Por Dindara Ribeiro e Nataly Simões, em Alma Preta Jornalismo.
Das 69 universidades federais existentes no Brasil, quatro ainda não possuem em seus cursos de graduação comissão ou banca de heteroidentificação para identificar possíveis fraudes nas cotas raciais.
De acordo com dados obtidos pela Alma Preta via Lei de Acesso à Informação (LAI), as instituições federais de ensino superior que ainda não possuem o mecanismo são a Universidade Federal de Rondônia (UNIR), a Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Das quatro universidades que ainda não possuem as comissões que verificam a autodeclaração racial dos estudantes autodeclarados negros e indígenas, duas estão em fase de instalação: a UNIR e a UFOPA. Na UnB, a comissão existe apenas para a pós-graduação e a única que não possui é a UTFPR.
Em todas as universidades que possuem bancas de heteroidentificação, a análise é feita com base no fenótipo da pessoa autodeclarada negra (preta e parda), como a textura do cabelo, nariz e boca, por exemplo. Na maior parte, as avaliações são feitas de forma presencial e telepresencial.
A maioria dos integrantes das bancas possui formação, estudos ou integra coletivos voltados para a temática étinico-racial. Algumas regulamentações mencionam capacitação e outras têm como pressuposto a experiência e vivência no tema como capacitação para participação dessa atividade nas universidades.
A reportagem questionou no pedido de LAI qual o perfil racial dos membros das bancas nas universidades, mas não foi possível obter essa informação já que os dados fazem parte de um levantamento interno realizado em março de 2023 pela Diretoria de Desenvolvimento da Rede de Instituições Federais de Educação Superior (DIFES) a pedido da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR).
Em resposta, a DIFES informou que “não possui as informações solicitadas, uma vez que são de responsabilidade de cada universidade federal”.
Universidades dizem que vão implementar bancas de heteroidentificação
A Universidade de Brasília informou que a previsão é de que as bancas de heteroidentificação nos cursos de graduação sejam implementadas para todos os alunos com entrada a partir do segundo semestre deste ano.
Em relação aos critérios para a análise dos alunos autodeclarados negros, indígenas e quilombolas, a UnB respondeu que o processo será fundamentados em critérios como o “respeito à dignidade da pessoa humana”, “observância do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal”, “garantia da padronização e de igualdade de tratamento entre os(as) candidatos(as) submetidos(as) ao procedimento de validação da autodeclaração”, entre outros.
Já em relação aos membros que irão compôr as bancas, a universidade informou que eles “são partícipes de um banco coordenado pela Comissão de Acompanhamento de Políticas de Ações Afirmativas na Pós-Graduação (COPEAA) e passam por curso de formação”.
A UFOPA, por sua vez, disse que planeja implementar a política de heteroidentificação em 2024 e que já possui um processo em tramitação no Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre a Política de Heteroidentificação e Comissão Permanente para a Promoção da Igualdade e da Diversidade Étnico-Racial da Ufopa.
Segundo a universidade, atualmente o processo seletivo regular conta com oito grupos de cotas, quatro voltados para o perfil PPI (pretos, pardos e indígenas).
Sobre o processo de análise, a UFOPA afirmou que o critério exclusivo será a análise fenotípica, como cor da pele, textura do cabelo, formato do rosto, lábios, traços faciais.
Para a composição da comissão de heteroidentificação, os critérios serão para membros “que tenham conhecimento na temática étnico-racial e ações afirmativas”, “preferencialmente com experiência na temática da promoção da igualdade étnico-racial e do enfrentamento ao racismo” e “preferencialmente que acompanhem e tenham conhecimento sobre as políticas de ações afirmativas e as políticas de cotas existentes tanto em âmbito interno como externo”, conforme cita a nota enviada pela UFOPA.
A Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) informou que ainda não adotou o uso das bancas de heteroidentificação porque durante o período em que adotou o Sisu como forma exclusiva de ingresso transferiu ao Ministério da Educação a gestão do processo seletivo “diminuindo, assim, a capacidade de realizar decisões mais estratégias sobre o processo”.
Disse também que a decisão se deu pelo baixo número de servidores técnico-administrativos na universidade que, segundo a instituição, “é um dos menores de toda a rede de universidades e institutos federais”, o que fez com que a universidade “optasse por concentrar sua força de trabalho para o cumprimento integral da legislação, que exige apenas a autodeclaração para concorrer no sistema de cotas”.
Atualmente, o ingresso de alunos negros (pretos e pardos) e indígenas na UFTPR acontece por meio de duas cotas: para candidatos autodeclarados com renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas; e para candidatos que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
A UFTPR também acrescentou que uma comissão interna, instituída em julho de 2022, atua na elaboração de um plano para implantação da heteroidentificação na instituição e que, assim que for finalizada, será encaminhada para o Conselho Universitário da Universidade.
Apenas a Universidade Federal de Rondônia não deu retorno sobre a implementação do mecanismo anti-fraude de cotas. Caso a instituição de ensino se posicone, o texto será atualizado.
Denúncias sobre fraude de cotas raciais são frequentes
Há pouco mais de dez anos, o sistema de cotas raciais nas universidades, previsto na Lei 12.711/2012, reserva vagas a alunos autodeclarados pretos, pardos e indígenas para ingresso no ensino superior como parte das políticas afirmativas de um processo de reparação histórica.
Mesmo com a implementação das bancas de heteroidentificação, são frequentes as reclamações sobre o ingresso irregular de estudantes através das políticas afirmativas.
Só entre 2020 e 2022, as universidades federais do país registraram, em média, sete casos de uso irregular das cotas raciais por mês, segundo levantamento feito pela GloboNews. Ao todo, 69 instituições de ensino superior contabilizaram pelo menos 1.670 denúncias de uso das cotas raciais no período analisado.
Na Bahia, um caso recente aconteceu em uma instituição estadual, na Universidade Estadual da Bahia (UNEB). A história de Janecleia Sueli, 49 anos, ganhou repercussão nacional após ela passar no curso de Medicina na instituição. Natural de Piritiba, no centro norte baiano, e moradora da periferia de Petrolina, em Pernambuco, a diarista passou 12 anos tentando realizar o sonho até que foi aprovada no vestibular da Uneb no início de 2023. Através de uma campanha de financiamento virtual, ela conseguiu levantar uma quantia para arcar com o deslocamento para Salvador e manter os estudos.
Porém, o que era para ser uma história de superação se tornou um caso de apuração após denúncias de que Janecleia, lida como uma pessoa branca, teve a autodeclaração como parda deferida pela banca de heteroidentificação da Uneb.
À Alma Preta, a autora da denúncia, que não quis se identificar, destacou a importância de dar visibilidade a esses casos, que, segundo ela, são frequentes nas universidades. “Pelo menos eu acho que as pessoas que querem cometer uma fraude dessas vão pensar duas vezes antes de fazer isso. Porque se a pessoa faz e fica ‘de boa’ (sic) durante o curso inteiro, a probabilidade é de outras pessoas fazerem também”, desabafa.
Em março deste ano, a universidade informou que enviou o caso para a Comissão de Validação Departamental e aos setores competentes para verificar se a denúncia é plausível. “Será garantido à denunciada o direito ao contraditório e a ampla defesa da pessoa acusada, bem como o respeito a sua dignidade”, cita a nota.
A Uneb disse ainda que adota a autodeclaração como regra geral e que, uma vez verificada inconsistência, os/as candidatos/as “serão eliminados(as) do processo seletivo ou terão a matrícula anulada a qualquer tempo, mesmo se já matriculados(as)”.
O caso foi registrado na Ouvidoria do Ministério Público estadual da Bahia (MP-BA). Uma reunião entre o órgão e a Uneb estava prevista para acontecer no dia 3 de abril, mas, segundo nota enviada pelo MP-BA, o encontro foi adiado a pedido da universidade.
Heteroidentificação: por uma política de reparação
Frutos de articulação do movimento negro, as comissões de heteroidentificação nas universidades surgiram como uma reação aos processos de fraude nas cotas raciais. Uma das primeiras experiências das cotas raciais aconteceu na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual da Bahia (UNEB), em 2003.
Segundo o advogado, professor e militante do movimento negro, Samuel Vida, com as ameaças à continuidade das políticas afirmativas, viu-se a necessidade de aperfeiçoar as cotas, até então validadas pela autodeclaração.
“Durante a implementação, a gente descobriu de forma não demorada que a fraude ameaçava o êxito da política e privava uma parcela de beneficiários do acesso já que pessoas brancas se autodeclaravam pardas ou até pretas e ocupavam essas vagas”, explica Samuel, que participou dos processos de institucionalização da agenda do movimento negro desde a Constintuinte e foi consultor na elaboração do Estatuto da Igualdade Racial.
Em uma banca de heteroidentificação, um dos principais critérios para avaliar uma pessoa negra, grupo racial composto por pretos e pardos é o fenótipo. De acordo com a cientista social e pesquisadora dos processos de heteroidentificação, Najara Costa, o preconceito racial no Brasil se organiza pelo racismo de marca, que vai determinar a posição de cada pessoa na sociedade.
“Quando uma pessoa vai procurar ou concorrer a uma vaga de emprego, o que vale é o fenótipo dela e aquilo vai determinar com que ela tenha direitos dentro dessa sociedade que se organiza a partir desse racismo de marca e é isso que vai determinar que ela tenha oportunidades ou não e uma série de questões que vão desde a própria sobrevivência dessa pessoa porque a violência policial se caracteriza a partir desse fenótipo”, comenta a pesquisadora, autora do livro “Quem é negra/o no Brasil?”, obra que analisa as comissões nos concursos públicos no município de São Paulo.
“A autodeclaração é o primeiro elemento, é uma conquista universal. Se autodeclarar é como eu me entendo no mundo, é como a minha identidade foi forjada/construída. A heteroidentificação é como a sociedade me vê”, completa Najara.
O “pardo”
O uso da categoria “pardo” nas cotas raciais das universidades também têm sido debatido por especialistas por gerar confusão no limite entre uma pessoa negra não retinta e uma pessoa branca que se considera parda, por exemplo.
No Pará, uma estudante autodeclarada parda teve a heteroidentificação negada pela comissão da Universidade Federal do Pará (UFPA) no início deste ano. Clara Costa, de 26 anos, já havia ingressado em 2013 na instituição de ensino pelas cotas raciais e por ser oriunda de escola pública. Ela se considera uma mulher negra de pele parda e realiza palestras sobre a temática racial em eventos acadêmicos.
A reportagem entrou em contato com a UFPA e questionou os critérios utilizados para indeferir a heteroidentificação da estudante. Em nota, a universidade respondeu que a banca é adotada pela UFPA desde 2021 para “validar a autodeclaração de pessoa negra (de cor preta ou parda) apresentada pelos(as) candidatos(as) classificados(as) em cotas PPI”.
“Até então, era utilizada apenas a autodeclaração como único critério para reconhecer o direito dos(as) estudantes a essas vagas. Com o tempo, porém, foram recebidas denúncias de uso indevido dessas vagas por pessoas não negras, fosse por desconhecimento do público a que se destinam essas vagas, fosse intencionalmente (fraude)”, disse a universidade.
Para a cientista social Najara Costa, um dos caminhos possíveis seria substituir o termo “pardo” por “negro” como forma de reivindicação diante do processo de apagamento histórico da identidade da população negra no país.
“Acho que a melhor estratégia para a gente definir quem é branco no Brasil é perguntar: ‘Essas pessoas enfrentam o racismo?’. A forma como a pessoa se autodeclara para uma política pública precisa com que a gente tenha essa compreensão até porque essa é uma reparação histórica e para essa política pública a gente precisa defender que pessoas que enfrentam o racismo entre pela política de cotas”, sugere.
Historicamente, o “pardo” foi utilizado como uma estratégia classificatória adotada pelas elites brancas brasileiras para inferiorizar e marcar uma distinção em relação àquelas pessoas não retintas mas que possuíam traços fenotípicos negróides: cabelo crespo, lábios grossos, nariz negróide, como explica o professor Samuel Vida.
“O Censo usa a categoria ‘pardo’ para se referir a pessoas negras de pele não retinta desde o século 19. As descrições sobre a escravidão durante o período colonial e durante o período imperial apresentam o pardo como escravizado e você pode ver isso nos anúncios de jornais procurando fugitivos e nos processos judiciais descrevendo fisicamente os escravizados punidos”, exemplifica.
O professor defende o uso da categoria “pardo” para as políticas de cotas e avalia que o termo se trata de uma disputa política que tem que continuar a ser reafirmada pelos negros. Para ele, existem dois riscos em abandonar a categoria para os brancos:
“Primeiro, uma parcela de pessoas negras de pele clara retomariam um lugar de insegurança e indefinição identitária, ou seja, voltaria para o limbo que lhe foi reservado pela estratégia dominante no Brasil. Segundo, os brancos inventariam outra estratégia para fraudar porque ela não está definida pela ambiguidade do termo ‘pardo’, a fraude está definida por uma resistência política da branquitude à mudança das relações raciais”, argumenta.
Como evitar fraudes de cotas raciais?
Diante da importância das ações afirmativas para a população negra nas instituições de ensino, especialistas comentam a necessidade de aperfeiçoamento das bancas de heteroidentificação.
Para Najara Costa, é fundamental que as pessoas que compõem as bancas passem por um processo de formação em letramento racial, em como o racismo opera no Brasil e quem faz jus às políticas de cotas raciais para evitar erros durante o processo.
“Ao meu ver, isso é falta de formação sobre o que deve caracterizar essa pessoa que vai fazer jus a essa política pública que é tão importante e é uma conquista histórica não só para as pessoas negras, mas para o Brasil para que a gente avance enquanto democracia e representação”, ressalta.
O professor Samuel Vida acrescenta que as bancas ainda são uma experiência em construção e defende que elas passem por um processo de uniformização. Para ele, as comissões devem ser compostas por pessoas que atuam dentro das instituições de ensino e que possuem envolvimento com o movimento negro e sociais que discutem relações étnico-raciais no Brasil.
“Uma pessoa que integra uma banca deveria ser preparada mesmo que ela já venha dos movimentos sociais e que tenha algum conhecimento para produzir uma maior homogeneidade, não no sentido de uma unidade absoluta, mas uma compreensão a partir de parâmetros comuns”, conclui.