Assentamento Comuna Amarildo de Souza: uma outra visão de empreendedorismo. Por Vitória Ricardo

Priorizando a coletividade e a agroecologia, assentamento na Grande Florianópolis produz cerca de 20 toneladas de alimento livre de veneno por ano

Foto: visualagroecology.com

Por Vitória Ricardo, para Desacato.info

No mesmo mundo onde a busca incessante pelo lucro individual é força motriz de muitos empreendimentos, também existe a realidade de homens e mulheres que ocupam terras desapropriadas para plantar e colher em prol do coletivo. Desafiando o modelo hegemônico do agronegócio, o Assentamento Comuna Amarildo de Souza, em Águas Mornas, construiu um empreendimento baseado na agroecologia, onde o lucro não é a única medida de valor.

Tudo começou em 2013, com a ocupação de um terreno às margens da SC-401, em Florianópolis. O movimento social tinha a intenção de formar um assentamento coletivo autossustentável de produção agroecológica e, assim, criar um sistema alimentar para as mais de 700 famílias que faziam parte do acampamento. Porém, os ataques da comunidade e a xenofobia sofrida pelos Amarildos forçaram uma movimentação para outras áreas.

O grupo enfrentou uma série de embates até chegar a Águas Mornas, em 2014, em uma área cedida pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), onde hoje sete famílias estão formalmente assentadas pela Reforma Agrária. É nesse pedaço de terra de 138 hectares que se consolidou o Assentamento Comuna Amarildo de Souza, que cultiva um solo fértil, planta com respeito à biodiversidade e colhe um alimento livre de venenos.

Por esse motivo, essa não é apenas uma história sobre ocupação, mas também sobre empreendedorismo, economia, agroecologia e combate à fome. Quase 10 anos atrás, sem incentivo público ou ferramentas tecnológicas, os Amarildos pegaram na enxada e iniciaram um empreendimento que viria a transformar a alimentação de centenas de famílias na região Metropolitana de Florianópolis.

“Era início da primavera, a gente estava iniciando essa chegada às terras. Era todo mundo de enxada, não tinha tecnologia nenhuma, mas já se fazia alguma produção, e fazíamos primeiras feiras. Foi um processo literalmente do zero. Começamos com uma semente que não produzia tão bem, porque as primeiras não eram adaptadas pro local. Então aos poucos a gente foi conhecendo e fazendo esse processo de construção”, relembra Daltro de Souza, agricultor e integrante do Assentamento.

Com o tempo, as sementes germinaram e culminaram em um grande projeto econômico (e político): as cestas agroecológicas. Desde 2018, a Comuna Amarildo entrega cestas de produtos orgânicos em diversos pontos da Grande Florianópolis, por meio de Células de Consumo Consciente. “A gente trabalha com a ideia da sazonalidade e respeito a quem produz. As pessoas começaram a entender que não estavam indo comprar uma cesta agroecológica, estavam indo para fazer uma defesa da agroecologia de uma forma diferenciada. A gente apresenta a ideia de um modelo consciente, mas que seja também combativo no sentido político”, explica Daltro, que integra a Comuna desde as primeiras ocupações.

‘Nosso dever é devolver algo para a sociedade’

De acordo com dados do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST, mesmo com uma área pequena, a agricultura familiar é a responsável por mais de 70% dos alimentos consumidos pela população brasileira e por 67% da força de trabalho ocupada na agropecuária. E os assentamentos fazem parte dessa rede de produção, sendo muito mais que uma prática sustentável de agricultura, mas também uma ferramenta de luta pela melhoria das relações de produção agrícola, meio ambiente e trabalho.

Ao comercializar um alimento livre de produtos químicos, a Comuna Amarildo cumpre um papel social de grande relevância. Em 2021, foram entregues semanalmente aproximadamente 360 kg de alimentos orgânicos na Grande Florianópolis. Esse número é apenas uma parte das quase 20 toneladas de alimento limpo produzido durante todo o ano. O restante dessa produção é doado para ocupações e comunidades mais necessitadas. Em 2021 e 2022, a Comuna totalizou 7 toneladas de doações.

“Aquilo que sonhamos sentados em torno de uma fogueira na frente da nossa barraca hoje é realidade, não é só fantasia, nós transformamos em realidade aquilo que a gente pensou lá em 2014. Hoje conseguimos doar 7 toneladas de alimento para as comunidades. A gente não ganhou terra, a gente está lá com o direito a ela e o nosso dever é devolver algo para a sociedade, e é o que a gente já faz. É um projeto que consegue chegar ao ponto de produzir e devolver às comunidades e às ocupações essa produção”, declara Daltro de Souza, agricultor e integrante do Assentamento.

Foto: visualagroecology.com

Terra, trabalho e teto

O lema “Terra, trabalho e teto” nos ajuda a entender melhor a luta da Comuna Amarildo de Souza. A “terra” aborda a busca de condições por território e o apoio às novas ocupações; “teto” está diretamente ligado à questão da moradia e da segregação socioespacial na região; enquanto o termo “trabalho” coloca a questão coletiva em primeiro lugar e condena um “modelo de competitividade que extrai cada vez mais valor da força de trabalho”. “O que queremos é ter direito a plantar, mostrar o quanto é possível ocupar e poder plantar, poder colher, mostrar que existe uma outra forma de fazer as coisas, que ocupar dá certo, a gente sabe”, resume Daltro de Souza.

Como modelo de empreendimento coletivo, o Assentamento Comuna Amarildo de Souza coloca em prática um projeto de vida diferenciado, com relações de trabalho sustentáveis. “Hoje o Assentamento é um processo consolidado, que constrói sua renda a partir do trabalho de um projeto muito bem pensado, com pessoas muito qualificadas. Mas não é um modelo produtivista de pânico, é um modelo que faz você ter condições de ter renda com uma qualidade de vida maior, não impactando diretamente na força de trabalho”, declara.

Daltro ressalta que a Comuna Amarildo se opõe às dinâmicas de trabalho pautadas em competição, alienação e aceleração da produção. “A gente quer demonstrar que o trabalho é fundamental para a vida do ser humano, mas desde que esse modelo não construa formas de trabalho que sejam nocivas para nós. É comum encontrar a palavra empreendedorismo ligada ao aumento de competitividade, você tem que estar produzindo em uma velocidade cada vez maior pela dinâmica e necessidade. Esse modelo empreendedor constrói uma relação em que o trabalhador cada vez mais se distancia do trabalho”, alerta o agricultor.

Por isso, ele reforça a necessidade de questionar as demandas impostas por tal visão empreendedora e resgatar sua verdadeira essência. “No assentamento a busca é justamente romper com certos modelos. A gente consegue construir relações de trabalho que sejam sustentáveis, que não busquem a competição entre os trabalhadores. Eu acho que existe essa possibilidade sim, em qualquer segmento. A decisão é da humanidade, é uma decisão que a gente tem que mostrar”, afirma Daltro de Souza.

Instituto Caeté oportuniza formação dentro da ocupação

Entre suas ações prioritárias, o Assentamento Comuna Amarildo de Souza atua fortemente para apresentar a bandeira da agroecologia. Contudo, foi um processo lento até que o grupo conquistasse confiança para mostrar à comunidade de Águas Mornas e região o seu trabalho e seu papel na sociedade. Hoje, já é possível falar mais sobre o tema em uma comunidade que trabalha com o agronegócio e faz uso intenso de agrotóxicos.

“A gente sofreu muito para hoje poder estar mostrando pra eles que existe a possibilidade de se fazer agroecologia. Aos poucos eles começaram a entender isso, que a gente trabalha muito e que existe a possibilidade de fazer um modelo de agricultura onde eu consiga respeitar o solo e o agricultor”, relata Daltro de Souza.

Com o objetivo de levar essa mensagem ainda mais longe e garantir formação de qualidade para a Comuna, foi criado o Instituto de Formação Popular Caeté. Esse é mais um projeto que demonstra o impacto de uma ocupação que iniciou em 2013 e até hoje expande seu poder popular. “O que a gente pretende com o Instituto Caeté é ser uma ferramenta formativa. Queremos construir uma formação de mais qualidade, trazer projetos que serão encabeçados por assentados, com formação para o assentamento e do assentamento para fora”, explica Daltro, também coordenador geral do Instituto.

Para que isso seja possível, a Comuna Amarildo segue em busca de apoio dos órgãos governamentais. “Nós já fazemos tudo isso sem o Incra. O que queremos é o mínimo de condições para estar melhorando, ampliando e trazendo mais qualidade de vida pra gente. E apoio para os novos projetos que estamos querendo construir”, pontua. Os Amarildos também merecem ser vistos, sentidos e ouvidos.

Ao final da entrevista com a reportagem, Daltro de Souza dedicou a conversa aos demais assentados e, principalmente, ao camarada Raimundo Pereira, o Pepe, que faleceu no último dia 11 de maio. Ele foi um dos grandes responsáveis pela Ocupação Amarildo de Souza e se tornou protagonista na luta por terra, trabalho e teto em Santa Catarina.

Vitória

Vitória Ricardo é jornalista, graduada pela Universidade de Caxias do Sul.

 

 

 

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