Biografias interiores para geografias imperfeitas (XIX): Iara e Yara

 

Imagem de kalhh por Pixabay

Por Marco Vasques, para Desacato.info.

IARA

Ela agora é só um som ou uma palavra pintada nos noticiários. Yara jaz afogada entre as próprias paredes de casa. Nasceu com bolas de fogo nas mãos e nuvens de anjos nos olhos. Mal soube do uso correto das facas. Tinha a mente limpa como campos de flores jamais invadidos. Mas foi violada como se fosse um saco de areia ou um objeto sem importância a ser triturado por um homem doente de suas decisões. Atada no destino do ódio e amarrada na fogueira de mãos insanas. Yara, menina de seis anos, tem os olhos fixos na dor. No caixão branco, o corpo coberto de crisântemos amarelos nem parece que foi esfaqueado até a última gota de sangue. O olhar perdido e cheio de morte tinha um último desejo: encontrar um céu que jamais conheceu.

YARA

A enfermeira Yara nasceu com a impossibilidade de felicidade. Tem fogo estampado na face. Mãe zelosa, devota a maior parte de sua atenção para Milton, seu filho. Nascido com uma doença rara, ele não consegue executar as tarefas mais elementares, como comer, andar e lavar as mãos em dias de chuva. Fez-se enfermeira na crença de que o mundo pode ser melhor se nos dedicarmos, ainda que de maneira profissional, às agruras alheias. Mas tal dedicação não impediu o pior. Após três dias sem notícias, seu corpo foi encontrado carbonizado. O fogo da face interrompido por ciúmes. Yara agora é só cinzas molhadas pelo sereno matinal e a sua imagem é um punhado de terra refletida na xícara de chá, como se fosse um punhal atravessando o entardecer.

Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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