete, Comandante do Sea Watch 3, é certamente uma figura que pode ser definida como “trágica”. A memória volta à Antígona de Sófocles, que escolheu a misericórdia para com o corpo do irmão não sepultado e por isso foi condenado pelas leis que o novo soberano havia promulgado. E, no entanto, há algo além das leis, aliás, há algo antes das leis, e é isso que nos faz sentir profundamente o sentimento de pertencer à mesma espécie: aquela humana. Quando as leis tumultuam esta ordem superior, imutável porque ancorada ao próprio sentido da vida, eis que se perdem os pontos de referência mais fortes e se corre o risco de escorregar no declive das distinções hierárquicas: é assim que nascem as normas racistas, a xenofobia, o nacionalismo mais tosco; por norma de lei se erguem muros e se demolem pontes, se fecham portos e os produtores de arame farpado veem aumentar o preço do seu clássico produto.
A recusa em acolher os náufragos do navio da ONG por parte do Ministério do Interior, situa-se exatamente deste lado do divisor de águas entre justiça e lei do mais forte, tentando assim, de forma manipulada, destruir outro tijolo daquela barragem para a proteção dos Direitos Humanos fundamentais erigida pelas Nações Unidas depois da tragédia da Segunda Guerra Mundial. É isso que está em jogo, nada menos, e o Presidente da República o percebeu perfeitamente quando, por ocasião do Dia Mundial do Refugiado, reafirmou a necessidade de que a Itália cumpra seus deveres de solidariedade, assistência e acolhimento, conforme previsto pela Constituição italiana e pelo direito internacional.
E pretender tratar as questões globais, como aquelas migratórias, muitas vezes ligadas à pobreza, às guerras ou às mudanças climáticas, em nível nacional, ou até mesmo regional, revela uma miopia que as ondas de calor desse tórrido verão tropical deveriam, ao contrário, enquadrar em um cenário invertido: o da cooperação internacional, a começar pela luta contra as mudanças climáticas e a busca pela paz. Inclusive sobre isso o governo liderado pela Lega está tentando impor sua visão instrumental e arrasadora de cooperação internacional.
Enquanto na Líbia, de fato, se combate abertamente e, portanto, de modo algum este país poderia ser considerado um porto seguro, o Decreto de Segurança bis estabelece para o Ministério de Relações Exteriores e Cooperação Internacional um “Fundo de recompensa pelas políticas de repatriação”, que liga as intervenções de cooperação italiana com os países parceiros a uma “colaboração especial” destes últimos na repatriação de sujeitos irregulares. Ora, dado que se está apelando para as leis, mas obviamente em corrente alternada, ou seja, apenas aquelas criadas por este Governo, ignorando as anteriores, devemos lembrar que a lei reconhece à cooperação para o desenvolvimento os objetivos de: erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades; proteger e afirmar os direitos humanos; prevenir os conflitos e fortalecer as instituições democráticas.
O Fundo proposto distorce, portanto, as finalidades básicas da cooperação para o desenvolvimento, introduzindo pela primeira vez de forma formal um princípio de condicionalidade sobre as ajudas, que responderiam a interesses nacionais italianos mais que a objetivos de desenvolvimento. E assim, enquanto por um lado as ONGs são acusadas de estar do lado dos traficantes de pessoas, pelo outro se decide propiciar a abertura de um “mercado de repatriações” no qual os países parceiros podem esperar receber um valor por políticas de readmissão colaborativa. É por isso que, em uma recente carta aberta, mais de 40 ONGs pediram ao primeiro-ministro Conte para recorrer às suas responsabilidades para garantir que as operações de desembarque dos náufragos do Sea Watch 3 possam ser conduzidas nas próximas horas, garantindo a oportuna e imediata responsabilização pelos menores ainda a bordo e por todas as outras pessoas necessitadas de cuidados e apoio. Continuar a ser humanos, significa isso também.