As milícias digitais. Por Marco Arenhart.

As redes sociais atuais não são um reflexo da sociedade, mas o inverso: a sociedade é moldada e organizada pelos mecanismos de mediação impostos pelas plataformas.

Por Marco Arenhart, para Desacato.info.

Manuel Castells, no livro A Sociedade em Rede, publicado em 2000, mostrou uma aguçada percepção dos rumos da sociedade, que hoje esta ainda mais clara:

“Nossas sociedades estão cada vez mais estruturadas em uma oposição bipolar entre a Rede e o Ser.

Nessa condição de esquizofrenia estrutural entre a função e o significado, os padrões de comunicação social ficam sob tenção crescente. E quando a comunicação se rompe, quando já não existe comunicação nem mesmo de forma conflituosa (como seria o caso de lutas sociais ou oposição politica), surge uma alienação entre os grupos sociais e indivíduos que passam a considerar o outro um estranho, finalmente uma ameaça. Neste processo, a fragmentação social se propaga, à medida que as identidades se tornam mais específicas e cada vez mais difíceis de compartilhar. A sociedade informacional, em sua manifestação global, é também o mundo de Aum Shinrikyo (seita Verdade Suprema), da Milicia Norte-americana, das ambições teocráticas islâmicas/cristãs e do genocídio recíproco hutus e tutsis.”

Atualizaria este final incluindo a xenofobia na Europa, o Estado Islâmico, o trumpismo e o bolsonarismo. A tendência identificada por Castells no início de nosso século foi potencializada por grupos que, associando a evolução das tecnologias e redes sociais com a psicologia neurolinguística reforçaram o diálogo de surdos, refugiando os indivíduos em seus mundos identitários primários da religião, etnia, território e nação.

Leia mais: O que podemos aprender a partir da abertura do código do Twitter? 

Este tipo de alienação gerada pela sociedade em redes é reforçada por políticas articuladas. Grupos e empresas tem obtido sucesso em usar as novas tecnologias da informação para disseminação deliberada da ignorância. Um conceito foi criado para caracterizar este fenômeno: “Agnotologia é o estudo de atos intencionais para espalhar confusão e engano, geralmente para vender um produto ou ganhar favores”.

Num mundo de ignorância radical, torna-se difícil tomar nossas próprias decisões, criando um ambiente favorável à manipulação. Exemplos do sucesso deste processo na política são Trump e Bolsonaro. (1)

A evolução das tecnologias e a aplicação de técnicas de psicologia de massas (ou individuais), reforçadas por ferramentas de engenharia social e avanços acelerados da Inteligencia Artificial, apontam, no limite, a possibilidade real da teoria da morte da web, teoria de conspiração chamada Dead Internet Theory (2). Esta morte não significa o esvaziamento das redes, muito pelo contrário. Significa que do outro lado dos relacionamentos sociais pela web há máquinas, não seres vivos. Apesar do caráter anedótico desta teoria, cada vez mais as interações humanas na web são mediadas por algoritmos e robôs e conteúdos são gerados por IA.

Um exemplo de como este crescimento da mediação por máquinas está se acelerando é o papel da Inteligência Artificial na geração de portais de notícias de forma inteiramente automatizada, sem ação de jornalistas, que implica em um grande potencial de desinformação. O projeto de monitoração da desinformação NewsGuard (3) identificou um crescimento dos 49 portais gerados integralmente por ferramentas de IA, encontrados no primeiro levantamento de maio de 2023, para 421 no levantamento de agosto (e contando).

Precisamos levar em conta que esta mediação algorítmica não gera desinformação apenas pelos limites e erros de sua programação. Algoritmos e IA são criações humanas que funcionam como representação do pensamento de quem os cria. Mesmo as teorias por trás desta programação seguem técnicas que não são livres de ideologia, como a psicologia behaviorista. Além do mais, os dados e regras que governam estas tecnologias pertencem a poucas corporações que se tornaram grandes justamente pelo empenho na defesa de seus interesses econômicos. Portando a desinformação, a propagação do ódio e a manipulação política não são acidentes ou danos colaterais. São produtos da essência do negócio das grandes empresas de tecnologia.

Por isso a coleta de dados e construção de perfis de usuários para a construção de algoritmos de recomendação se encaixa perfeitamente no processo de manipulação da opinião pública. As redes sociais atuais não são um reflexo da sociedade, mas o inverso: a sociedade é moldada e organizada pelos mecanismos de mediação impostos pelas plataformas. Esta é a principal lição que deveríamos ter aprendido a partir da atuação da Cambridge Analytics na campanha pelo Brexit.

Este elemento subjetivo do processo de mediação pelas redes se expressa pela existência de grupos e movimentos (e mesmo empresas como a Cambridge A.) que atuam, algumas vezes à margem das plataformas, mas muitas vezes plenamente integradas a estas. Estes atores podemos chamar de milícias digitais. Sua principal força resulta de um conhecimento privilegiado das regras que governam as mediações algorítmicas. Estes temas são bem explorados por autores como Marta Peirano em “O inimigo conhece o sistema” (Ed Rua do Sabão, 2022), Martin Moore em “Democracia Hackeada” (Ed Habito, 2022) e Giuliano Da Empoli em “Os Engenheiros do caos” (Ed Vestígio, 2021).

“a grande onda populista …se alimenta de dois ingredientes que nada tem de irracional: a cólera de alguns meios populares, que se fundamenta sobre causas sociais e econômicas reais; e uma maquina de comunicação superpotente, concebida em sua origem para fins comerciais, transformada em instrumento privilegiado de todos aqueles que têm por meta multiplicar o caos.” (4)

A atuação de milícias digitais nas redes, disseminando desinformação e discurso de ódio é muito favorecida pelo modelo de negócio das plataformas. Alguns autores afirmam que o modelo de negócios das plataformas é o ódio, sendo o principal motor de geração de lucros destas empresas: o engajamento. Neste ambiente toxico diversas vertentes tem crescido e acabaram por sequestrar o debate nas redes sociais: disseminadores de teorias de conspiração (como o Qanon), supremacistas, anarco capitalistas, incels e outros.

Os grupos de extrema-direita não se articulam na rede apenas para propagar suais ideias e desinformação. Em menor escala atuam também para perseguir e provocar ‘cancelamento’ atores progressistas (5) gerando mais radicalidade e intolerância, reproduzindo nas redes o papel clássico das milícias fascistas.

No Brasil há muito já sentimos o efeito da atuação das milícias na politica e relações sociais. Se o impacto desta atuação foi relevante para os acontecimentos da última década (6), nada indica que a vitória da frente democrática em 2022 indique um refluxo disso. Muito pelo contrário. Plataformas digitais tiveram um papel central na radicalização de muitas pessoas e consolidaram diversos grupos extremistas do mundo real, como o MBL (7).

Milicias, com seus robôs e trolls continuam ativos e com capacidade de mobilização. Indicadores podem ser observados em abundância.

Em exemplo foi o recente episódio da delação premiada de um dos envolvidos no assassinato de Marielle Franco, quando rápida reação nas redes tentou promover uma mudança de pauta. Embora não tenha atingido este objetivo de inversão, mostrou que a milícia que conhecemos como “Gabinete do ódio” ainda possui uma estrutura, recursos e capacidade de articulação considerável.

“O volume de menções sobre MARIELLE FRANCO atinge um pico. Minutos depois, o bolsonarismo tenta atrair a atenção do antibolsonarismo falando de CELSO DANIEL. No entanto, a tentativa bolsonarista de evitar o assunto e atrair a atenção para uma fake news não decola.”

A força destas milícias também sugere que não se trata de movimentos totalmente marginais que agem em porões de algum gabinete ou corporação. Certos episódios podem até levar a suspeita de que existe uma aliança, em algum nível, entre as milícias digitais (gabinete do ódio) e setores da mídia hegemônica. É o caso da divulgação das imagens do circuito interno do palácio do Planalto, que serviu para impulsionar a criação da CPMI do 8 de janeiro:

“A divulgação das imagens feita pela CNN (dia 19) ocorre em um momento em que o debate sobre uma CPMI já havia registrado um pico de menções no dia anterior, gerado exclusivamente pela mobilização bolsonarista. Mas o que mudou com a divulgação das imagens no dia 19/04? O pico de menções do dia 19 (após a divulgação) é mais de 2x maior que o registrado no dia 18, aproveitando assim o buzz criado pelo tema no dia anterior e atraindo a atenção do antibolsonarismo com um paradoxo: a defesa do governo Lula estava atrelada a defesa de um militar. Até aqui o bolsonarismo monopoliza o tema no Facebook/Instagram: dentre as 200 publicações com maior volume de interações nos últimos 28 dias citando CPMI, 98.7% das interações partem de páginas bolsonaristas. Apenas seis das 200 principais publicações não são bolsonaristas. “ (8)

A verdadeira dimensão das milícias digitais é difícil de mensurar em função da complexidade e ramificação de seus diversos ramos. Há um projeto que tem ajudado a melhorar nossa compreensão da sua dimensão e diversidade: Mercenários Digitais (https://www.elclip.org/mercenarios-digitales/), um trabalho coordenado pelo Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP). Embora a investigação tenha sua abrangência restrita à América Latina, as investigações ajudam muito a elucidas como estes atores agem, se conectam e utilizam a tecnologia para promover a desinformação. Um exemplo é o caso do “consultor” argentino usado para desacreditar as urnas no Brasil (9).

Embora a Internacional dos Nacionalistas, de Steve Bannon, tenha fechado seu refúgio na Itália, não faltam patrocinadores para as milícias digitais. Secure America Now Foundation, a espanhola Citizen Go e outras ajudam a multiplicar estes grupos. Mas o que os torna visíveis e influentes é o modelo de negócios das plataformas digitais. Enquanto este modelo não for questionado, as democracias, globalmente, continuarão a desmoronar.

Florianópolis, 22 de agosto de 2023

(1) https://www.bbc.com/future/article/20160105-the-man-who-studies-the-spread-of-ignorance

(2) https://en.wikipedia.org/wiki/Dead_Internet_theory

(3) https://www.newsguardtech.com/special-reports/ai-tracking-center/

(4) Empoli, Giuliano Da . “Os Engenheiros do caos” .Ed Vestígio, 2021.

(5) https://www.eldiario.es/tecnologia/twitter-bloquea-candidato-socialista-subir-foto-boda-mujeres-campana-ultraderecha_1_10237086.html

(6) https://apublica.org/2015/06/a-direita-abraca-a-rede/

(7) https://apublica.org/2015/06/a-nova-roupa-da-direita/

(8) https://essatalredesocial.com.br/2023/04/25/o-debate-sobre-a-cpmi-do-8-de-janeiro-nas-redes-sociais/

(9) https://apublica.org/2023/07/campanha-de-eduardo-bolsonaro-pagou-funcionario-de-argentino-que-mentiu-sobre-urnas/

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.