Brutalismo. A palavra refere-se, espontaneamente, a um movimento arquitetônico famoso pelo uso eficiente do concreto bruto. Ao optar por tomá-lo como o título de seu novo livro, Achille Mbembe propõe outro significado, ainda que o termo original continue ressoando em seu trabalho, já que arquitetura, política, verticalidade e materialidade habitam o pensamento do autor.
Brutalisme é um ensaio original e ambicioso, um livro de urgência, que sabe levar o tempo longo em consideração para enfrentar todas as principais questões do momento.
Esta é a tradução da entrevista concedida pelo filósofo Achille Mbembe a Sylvain Bourmeau, do canal France Culture sobre o seu novo livro Brutalisme (La Découverte, 2020), realizada no dia 25 de janeiro de 2020. Pela proximidade entre o que Mbembe denomina de brutalismo e o contexto brasileiro, escolhemos, para ilustrar esta publicação, uma imagem das demolições realizadas na comunidade Vila Autódromo, removida quase completamente sob o pretexto da construção do Parque Olímpico, no Rio de Janeiro.
Achille Mbembe é professor de História e Ciências Políticas na Universidade de Witwatersrand (Joanesburgo) e pesquisador do Wits Institute for Social and Economic Research (WISER).
A entrevista é publicada, em português, por Pragmatismos, 09-08-2020. A tradução é de Alexandre Mendes.
Eis a entrevista.
Bom dia, Achille Mbembe. Você é… bom, não sei mais como o descrever, porque você é historiador, cientista político, filósofo… [risos de Mbembe ao fundo]. Na verdade, era isso que eu queria dizer, você é um pensador, e um pensador que acaba de publicar um novo livro, Brutalisme, pela editora La Découverte. Um livro que, de um lado, se inscreve em uma bibliografia já considerável, porque nele são retomadas questões que você não cessa de reexaminar. Mas, de outro, você faz um reexame que acaba não voltando para o mesmo ponto de partida, porque, a cada vez, as questões são enriquecidas, e enriquecidas pela recepção do seu trabalho. Uma recepção que acontece, agora, nos quatro cantos do mundo. Você viaja bastante e encontra pessoas que leram o seu trabalho e com as quais dialoga. Além disso, você também se deixa afetar pela atualidade, sendo solicitado, de certa forma, a enfrentá-la em um livro.
Nós não temos tempo, em uma emissão, de abordar, adequadamente, a densidade da sua reflexão sobre o brutalismo. Eu gostaria apenas que a nossa porta de entrada fosse o próprio título do livro. Um título que pode surpreender porque, como você explicou na introdução, nós vemos o que é o brutalismo, diretamente, através dos prédios. É essa a relação que explica a escolha da palavra?
Não… A relação para mim, não obstante, é absolutamente evidente. Eu gostaria de dar um nome a um conjunto de experiências que são as nossas, não importa onde vivamos atualmente. Um nome a essa convergência absolutamente estreita que nós observamos entre a razão política, a lógica da nova tecnologia, que intervém em nossas existências, e um tipo de violência da qual, ao mesmo tempo, os corpos, os cérebros e a natureza são os alvos. Eu quis refletir sobre o que isso significa em relação ao que poderíamos chamar de história dos humanos neste planeta. Um planeta que está, nisso estamos todos de acordo, em franca combustão. Então, é a esse momento totalmente inédito que o termo brutalismo busca fazer referência.
Trata-se de um termo que, na realidade, poderia recuperar outra palavra que relacionamos a esse momento atual, da qual nós ficamos conscientes apenas recentemente, mesmo se ela foi criada já há bastante tempo: a palavra “Antropoceno”.
Bom… Nesta altura, não sei mais se eu utilizei o termo “Antropoceno”…
Não, acho que não! Eu procurei no livro, mas não encontrei. Não chega a ser um sinônimo, o que você chama de brutalismo, mas existe uma afinidade, não?
Existe uma grande afinidade. Mas eu utilizei outras imagens. Mencionei a combustão do mundo. Poderia me referir também a todos os desenvolvimentos do livro que sugerem e que colocam, de maneira direta, a questão de saber em que pé estamos – e por essa expressão quero dizer a humanidade inteira, a terra inteira, com um “T” maiúsculo, quero dizer este planeta, que vem se tornando cada vez menor. Trata-se de um planeta que será preciso, bem ou mal, compartilhar; que será preciso recuperar, pois já o danificamos o suficiente. Tudo isso para colocar de forma não catastrofista, espero, a questão da nossa sobrevivência, a questão da vida, a questão do vivo. E também a possibilidade de nossa extinção. Enfim, a questão de compreender o que sobrou do projeto da humanidade, entendida como humanidade livre.
Sem catastrofismo, você diz. No entanto, se trata…
Porque não podemos fazer isso! Porque na África, pelo menos, não podemos nos dar esse luxo.
Porque vocês estão alguns séculos à frente.
Porque nós fizemos a experiência da catástrofe já há muito tempo. E, no entanto, continuamos aqui. E o fato de que, efetivamente, nós ainda estejamos aqui, esse fato deveria se tornar o objeto não apenas de perplexidade, mas de um pensamento crítico.
Por bastante tempo você fez da África um terreno de pensamento porque havia esse continente de experiências, de uma história, aliás, de histórias muito importantes para se compreender. Mas, pouco a pouco, você se deu conta de que o planeta inteiro se transformava na África. Que havia um devir-África do planeta e que, na realidade, não havia um excepcionalismo africano. Havia, talvez, um laboratório africano.
Você o diz bem melhor do que eu mesmo. Escrevi um livro que se chama De la postcolonie (2000), que acabou de ser relançado pela editora La Découverte, e que se esforça a pensar a questão e a persistência da tirania. Assim, como você destacou no começo dessa transmissão, são textos que circularam e que foram recebidos em outros lugares. Essa recepção me possibilitou, então, revisitar o meu próprio ponto de partida. Acabei percebendo que aquilo que eu acreditava ser específico da África é composto, na verdade, de situações que são compartilhadas, mesmo que de maneira bastante diversa, em vários lugares. Então, comecei a compreender que a África era um laboratório, entre outros, do que se passa hoje no mundo. Assim, textos como Crítica da Razão Negra (2013/2018), Políticas da Inimizade (2016/2017) e Brutalisme (2020), fazem parte desse ciclo, que me permite refletir sobre o mundo, mas, evidentemente, a partir de um lugar.
Esse lugar, a África, como eu disse, se antecipou com relação a várias questões que encontramos hoje por todo o planeta e, especialmente, em um aspecto central do seu trabalho: a existência de uma “política dos corpos”, se podemos colocar dessa maneira.
Sim. É impressionante que os corpos, que antes imaginávamos, mais ou menos, descartados ou…
Substituíveis.
Isso, ou substituíveis… Que eles tenham se tornado, novamente, um centro ou um alvo principal de lógicas que são utilizadas atualmente: lógicas políticas, penso na militarização da polícia, a maneira como a polícia se transformou em polícia dos corpos; a lógica econômica, o corpo que se vende. Por exemplo, no livro menciono o negro americano que vende o seu plasma sanguíneo para sobreviver. A lógica tecnológica…
A gestão de nossa atenção pelos algoritmos, por exemplo.
Com certeza, o fato de não haver um corpo hoje sem próteses, um corpo humano que não seja, ao mesmo tempo, um corpo-objeto. E, portanto, essa política dos corpos está inteiramente no centro dessa nova série de reflexões. Sem contar os corpos fronteiriços, os corpos que são deixados em espaços-limiares, tudo isso demonstra uma preocupação central da nossa época, que consiste em saber o que fazer com os corpos supérfluos, com os corpos em excesso. Como iremos nos livrar disso que sobrecarrega, que ocupa um espaço. Um espaço que pensamos nos pertencer e que pode ser apropriado, se tornando objeto de um cálculo preciso.
Uma das formas de dar uma resposta, para alguns, consiste em, simplesmente, dividir a humanidade em dois. Um projeto executado, várias vezes, historicamente e geograficamente. Mas, dessa vez, estamos na escala do próprio planeta. Você cita, a propósito, Étienne Balibar sobre esse assunto.
Sim. Étienne tem um texto sobre o tema que é absolutamente certeiro, como a maior parte de seus textos, aliás. Creio que existe um processo que no livro chamei de “fraturação”. Você mencionou a divisão em dois. Tenho a impressão de que a divisão é… Ela é mais ampla.
Como nas células.
Isso. Como provocar uma redução ao estado de poeira daquilo que antes era uma unidade? Então, esse processo de “fraturação” me parece sistêmico. E os corpos estão, mais uma vez, no centro dessa lógica de “fraturação”.
Existem algumas coisas que são bastante antigas nessa política dos corpos, a respeito das quais a África esteve na primeira fileira do processo. Mas existem também fenômenos que são bem novos e que lhe interessam particularmente. Você mencionava a transformação digital e não faria qualquer sentido, seria totalmente anacrônico, querer ler o que se passou há muito séculos à luz das novas governamentalidades tornadas possíveis por essas transformações. O que surpreende é que isso afeta – relativamente [ênfase] – a totalidade do planeta de um modo que é independente do nível de riqueza.
Sim. Estou de acordo com essa constatação. Creio que isso seja novo. A nossa entrada num novo sistema tecnológico e a escalada que lhe é correspondente é um fenômeno que não existia há 25, 30 ou 40 anos. Alguns historiadores acham que nunca há nada de novo no cenário, mas eu creio que a novidade faz parte do real. E a escalada tecnológica é algo novo. Ela é nova pelo esforço de domesticação da velocidade. A velocidade se transformou numa arma. [Paul] Virilio destacou isso já há bastante tempo, mas foi antes…
Antes do comércio de computadores, por exemplo.
Isso, antes. O tempo agora implodiu completamente. Não parece existir mais uma relação entre passado, presente e futuro. Na verdade, é como se, não apenas o tempo restasse fragmentado, compartimentado, mas é como se houvesse uma evisceração de toda ideia de futuro. Uma evisceração que permitiria mergulhar os novos sujeitos em uma espécie de presente infinito, instantâneo. Que não seria necessariamente o fim da história, mas que transformaria os parâmetros a partir dos quais tempo e subjetividade estão relacionados. Isso criaria figuras e sujeitos totalmente novos que não são, de forma alguma, os sujeitos imaginados pelo Iluminismo. Esses sujeitos estavam, supostamente, no fundamento da democracia liberal. Então, nós conservamos a forma da democracia liberal, mas os sujeitos que deveriam dar vida ao conteúdo dessa democracia não são mais os mesmos. Saber como pensar essa espécie de dissociação é uma das questões fundamentais da nossa época.
Esse tipo de presentismo, no qual estamos situados, essa omnipresença do presente, converge hoje, e você há pouco comentava sobre o catastrofismo, com representações “colapsologistas” do futuro.
Sobre esse ponto, eu dizia que na África não podemos nos permitir o luxo da colapsologia. Por razões bem evidentes. Em todo caso, digo para alguns entre nós.
Mesmo o afrofuturismo?
O afrofuturismo, mas… O que me impressiona quando eu viajo pela África e chego nas grandes cidades, essas espécies de megalópoles – Abidjan, Lagos, Kinshasa, Casablanca, Argel etc. – é o fato de que há muita gente. Tem sempre muita gente e todo mundo está fazendo alguma coisa. O que eles fazem? Muitos estão ocupados em consertar alguma coisa. Pode ser um sapato, uma casa, uma porta, um tecido, um pano que rasgou. Uma prática de reparação…
De pessoas também, às vezes.
De pessoas também, machucadas etc. Sobre essa prática de reparação, penso que ainda não dedicamos toda a atenção que deveríamos. Seja como prática social, mas também como operação mental na qual está em jogo um determinado saber, certas inteligências, certos conhecimentos etc. Portanto, ao invés de falar em colapsologia, eu prefiro me concentrar nesses micromecanismos de recuperação das práticas de tecelagem, de reparação da matéria viva, que nos serão necessários para enfrentar esta nova fase da história humana. Uma fase que é inseparável, inclusive, da história geológica que você chamava, no início, de Antropoceno.
Bom, nós consertamos, nós reparamos os corpos, nós reparamos as próteses desses corpos que se tornam, cada vez mais, indissociáveis aos próprios corpos, a ponto da distinção entre humanos e objetos ter se turvado.
Sim, se turvou completamente. Na realidade, tudo aquilo que estávamos acostumados a resolver por oposição, escapa agora, de alguma forma, a essas dicotomias. Eu ontem estava em Bobigny e mencionei a história dos automóveis na África. Comentei a ideia de que, entre os automóveis, são poucos aqueles que efetivamente “morrem”. Isso porque, estamos sempre recauchutando esses automóveis. Uma peça de lá, outra que vem da Renault, outra da Toyota, outra de não sei mais qual marca etc. Nós colocamos todas elas juntas. Essa coleção de coisas aparentemente…
Esses são os verdadeiros híbridos.
Sim, com certeza. Essas são as sociedades verdadeiramente híbridas. Portanto, a emergência dessa forma híbrida, que me faz lembrar, aliás, para quem acompanha a literatura, dos textos de escritores como Amos Tutuola. Na realidade, ele invoca tudo isso já nos anos 1960. Ele extrai essas coisas de memória através da mitologia Iorubá, das mitologias africanas pré-coloniais, que correspondem, perfeitamente, ao momento tecnológico que vivemos. Não vou dizer que é a mesma coisa, mas, digamos, fui bastante tocado pela correspondência entre esses diferentes universos. Então, tudo isso interpela o pensamento, interpela o trabalho de criação artística, as áreas ligadas à imaginação. É algo que está muito longe da colapsologia e, me parece, é algo também bem mais entusiasmante.
E isso tem a ver com o animismo, tema sobre o qual você dedicou várias páginas em Brutalisme.
Sim. O que é o animismo? Bom, você sabe, animismo é um termo inventado no século 19 pelos antropólogos ocidentais, que chegaram até nós e que ficaram impressionados, justamente, por isso que acabei de descrever. Essa espécie de proliferação criadora, no interior da qual as pessoas, aparentemente, não conhecem distinções que seriam necessárias. E, assim, havia a impressão de que elas perdiam todo o senso de causalidade. Elas vinham das florestas, elas vinham das rochas, elas utilizavam máscaras às quais concediam um poder manifesto. De todo modo, do ponto de vista de uma razão reduzida ao seu sentido primeiro, tudo isso não fazia qualquer sentido. Então eles disseram: “olha, essas pessoas são animistas”. Elas creem em coisas que nós também já acreditamos, mas quando éramos crianças. Nós saímos dessa crença infantil. A diferença entre eles e nós é que nós saímos dessa crença e eles ficaram. Isso é o animismo. Na verdade, uma relação absolutamente complexa entre os humanos e os objetos. Ora, nós comentávamos há pouco, a nova era na qual entramos recoloca, em larga medida, a questão da nossa relação com os objetos. Nos séculos 18, 19 e 20, por exemplo, a convicção era de que o humano não era um objeto. A ideia segundo a qual o humano não é um objeto está na base das ideias modernas de emancipação, de liberação etc. Ora, hoje, muitos gostariam de ser tratados mais como objetos do que como seres humanos. Ontem, dei o exemplo do telefone celular. No meu caso, eu gostaria de ser tratado como o celular de Sylvain. Por quê? Porque Sylvain trata muito bem o seu telefone. O telefone está ali do seu lado o tempo todo. Ele lhe dedica bastante cuidado. Existem objetos que merecem mais zelo do que os próprios humanos. Então, esse desejo de objetificação, ou de objetalidade, encontrem vocês o melhor termo, me parece característico do momento contemporâneo. Esse desejo nos exige repensar algumas das categorias críticas que fundaram as nossas ideias do político e do comum, categorias válidas há até bem pouco tempo.
Agora, antes de voltar a falar do brutalismo, com Kaoutar Harchi, na segunda parte dessa transmissão, Achile Mbembe, poderíamos escutar uma parte do célebre álbum de David Byrne e Brian Eno, My life in the bush of Ghosts, porque com essa referência a Tutuola, teria tudo a ver. Os livros dele foram essenciais para a fabricação dessa música híbrida, e isso já tem bastante tempo, foi em 1981. Mas eu acabei escolhendo outra coisa, sabendo que você viria hoje, Achille Mbembe. É um estrato do novo álbum de Blick Bassy, “1958”.
Ah, muito obrigado.
Uma palavra sobre o Blick Bassy, “1958”, Achille Mbembe.
Se eu entendi direito, ele está cantando uma música em memória a Ruben Um Nyobé, que foi uma grande líder nacionalista de Camarões, nos anos 1950, e que foi assassinado pelas tropas francesas, em 1958. A memória de Ruben foi apagada por vários anos no período subsequente à independência, mas a sua lembrança ficou fortemente marcada em nossas mentes. É reconfortante ver que Blick, e outros, recuperam isso com a música.
Camarões é o país onde você nasceu, Achille Mbembe.
Sim, onde nasci. E de onde eu saí…
Notas do tradutor:
[1] A segunda parte da entrevista, não traduzida aqui, é dedicada à apresentação do livro da socióloga Kaotar Harchi, com algumas intervenções pontuais de Achille Mbembe. Kaoutar HARCHI é socióloga e escritora, autora do livro Je n’ai qu’une langue et ce n’est pas la mienne (Fayard, coll. Pauvert, 2016). N.T. Participa da segunda parte do programa, não traduzida nesta publicação.
[2] Sylvain Bourmeau. Jornalista, professor associado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, diretor do jornal AOC e produtor do programa La Suite dans les idées na France Culture.
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