Cada qual segue um protocolo conforme suas crenças e interesses. Evânia Reich na Retrospectiva Semanal

Foto: Pixabay

A face escondida do sofrimento social em épocas de pandemia

Por Evânia Reich, para Desacato.info.

Cada vez mais a descrição da realidade do sofrimento tem sido constituinte de uma das tarefas essenciais de políticas fundamentais. Pensar as causas do sofrimento social através de um diagnóstico de realidades que não deveriam existir é um dos objetivos principais da filosofia. Ainda que seja impossível fazer uma teoria do sofrimento das pessoas, porque como diz o filósofo Ortega y Gasset; ninguém pode sentir a dor do outro, é possível teorizar as suas formas de expressão.

Essas formas de expressão estão presentes no mundo do trabalho, no mundo do desemprego, na vida dos moradores de rua, na pobreza, nas famílias em situação de vulnerabilidade, e tantas outras formas de vida.

A falta de trabalho, ou a sua má remuneração, ou a sua incerteza ou as pressões neste acarretam um prejuízo de cunho material e na maioria das vezes igualmente imaterial. O prejuízo material pode levar os indivíduos ao mundo da pobreza, da necessidade aos bens materiais mais elementares para a sobrevivência humana. E o prejuízo aqui designado imaterial leva os seres humanos a desqualificação social, à uma completa exclusão do mundo social.

Neste artigo a questão que eu gostaria de discutir é a de saber até que ponto as consequências da pandemia da covid-19 podem ser consideradas um sofrimento social e não um sofrimento individual. Em princípio o vírus causador da doença deveria ser considerado um fenômeno da natureza, da mesma forma que um tsunami, por exemplo. Afinal de contas nenhum sistema econômico ou governo teria criado o vírus ou a pandemia. (Ainda que seja correto afirmar que alguns governos foram mais vigilantes do que outros). Assim o sofrimento que tais fenômenos causam aos indivíduos, em princípio não poderiam ser considerados sociais. Isto é, não estariam relacionados às políticas de opressão, tais como advindas de governos neoliberais que oprimem os mais pobres, ou as classes trabalhadoras mais baixas na escala social.

No entanto, isso é uma meia verdade. Primeiramente porque devemos fazer uma distinção entre o vírus e a pandemia. Se nenhum governo ou sistema criou o vírus, não podemos afirmar com tanta certeza a respeito das causas da pandemia. A pandemia, distinta do vírus tem uma causa humana e suas consequências estão relacionadas em grande parte com a maneira com a qual os governos lidam com a situação. O vírus, sua contaminação causam um sofrimento individual, mas as políticas empreendidas antes e durante a pandemia estão diretamente ligadas ao sofrimento desses indivíduos. Por isso podemos afirmar que a pandemia é causadora de um sofrimento social.

Na medida em que presenciamos um colapso do mundo do trabalho em diversas partes do mundo, e sobretudo em países mais pobres do globo, incluindo o Brasil, inevitavelmente as políticas governamentais estão envolvidas nas consequências deste colapso. O descaso, por exemplo, como o governo brasileiro vem tratando a pandemia reflete diretamente na vida dos brasileiros. Não somente em relação ao tratamento da doença, com falta de políticas de saúde sérias, bem como na assistência às famílias mais atingidas.

Aqueles que perderam seus empregos ou os que já viviam no mundo informal, e os que moram em periferias e morros, com infraestrutura bem precária não enfrentam a pandemia da mesma forma que aqueles que possuem uma renda mensal assegurada, ou que moram em bairros com boa estrutura. Da mesma maneira o indivíduo que pode trabalhar em “home office” não corre os mesmo riscos que aqueles que são obrigados a pegar um transporte público e enfrentar todos os dias a possibilidade de serem contaminados, no próprio transporte ou no contato físico no trabalho. Também o isolamento social e o fechamento das escolas colocaram milhares de crianças para dentro de casa. Claramente tem-se um problema com o cuidado dessas crianças. Enquanto a classe média está na sua grande maioria preocupada com a questão da perda de conteúdo escolar, o que não é ilegítimo, uma massiva parte dos pais brasileiros não tem onde deixar seus filhos, e muitas vezes nem como alimentá-los, haja vista que milhares de crianças pobres são nutridas na escola.

Essas e inúmeras outras situações não mencionadas aqui fazem parte da miséria ultrajante pela qual passam as famílias e indivíduos brasileiros. Seria ingênuo de nossa parte pensar que essas consequências da covid-19 nada têm a ver com as políticas empreendidas pelo nosso governo atual. O sofrimento causado pela falta de assistência e de políticas públicas voltadas aos mais pobres é evidente, e não tem nada de natural.

É de uma importância crucial e urgente que possamos falar desse sofrimento social. Há um grande interesse pela parte do governo e do próprio sistema econômico capitalista em livrar a sua culpa em relação as consequências da pandemia, como se fosse uma fatalidade que não se pode evitar. Não somente o número de vítimas está ligado as políticas empreendidas no combate ao vírus, como também as consequências acima mencionadas.

Há uma gritante diferença das consequências da epidemia entre os diferentes países do globo. Muitos países europeus foram atingidos em larga escala, mas suas políticas voltadas ao combate evitaram mortes e adoecimentos, e por consequência sofrimento na população. Estas, que por confiarem em seus governos e em suas medidas se sentem muitos mais protegidos e menos vulneráveis, se compararmos por exemplo com o que ocorre no Brasil. Países como a Alemanha testaram massivamente a população. A França apesar de ter enfrentado, e ainda enfrenta grandes problemas, levou a sério o sofrimento de seus cidadãos. A Inglaterra apesar de ter negligenciado no início – e por conta disso esteve no topo dos países mais atingido – ainda assim deu uma assistência médica exemplar a todos os seus cidadãos, através do serviço publico de saúde (NHS).

E o que acontece no Brasil? Uma política desastrosa, que não somente é precária em termos de serviço hospitalar, com enormes défices de leitos e respiradores, bem como a propagação de falsos tratamentos por parte dos governos, quer seja federal, estaduais e municipais. Cada qual segue um protocolo conforme suas crenças e interesses. Desnecessário listar os inúmeros escândalos que advieram do governo federal e dos federados desde o início da epidemia.

O fato é que esta política desastrosa está na base do sofrimento pelo qual passa uma enorme parcela da população. Os que fazem parte da classe dos protegidos neste país também sofrem de alguma forma pela insegurança de contaminação, mas com certeza menos em relação a grande maioria dos pobres do Brasil, que já sofriam muito pelo descaso contante de políticas que sempre os negligenciaram.

O fato é que com a epidemia tem-se a impressão que a negligência e o descaso destas políticas foram escondidas, invisibilizadas pela naturalização do vírus. Como se a catástrofe de 100 mil mortes e milhares de famílias jogadas ainda mais na pobreza e na sargeta fosse algo advindo da natureza. Nada de natural têm-se aqui.

Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.

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