Por João Peres.
Arthur Chioro havia acabado de assumir o cargo de ministro da Saúde, em fevereiro de 2014, quando foi a um evento em Brasília. O que era para ser um momento descontraído virou uma reunião improvisada com Edmundo Klotz, então presidente da Abia, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos.
“Ele me trouxe um caderninho. Uma publicação muito bonita. Era algo que, se eu abrisse a gaveta, não teria como confundir. Algo que realmente se destacava”, recorda Chioro. “Havia três pontos-chave, três questões das quais a indústria não abria mão. Uma delas era que não se publicasse em hipótese alguma o Guia Alimentar.”
Não funcionou. Naquele mesmo ano o Ministério da Saúde publicou o Guia Alimentar para a População Brasileira, que inovou a forma como a alimentação saudável era vista: saíram as recomendações nutricionais complicadas, entraram diretrizes mais simples, focadas em comida de verdade – aquelas baseadas em ingredientes in natura e minimamente processados – e redução do consumo de alimentos industrializados.
A publicação nunca foi digerida pela indústria – e, agora, seus representantes viram em Jair Bolsonaro uma oportunidade para resolver o incômodo.
Foi a primeira vez que Chioro, hoje professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, detalhou como funcionou o lobby da indústria alimentícia na época. Klotz encerrou um período de 32 anos como principal representante de Nestlé, Danone, Unilever, Coca-Cola e companhia limitada. Quem assumiu seu lugar foi João Dornellas, que já manifestou publicamente a intenção de alterar as recomendações.
“O guia, em si, tem muita coisa boa, mas exclusivamente o capítulo que fala da escolha dos alimentos passa longe da ciência e da tecnologia”, afirmou em 26 de junho durante uma feira do setor chamada Fispal Tecnologia. Foi quando se deu dimensão concreta a uma movimentação surgida semanas antes nos bastidores do Ministério da Saúde. “E, aí, nós precisamos nos comunicar melhor com o nosso consumidor, com os nossos entes governamentais, inclusive, para tentar mudar essa ideia.”
No começo de maio, uma reportagem publicada na página da Rádio CBN sugeriu que o ministro Luiz Henrique Mandetta tinha intenção de alterar o guia. Defensores do documento se mobilizaram de imediato para evitar que o pleito avançasse. Fizeram ligações e agendaram conversas com alguns dos secretários do ministro para entender o que estava em jogo.
Integrantes da Coordenação Geral de Alimentação e Nutrição explicaram a Mandetta a importância do guia e o convenceram de que seria um erro promover alterações.
Em agosto, Luis Madi, diretor de Assuntos Institucionais do Ital, o Instituto Tecnológico de Alimentos, afirmou durante um evento do setor que essa é a hora de trabalhar pela revogação do guia. Ele tratou o assunto como “o grande desafio” para os próximos três anos, ou seja, o mandato de Jair Bolsonaro.
O Ital é uma estatal paulista criada nos anos 1960 a pedido da indústria e mantida pelas contribuições das próprias corporações para desenvolver produtos e embalagens. É um emblema da era dos ultraprocessados e, portanto, uma organização ameaçada pela ideia de que se evite esses produtos. “O Brasil deveria ter sido mais cuidadoso quando o Ministério da Saúde lançou esse guia porque criou uma confusão muito, mas muito forte no consumidor”, criticou Madi. Ao lado dele, Alexandre Novachi, diretor de Assuntos Regulatórios e Científicos da Abia, assentiu.
Enxurrada de comentários
O guia foi publicado após um longo processo, que envolveu consulta pública e muita pressão nos bastidores. A maior preocupação da indústria era tentar derrubar a recomendação de evitar ultraprocessados. Para isso, fez mobilização direta, mas também indireta, com uma enxurrada de manifestações de organizações científicas ligadas às empresas durante a consulta pública. Em especial duas: o International Life Sciences Institute e a Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição, patrocinada por Nestlé, Danone e afins.
“A gente viu a submissão de comentários idênticos, o que dá a entender que uma parceria foi feita”, me disse Camila Maranha, professora da Universidade Federal Fluminense. A tese de doutorado dela, defendida em 2017 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, investigou os conflitos de interesses durante a fase prévia ao lançamento do guia. No ano seguinte, o Ital, com o apoio das corporações da área, criou uma página para tentar defender a ideia de que não existe diferença técnica entre uma farinha de trigo e um Doritos: ambos são processados.
O plano do governo era lançar o guia no final de outubro de 2014, logo depois do segundo turno das eleições presidenciais. O temor de que a janela política se fechasse colocava um senso de urgência entre os responsáveis pelo documento. “Essa ameaça concreta fez com que as pessoas que antes estavam preocupadas com as pequenas diferenças vissem que, no cenário maior, estariam do mesmo lado. Independentemente do resultado final, melhor ter esse guia, que já está muito bom, do que não ter.”
Quanto menos clareza, melhor
O guia foi publicado em novembro de 2014. O capítulo 2, o que a indústria tentou desesperadamente mudar ou derrubar, é o que divide os alimentos de acordo com o tipo e o propósito do processamento. Em linhas gerais, separa alimentos in natura ou minimamente processados, como arroz e feijão, de formulações alimentícias que se tornaram abundantes nas últimas décadas, como biscoitos, salgadinhos, iogurtes repletos de açúcar, refrigerantes, cereais industrializados e afins.
“A regra que facilita a observação das quatro recomendações gerais feitas neste capítulo é simples como devem ser as regras de ouro: prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados”, define o documento. As diretrizes alimentares são de uma clareza inédita – normalmente, inspirado pelo modelo adotado nos Estados Unidos sob pressões econômicas, esse tipo de recomendação é complicada e evasiva.
Nos últimos dois anos, foram publicados vários artigos científicos que chancelam as recomendações do guia brasileiro. Eles mostram que o consumo de ultraprocessados está associado a um aumento do risco de morte (aqui e aqui), de doenças cardiovasculares, de câncer e de obesidade (são dez estudos ao todo).
Depois de seu lançamento, o guia se consolidou como uma quebra de paradigma. É tido como o melhor do mundo por Marion Nestle, professora emérita da Universidade de Nova York e referência na pesquisa em nutrição. Também caiu nas graças de Michael Pollan, jornalista que se notabilizou na cobertura de temas alimentares.
Entre as mudanças fundamentais está o fato de se dirigir à população, e não aos profissionais de saúde, como fazia a versão anterior, de 2006. A abordagem é também inédita ao não se ater a nutrientes e ao estender a discussão aos modos de produção, com uma recomendação clara de que se dê prioridade à compra de pequenos agricultores, além de abordar a maneira como se consome e as preparações culinárias.
“É impressionante ver como hoje isso está sendo utilizado pelas pessoas para fora do campo técnico da nutrição”, avalia Patricia Jaime, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP. Ela foi coordenadora geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde entre 2011 e 2014, período em que esteve à frente do processo de elaboração do guia. “A gente vê na imprensa, rotineiramente, o uso do termo ultraprocessado.”
Por enquanto, o ministério da Saúde dá sinais de que não alterará o guia. Em outubro, Mandetta aproveitou uma reunião de alto nível em Roma para fazer uma defesa clara do documento. “O nosso Guia Alimentar para a População Brasileira inovou ao promover a alimentação saudável baseada em alimentos e nos processos que integram todo o sistema alimentar, para que cada cidadão possa fazer suas escolhas conscientemente e busquem modos de vida mais saudáveis.”
Nem Klotz nem a Abia quiseram conceder entrevistas.
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