As mentiras proferidas por Bolsonaro em discurso à ONU, não comportam ingenuidades, apenas representam a dissimulação e a validação de transgressões praticadas por seu governo.
Por Roberto Antônio Liebgott.
O presidente da República Federativa do Brasil proferiu, no período de um ano, dois discursos em aberturas das assembleias gerais da Organização das Nações Unidas (ONU). No primeiro, em setembro de 2019, falou presencialmente. Dessa vez, em virtude da pandemia do coronavírus, o discurso foi gravado e exibido.
Nas duas oportunidades, Bolsonaro causou perplexidade nos demais governantes do mundo, porque utilizou o espaço para difundir mentiras sobre as realidades política, econômica e ambiental no Brasil. Há que se dizer que Bolsonaro não está preocupado com os governantes de outros países e o que eles pensam de seu governo. Do contrário, usaria de uma certa diplomacia discursiva ao se comunicar com as demais autoridades mundiais.
O presidente brasileiro, sem constrangimento ou qualquer pudor, aproveita-se da visibilidade e repercussão desses eventos para atacar adversários políticos e imaginários, além de se fortalecer frente a predadores do meio ambiente, especialmente os envolvidos nos maiores incêndios de nossas florestas na história recente. Não à toa, investigações iniciais da Polícia Federal, indicam que boa parte das queimadas foram iniciadas em grandes fazendas do Pantanal brasileiro[1].
O governo visa agradar a essa parcela do agronegócio, pois estes são influentes política e economicamente e garantem a sua permanência no poder. Defenderão, até as últimas consequências, a implementação da antipolítica, estruturada em ações e medidas administrativas que facilitam o armamento, o uso indiscriminado de agrotóxicos, o desrespeito aos direitos humanos, a dilapidação do patrimônio público e avalizam atividades criminosas desencadeadas por grupos econômicos que devastam o meio ambiente. Portanto, Bolsonaro não discursou para a ONU, no máximo para o Donald Trump.
Nesse contexto político mundial, em que o Brasil está inserido – com o presidente Bolsonaro desdenhando da vida, da dignidade da pessoa humana e da natureza – devemos ler os sinais da conjuntura que podem, em certa medida, nos dar luzes e esperanças, mas também podem apontar os desafios que se apresentarão para todas as pessoas, mas de modo específico aos mais pobres, excluídos, marginalizados das periferias e aos povos, comunidades tradicionais e originários.
Nesse cenário mundial, as eleições americanas tornam-se uma chave de leitura, dado que apontarão os caminhos da geopolítica, da economia e dos costumes para as próximas décadas. Em caso de uma reeleição de Donald Trump, a tendência será de aprofundamento dos conflitos mundiais, aumento da repressão aos pobres e imigrantes, expansão do fundamentalismo nas relações sociais, culturais, educacionais e religiosas.
Outra chave de leitura reside na pandemia da Covid-19, a qual, mais que um vírus a saúde, torna-se também um vírus contra a solidariedade, pois percebe-se que desperta, outra vez na história, o que há de pior nas pessoas, o egoísmo, o individualismo e a falta de empatia com os outros e suas necessidades. A pandemia tem revelado uma certa tendência – em uma significativa parcela da população – de que cada um deve cuidar de si mesmo e de seu clã familiar.
Verificou-se, durante a pandemia, que a concentração de renda e poder, mais do que antes, se agigantou. Alguns empresários ligados ao comércio de varejo, de bebidas, alimentos e do sistema financeiro, engordaram suas contas em bilhões de dólares. É um pequeno grupo de bilionários que controlam o mundo do consumo, das tecnologias, da cultura, da política, da economia e da saúde. Os dados apontam que a humanidade, depois da pandemia, ficará ainda mais vulnerável a um mercado ainda mais especulativo. A lista da Revista Forbes Brasil indica que 33 brasileiros viraram bilionários durante a pandemia. Tomo a liberdade de citar apenas alguns deles: Jorge Paulo Lemann, mercado de bebidas; Joseph Safra, sistema financeiro; Eduardo Severin, internet; Marcel Herrmann Telles, bebidas e investimentos; Carlos Alberto Sicupira, bebidas; Ilson Mateus, varejo; Luciano Hang, varejo. Somente a fortuna dos 10 mais ricos, conforme a citada publicação, equivalem a 18% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, isso em 2019.
A tendência, nesta conjuntura, é de que os países pobres adentrarão num ciclo perverso de miserabilidade, onde a exploração dos recursos ambientais e minerais serão utilizados, nos discursos e retóricas dos políticos e governantes, como as únicas alternativas capazes de retirar as pessoas da miséria. Há que se considerar, pelo que assistimos e ouvimos, que esse discurso se torna cada dia mais presente e influente.
O desmonte de políticas públicas, a exemplo do esvaziamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão responsável por pensar e implementar políticas ligadas a segurança alimentar e nutricional, mostra que direitos individuais e coletivos são tratados como privilégios e, nesse sentido, cada pessoa deve gestar sua vida sem precisar do Estado e dos governos. Para não sucumbirem, os povos originários e as comunidades tradicionais precisarão resistir à cultura hegemônica, lutar por suas terras e por políticas diferenciadas.
No que tange ao meio ambiente, pelas ações e omissões, percebe-se que a devastação ambiental no Brasil será caracterizada como um fato consumado, qual seja, já que as matas foram destruídas, agora as terras precisam ser ocupadas e exploradas. Sobre elas serão derramadas toneladas de agrotóxicos, visando a plantação de commodities agrícolas para exportação, financiados, claro, por dinheiro público. Não esperem, portanto, a plantação de arroz para saciar a fome de nosso povo.
O presidente Bolsonaro vem sendo, nesse contexto, a pessoa certa no lugar certo. Significa que foi eleito para proporcionar a destruição. Portanto, ele também não é um fruto do acaso, faz parte do processo político, econômico e cultural, imposto ao mundo nos últimos anos e, ninguém, senão ele, se submeteria a uma exposição mundial negativa e ainda sorrir, tirar onda e desdenhar das queimadas, das vítimas da pandemia, dos direitos indígenas, dos quilombolas e dos “caboclos”.
Os poderes Judiciário e Legislativo comportam-se como mediadores do caos, mas não há intervenções no controle e no enfrentamento dos graves problemas, visto que não são os responsáveis diretos por implementação de políticas públicas de proteção à população. Mesmo em momentos de mediação, integrantes do governo Bolsonaro atacam aqueles que buscam garantir minimamente seus direitos, a exemplo da imputação ao movimento indígena de crime de lesa-pátria, pelo general Heleno, ministro de alto escalão e de confiança de Bolsonaro.
A pandemia acarretou a desmobilização política, o que tem beneficiado Bolsonaro e seu governo. Sentimos falta de mobilizações nas ruas, de embates políticos no Congresso Nacional. As comissões do Legislativo, que acompanham os graves problemas nacionais, como a pandemia ou as queimadas em nossas florestas, no máximo fazem reuniões virtuais ou “convidam” integrantes do governo federal para visitar a tragédia no Pantanal. Os partidos políticos de direita, de esquerda ou extremistas, não reagem diante do caos e isso parece aproximá-los (ao invés de distanciá-los), dado que a ênfase, de todos eles, concentram-se nas aspirações meramente eleitoreiras.
Os movimentos sociais e populares estão, nos dias de hoje, ainda mais fragilizados e tentando amenizar as consequências da pandemia sobre os grupos que acompanham. Sofrem repressões e agressões por suas ações sociais, como é o caso do Padre Júlio Lancellotti, de São Paulo, que atua junto aos nossos irmãos que vivem nas ruas.
A política indigenista, no governo Bolsonaro, adquire feições genocidas. A Funai, órgão indigenista oficial, foi transformado numa agência em defesa dos interesses de setores que invadem, desmatam, incendeiam e grilam terras. Não observamos reações políticas ou jurídicas quanto ao desvio de finalidade do órgão oficial de apoio aos índios.
No âmbito da saúde, se instalou um caos assistencial, no entanto, o Secretário da Secretaria Especial de Saúde Indígena procede como se não houvessem problemas e nenhuma pandemia mortal estaria em curso. Seu intento é desmobilizar os indígenas que se colocam de maneira contrária a política genocida. Também estimula a cooptação de pessoas que articulavam as lutas pela defesa de uma política de atenção à saúde diferenciada, com participação e controle social. Há uma evidente articulação para que indígenas se posicionem, agora, ao lado do governo, fazendo a defesa de práticas políticas. Confirma-se, nesse sentido, o início de um projeto de governo para promover a desconstitucionalização, a desterritorialização e a integração. Pretende-se, em última análise, a antipolítica, para efetivar o genocídio dos povos.
O cenário é de profunda crise, talvez a mais grave depois da segunda grande guerra. As consequências ainda não são possíveis dimensionar, mas serão devastadoras, política, econômica, ambiental e humanamente. Os povos indígenas e as demais comunidades tradicionais, os quilombolas, pescadores artesanais, precisarão, nestes tempos sombrios, ampliar suas articulações e mobilizações para o enfrentamento ao desmonte das políticas públicas, implementadas pelo governo Bolsonaro. Suas ações e omissões precisam ser tratadas como ações de um inimigo, pois dele só podemos esperar medidas que promovem a destruição e o caos.
O discurso de Bolsonaro à ONU, repleto de mentiras, preconceitos e acusações, não comportam ingenuidades, apenas representam a dissimulação e a validação de transgressões praticados por seu governo.
Porto Alegre, 25 de setembro de 2020.
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Roberto Antônio Liebgott é Missionário do Conselho Indigenista Missionário/CIMI. Formado em Filosofia e Direito.
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