Amprotabaco: a rede de prefeitos na defesa da indústria do fumo

Como uma entidade criada há dez anos em Santa Cruz do Sul se tornou um grupo de políticos que governam de costas para a Convenção-Quadro de Controle do Tabaco e qualquer lei que ouse colocar um freio no produto que mata 160 mil por ano no Brasil

Foto: O Joio e o Trigo

Por Silvia Lisboa, o Joio e o Trigo. 

A inauguração da fábrica de cigarros da Philip Morris em um portentoso terreno de 40 mil metros quadrados em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, era para ser motivo de festa, mas os políticos presentes no evento estavam preocupados. Era abril de 2013 e Telmo Kirst, então prefeito do município, considerado a “capital do fumo” no Brasil, aproveitou a presença da imprensa para mandar recados à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Meses antes, a Anvisa publicara uma resolução proibindo a presença de mentol, cravo e canela nos cigarros. A medida irritou a indústria do fumo, já que os aditivos de aroma e sabor amenizam a aspereza da nicotina.

Parte da reação veio, conforme o esperado, pela via judicial. Diversas entidades que representam o setor ingressaram com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF). Não fazia muito tempo que a mesma tática tinha sido usada contra a Lei Nacional Antifumo, aprovada pelo Congresso em 2011. E, antes disso, contra as restrições à publicidade de cigarro e as famosas advertências contra o fumo nas embalagens do produto.

A outra parte da reação, no entanto, se deu pela via política. Com uma trajetória que já acumulava dois mandatos como vereador pela Arena durante a ditadura, seis mandatos consecutivos como deputado federal e uma passagem como secretário de Obras do governo gaúcho nos anos 1990, Kirst usou da nova condição de prefeito para agir.

Em 15 de junho de 2013, exatos dois meses após a inauguração da fábrica da dona da Marlboro, ele anunciou a criação da Associação dos Municípios Produtores de Tabaco, a Amprotabaco. Cinco meses depois, em 8 de novembro, a entidade privada sem fins lucrativos saiu do papel.

Ex-Arena, Telmo Kirst criou a Amprotabaco, mas decidiu se manter neutro na precificação das folhas feita pela indústria à revelia do produtor. Foto: Luiz Fernando Bertuol/Secom Santa Cruz do Sul

“Braço político da indústria”

O Brasil é o maior exportador e o terceiro maior produtor de fumo no mundo, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Hoje, o cultivo está altamente concentrado nos três estados do Sul, responsáveis por mais de 95% da produção no país.

Segundo um estudo de 2014 feito pela extinta Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul, 80% de todo o tabaco produzido na região era beneficiado em Santa Cruz do Sul. Até hoje, mais de 50% do ICMS do município advém do complexo industrial do tabaco. Kirst estava não só no local certo, mas na hora certa para se alçar a um papel de protagonismo no setor do fumo.

Desde que o Brasil ratificara, em 2005, a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (CQCT) – único tratado mundial de saúde que existe até hoje, assinado por 180 países que concordaram sobre a importância de reduzir o tabagismo – as políticas antifumo vinham ganhando cada vez mais impulso. E, num círculo virtuoso, esse conjunto de medidas lançava o país à liderança nos debates internacionais que acompanham a implantação do tratado.

Com a criação da Amprotabaco, o então prefeito de Santa Cruz do Sul queria um lugar na mesa de discussões. “Diante desse contexto, entendi necessária a constituição de uma entidade que pudesse minimizar o impacto das decisões que vinham sendo tomadas sem que o segmento fosse ouvido ou pudesse participar”, disse na época da criação da entidade.

A questão é – e sempre foi: que segmento?

Telmo Kirst nunca escondeu a ligação direta com um segmento específico: o dos empresários do fumo. Um comunicado enviado pela prefeitura de Santa Cruz do Sul em 2013 dizia que a ideia para formar a entidade ocorreu “em reunião com a presença de líderes da cadeia produtiva do tabaco”.

O Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco) fez as honras e cedeu sua sede, no Parque da Oktoberfest, em Santa Cruz do Sul, para o encontro. O sindicato representa transnacionais como a Philip Morris e a British American Tobacco (BAT).

Inauguração da associação de prefeitos aconteceu na sede do sindicato das corporações do fumo. Foto: Luiz Fernando Bertuol/Secom Santa Cruz do Sul

O parque se tornaria o endereço da nova entidade que, nas palavras do prefeito de Rio Azul (PR) Rodrigo Solda – presidente da Amprotabaco entre 2020 e 2021 –, nasceu para ser um “braço político” da indústria.

O braço político vinha justamente complementar a representação das empresas, feita oficialmente pelo SindiTabaco, e a representação dos agricultores, exercida pela Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) – outra entidade historicamente alinhada às corporações do fumo.

“Já tínhamos o sindicato da indústria. A Afubra, dos produtores. Mas não havia uma representação da ‘institucionalidade’, a visão dos prefeitos”, explica Giovane Wickert, tesoureiro da Amprotabaco ao longo de duas gestões consecutivas, entre 2018 e 2021. “Então, passamos a ser vistos com mais respeitabilidade, com mais atenção.”

Segundo Wickert, os prefeitos teriam uma “visão mais ampla e não tendenciosa” da cadeia produtiva do fumo “porque precisam cuidar de um tripé: economia, social e saúde”. Mas nada na atuação da Amprotabaco nos últimos nove anos corrobora essa versão.

Financiados pela indústria

Até 2015, quando ainda eram permitidas doações de empresas a candidatos nas eleições brasileiras, era mais fácil rastrear o apoio privado a políticos. Agora, apenas pessoas físicas podem realizar doações. Mesmo assim, é possível verificar que parte dos políticos que ocupou a diretoria da Amprotabaco teve suas campanhas financiadas pela indústria do fumo.

A começar por Telmo Kirst, que recebeu R$ 80 mil de um empresário do setor, Jorge Egidio Boettcher, nas últimas eleições que concorreu, em 2016. Foi a maior doação recebida por ele naquela campanha, seguida de R$ 63 mil oriundos de membros da família Boettcher, ligada ao tabaco.

Alliance One, Philip Morris e China Brasil Tabacos (joint venture da China Tobacco e da Alliance One) doaram R$ 129 mil para Giovane Wickert nas eleições de 2014, quando concorreu a deputado estadual. Ele perdeu.

Mas em 2016, quando concorreu – e ganhou – as eleições para prefeito de Venâncio Aires, Wickert recebeu uma doação de R$ 66 mil de Celso Kramer, conhecido como o maior produtor de tabaco do Sul. Em 2020, Kramer também lhe apoiou com R$ 2,1 mil somados a outros R$ 15 mil oriundos de duas pessoas ligadas à indústria do fumo – Rosalie Tavares Negrini Jones, representante legal da Delfshaven Holding Exportadora de Fumos, cujo sócio no exterior é a Tabacum Interamerican; e Carlos Eduardo Genehr, atual presidente da UTC Brasil Indústria e Comércio, com sede em Venâncio Aires.

Na eleição de 2022, Genehr voltou a lhe apoiar com R$ 5 mil, novamente na corrida para deputado. Perguntando pelo Joio sobre esse histórico de financiamento de campanhas, Wickert respondeu apenas sobre a doação de Genehr. “A UTC estava em fase de expansão no município e resolveu colaborar.” Questionado sobre o conflito de interesses entre defender a indústria do fumo e ser financiado por ela, disse: “O que é legal não gera constrangimento: nos mantém independente.”

Rodrigo Solda recebeu nas eleições de 2016 R$ 6,8 mil de Rodolfo Solda, seu irmão, dono de uma empresa  que beneficia tabaco, na qual foi eleito prefeito pelo PSL.

Em 2008, recebeu R$ 2 mil do filho mais novo, Cássio Hoff, dono de uma empresa de destalamento das folhas de tabaco. Procurado sobre as doações, Hoff não respondeu.

“Somos hoje 508 prefeitos contra os antitabagistas”, diz Guido Hoff, ex-prefeito de Vera Cruz e atual secretário da Amprotabaco. “As prefeituras precisam dessa arrecadação”, conclui o político antes de desligar o telefone e se negar a dar novas entrevistas ao Joio. Hoff recebeu R$ 8 mil da sua esposa, Laci Severo, que trabalha na Afubra, na campanha de 2016, na qual foi eleito prefeito de Vera Cruz, município de 27,3 mil habitantes do Vale do Rio Pardo (RS). Em 2008, recebeu R$ 2 mil do filho mais novo, Cássio Hoff, dono de uma empresa de destalamento das folhas de tabaco. Procurado sobre as doações, Hoff não respondeu.

Apesar da declaração do atual secretário de que a Amprotabaco reúne mais de 500 prefeitos, o número de municípios associados é uma das muitas dúvidas que rondam a entidade. Não há informação oficial com acesso público sobre o assunto.  Procurado pelo Joio, o atual presidente da Amprotabaco Marcus Vinícius Pegoraro (MDB), prefeito de Canguçu – hoje a cidade que mais produz tabaco do Brasil – também não soube dizer.

Conseguimos acesso ao dado oficial por meio do cartório onde a Amprotabaco registra suas atas. A entidade começou com 30 municípios associados (a maioria gaúchos), devidamente registrados em uma ata de fundação.

Depois disso, não há mais referência em atas do número de integrantes, apenas uma lista onde constam 668 municípios produtores de tabaco do Brasil.

A pergunta é fundamental porque, oficialmente, a entidade hoje é financiada por anuidades pagas pelas prefeituras. As anuidades são calculadas conforme o número de habitantes. Municípios com até 25 mil habitantes pagam R$ 1 mil; entre 25 mil e 50 mil, R$ 2 mil, e com mais 50 mil, R$ 3 mil, caso de Santa Cruz do Sul, que tem 131 mil habitantes. Mas, é claro, o orçamento depende de quantas prefeituras estão, de fato, associadas. E quantas destas, de fato, estão pagando suas anuidades.

O estatuto da Amprotabaco deixa o flanco aberto ao financiamento direto da indústria ou de entidades do setor. Suas fontes e o patrimônio advêm, além da contribuição dos municípios produtores,  de “doações, contribuições ou legados de pessoas naturais ou jurídicas”, “auxílio e subvenções de entidades públicas ou privadas” e “outros rendimentos”. O Joio perguntou a Pegoraro se a entidade recebe repasses das empresas, mas não obteve retorno.

Nas atas registradas em cartório não há detalhamentos contábeis. Mas a proximidade com o SindiTabaco e a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo) é clara. Em maio de 2015, quando o então prefeito de São João do Triunfo (PR) Marcelo Distéfano era presidente, associados da Amprotabaco se reuniram em um jantar patrocinado pela dupla do lobby na indústria na churrascaria Fogo de Chão, em Brasília. Na época, os prefeitos associados à Amprotabaco estavam na capital federal para engrossar a Marcha dos Prefeitos, que pediu o impeachment de Dilma Rousseff, aprovado em agosto do mesmo ano pela Câmara dos Deputados.

As duas entidades estão presentes na maioria das reuniões dos prefeitos da entidade ao longo dos nove anos de atuação. Talvez a prova mais evidente dessa íntima relação seja o fato de a “Casa do SindiTabaco”, espaço de eventos do sindicato das empresas, ser mencionada como endereço que consta no CNPJ da Amprotabaco, conforme as atas: rua Galvão da Costa nº 755, no parque que abriga a festa alemã pela qual a cidade do fumo também é reconhecida.

Em entrevista ao Joio, o presidente Marcus Vinícius Pegoraro disse que o endereço era cedido pela prefeitura de Santa Cruz do Sul, que teria pedido o local de volta, deixando a entidade sem sede. Questionamos ao SindiTabaco sobre se o nº 755 pertence ao sindicato, mas não obtivemos retorno.

O fato é que políticos oriundos de apenas 30 municípios  se alternam na gestão da Amprotabaco desde a sua criação, nove anos atrás, a maioria gaúchos concentrados na região central e sul do estado.

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“SOMOS HOJE 508 PREFEITOS CONTRA OS ANTITABAGISTAS”, DIZ GUIDO HOFF

De muitas outras formas, a Amprotabaco é uma incógnita. Não tem site oficial – apenas um perfil no Facebook que não é atualizado desde 2020. Também não há informação se as prefeituras cedem servidores para atuar na entidade privada.

Na atas da entidade às quais o Joio teve acesso, um nome chama atenção: Régis de Oliveira Júnior. Jornalista, Oliveira se tornou o braço direito de Telmo Kirst, passando de estagiário a secretário municipal de Saúde. Em 2017, quando era secretário de Comunicação de Santa Cruz do Sul, assumiu também as funções de secretário-executivo da Amprotabaco (cargo hoje ocupado por Guido Hoff). Ou seja, Oliveira, filiado ao PSD, acumulava dois cargos de confiança aos 23 anos.

O cargo de secretário é chave na operação da entidade, que ainda conta com uma assessora administrativa e um assessor jurídico, responsável, entre outras atribuições, por formular projetos de leis e decretos do interesse dos municípios produtores. Estes seriam os únicos funcionários pagos da Amprotabaco. Conforme o estatuto, o trabalho dos prefeitos associados não é remunerado.

O jornalista Régis de Oliveira Júnior foi secretário-executivo da Amprotabaco na mesma época que ocupada a secretaria de Comunicação de Santa Cruz. Reprodução: Facebook/regisojr

Joio questionou uma das atuais vice-presidentes da entidade, a prefeita de Santa Cruz, Helena Hermany (Progressistas), sobre a sede, o número de associados, funcionários e planos da entidade, mas não obteve retorno.

A história de Hermany, porém, aponta para uma suspeita de que a Amprotabaco seja um clubinho fechado. Desde a posse na entidade em 2022, Hermany não foi chamada a participar de encontros ou reuniões da entidade, disse uma fonte que pediu anonimato – a última reunião da entidade ocorreu em março de 2022 na Expoagro da Afubra, em Rio Pardo. A razão parece ser uma rixa do passado: Hermany era vice de Telmo Kirst. Em dezembro de 2019, Kirst a expulsou do gabinete, gerando uma crise institucional na prefeitura que o levou a trocar de partido, do PP para o PSD.

Contra a diversificação

Apesar de tantas dúvidas, a Amprotabaco sempre teve pretensões internacionais. De três em três anos, os países signatários da Convenção-Quadro se reúnem num evento chamado Conferência das Partes, ou simplesmente COP. Múltiplas fontes e documentos confirmam que a criação da entidade em 2013 tem ligação direta com a sexta edição do evento, que aconteceu em 2014.

O tratado tem um artigo específico, o 17, estabelecendo que os países signatários devem promover alternativas economicamente viáveis para os trabalhadores do setor, especialmente para os agricultores que vivem exclusivamente de plantar fumo.

Na região Sul do Brasil, existem cerca de 130 mil famílias fumicultoras. Mas, ao invés de buscar e fortalecer alternativas econômicas voltadas para elas, a Amprotabaco se dedicou a combater a Convenção-Quadro.

“Após a Convenção-Quadro cresceram as restrições mundiais com relação à produção e comercialização do produto, colocando em risco a viabilidade econômica de milhares de pequenas propriedades rurais no Sul do Brasil.” A frase, dita por Kirst em 2013, resume ao mesmo tempo o incômodo que originou a Amprotabaco e o discurso que daria o tom da atuação da entidade nesta última década.

“Houve uma distorção da Convenção-Quadro pelas entidades ligadas ao tabaco. Eles a demonizam e causam uma confusão entre os produtores ao dizer que ela quer acabar com a produção de fumo”, diz o deputado estadual do Partido dos Trabalhadores (PT) Zé Nunes, cuja base política é São Lourenço do Sul, o quarto maior produtor de tabaco do Rio Grande do Sul. “O que está no texto da Convenção é justamente o contrário: que o produtor não pode ser penalizado.”

“Nunca falamos em eliminar totalmente o cultivo do fumo. As famílias é que deveriam poder, de forma gradativa, tomar a decisão sobre aumentar a área dedicada a outros cultivos, e então abandonar ou não o fumo. É preciso dar apoio para que as famílias possam dar esse passo, caso queiram. O papel do Estado é oferecer outras oportunidades a partir de um cenário em que se observam as desigualdades, riscos e fragilidades tão comuns na cadeia produtiva do tabaco”, explica Adriana Gregolin, que atuou entre 2006 e 2013 no Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco (PNDACT) – criado na esfera federal em 2005, mesmo ano em que o Brasil ratificou a Convenção.

O administrador Jesus Rodrigues estava na Afubra quando a Convenção-Quadro foi ratificada e ficou envolvido mais diretamente com a criação de alternativas ao cultivo de fumo. Ele acompanhou projetos como o de girassol para a produção de biodiesel e o de mirtilo. Apesar de resultados que considera “altamente satisfatórios” nenhum foi para frente.

“O girassol tinha tudo para ser uma nova matriz produtiva, com a produção do biodiesel para o agricultor, o farelo que alimenta os animais; o agricultor aproveita toda a produção, sem desperdício. Com o pré-sal, porém, esse mercado se esvaziou, e deu mais um motivo para dizerem ‘ah, não é tão bom como o tabaco’”, lembra. “E assim acontecia para tudo. Foi quando eu me dei conta que nada daria certo porque há muita pressão para que as alternativas ao fumo não deem certo. Me senti um bobalhão”, desabafa.

O administrador notava uma comemoração tímida dos prefeitos quando o projeto alternativo ao fumo batia na trave. “Eles têm medo porque em dois anos produzindo alimentos o agricultor não quer mais saber de plantar tabaco. Ele se adapta rapidamente se tiver apoio de políticas públicas consistentes”, avalia Rodrigues, para quem entidades como a Amprotabaco têm uma agenda própria, não necessariamente alinhada ao melhor interesse dos fumicultores.


Cinco posições da Amprotabaco que vão contra os interesses dos fumicultores e da população

1. Defende a liberação do cigarro eletrônico no Brasil, embora o avanço do produto no mercado tenha o potencial de gerar uma queda abrupta da demanda por tabaco.

2. Pouco apoio à diversificação da monocultura do tabaco, que consta entre os artigos da Convenção-Quadro.

3. Se mantém neutra em relação aos preços do tabaco, definidos pelas fumageiras.

4. Considera as lavouras de fumo ambientalmente sustentáveis, embora seja uma cultura com uso intensivo de agrotóxicos.

5. Posiciona-se contra a projetos de lei para regular e taxar a venda de cigarros em nível estadual e federal.


A falta de apoio da Amprotabaco à diversificação, algo que depende muito da iniciativa dos governos municipais para deslanchar, é outro indicador de seu perfil mais ligado à indústria da fumaça. Não há menção em matérias jornalísticas ou nas atas analisadas pelo Joio sobre este tema.

Desde a frustrada COP 8, as ações de diversificação apoiadas pelo governo federal estão estagnadas. No governo Jair Bolsonaro, elas foram praticamente extintas. O golpe final foi dado com a nomeação de Fernando Schwanke para a secretaria da Agricultura Familiar no Ministério da Agricultura. Ex-prefeito de Rio Pardo (RS), ele foi indicado pelo deputado federal Alceu Moreira (MDB) e contou com apoio entusiasmado da indústria do fumo. Nas atas da Amprotabaco, Schwanke aparece como presidente da comissão eleitoral que criou a ata de constituição.

Schwanke assumiu dizendo que ia defender o tabaco e tornar o controverso sistema integrado modelo para o setor produtivo. Sua primeira medida foi congelar R$ 30 milhões destinados ao Programa Nacional de Diversificação.

Em dois anos à frente da pasta, Schwanke conseguiu reativar parte do financiamento público para a compra de máquinas pelo fumicultor por meio do Pronamp, o programa de apoio ao médio produtor, mas não teve sucesso em reabrir o acesso ao crédito do Pronaf, o programa de financiamento à agricultura familiar, que retirou os fumicultores da lista de beneficiários. Mas sua maior conquista foi levar à míngua o Programa Nacional de Diversificação de Áreas Cultivadas com Tabaco.

Em uma solicitação feita pelo Joio via Lei de Acesso à Informação, o Mapa informou que foram destinados R$ 9,8 milhões em 2019, R$ 5,8 milhões em 2020 e apenas R$ 1,7 milhão nos dois últimos anos do programa. “Fernando Schwanke veio aqui para terminar com tudo aquilo que havia sido feito”, disse Jesus Rodrigues, ex-Afubra. “Nem se escuta mais falar dele (do programa)”.

Outra posição que evidencia como a entidade atua mais em defesa das corporações do fumo do que propriamente dos produtores, o elo mais fraco da cadeia, é a fala de seu fundador Telmo Kirst, em 2015. Em uma reunião da Amprotabaco em maio que contava com a presença de representantes da Afubra, Telmo Kirst deixou claro que a entidade se manteria neutra em relação ao preço do fumo, definido pela indústria.

“Água e óleo”

A entrada dos prefeitos brasileiros no xadrez pró-tabaco dificultou ainda mais a já difícil tarefa da Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (Conicq), presidida pelo Ministério da Saúde. Um dos artigos da Convenção afirma ser dever dos Estados proteger as políticas de saúde dos interesses da indústria.

Tânia Cavalcante foi secretária-executiva da Conicq durante 19 anos. Desde o início, ela percebeu que a Amprotabaco era uma porta-voz dos interesses da indústria. “Os prefeitos da região produtora fazem uma repetição de mantras da indústria para se contrapor às ações de redução do tabagismo”, diz. Durante essa apuração, o Joio ouviu alguns deles, como o de “que não há cultura mais rentável do que o tabaco em minifúndios” e “que o plantio do tabaco não adoece mais o produtor e é ambientalmente sustentável”.

primeira audiência da qual a Amprotabaco participou na Câmara Federal mostra que Cavalcante não estava errada. A reunião ocorreu em 28 de maio de 2014, seis meses após a criação da entidade. O encontro durou sete horas e reuniu representantes dos dois lados do balcão. O documento de 151 páginas fruto dos debates deixa evidente que os argumentos da Amprotabaco eram os mesmos das entidades pró-fumo – e que surgia  uma nova peça no lobby dessa indústria.

A Amprotabaco ganhou assento neste mesmo ano na Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco, colegiado criado em 2003 no Ministério da Agricultura cujos membros se confundem com os representantes das entidades da indústria ou que orbitam em torno dela. Romeu Schneider, secretário da Afubra, detém a presidência da câmara setorial há 15 anos. O assessor técnico é Carlos Galant, que vem a ser o presidente da Abifumo – uma entidade diretamente ligada às empresas, que faz dobradinha com o SindiTabaco (que também tem assento no colegiado).

Várias dessas entidades queriam um assento também na Conicq. A comissão tinha como membros apenas órgãos do governo federal. Como porta-voz dos prefeitos, a Amprotabaco denotava uma ambivalência perfeita para tentar furar esse bloqueio.

“A Amprotabaco repete os mesmos mantras da indústria, que antagoniza com a Convenção-Quadro. Seu surgimento dificultou ainda mais os trabalhos da Conicq. Isso porque a Conicq tem obrigação de ouvir as partes interessadas, seja da indústria, dos trabalhadores e da sociedade civil. Mas, se abríssemos a porta para a sociedade civil, estaríamos abrindo a porta para a participação dessas organizações como a Amprotabaco que são da sociedade civil, mas que estão a serviço da indústria do tabaco”, conta a médica. “Então, esse era um processo muito difícil: permitir a participação da sociedade civil organizada que defenda os interesses da Convenção sem permitir uma influência que desvirtue os princípios do tratado.”

As discussões sobre alternativas de diversificação ao plantio de fumo emperraram em 2014 e, depois, em 2017. Às vésperas da COP 8, Tânia Cavalcante resolveu apelar para a Amprotabaco e fez um convite a Giovane Wickert, que além de tesoureiro da entidade era prefeito de Venâncio Aires, o principal município produtor de tabaco à época, para visitar o Instituto Nacional do Câncer (Inca) no Rio de Janeiro, sede da Conicq.

“Giovane era uma pessoa muito bem articulada. Ele foi a uma reunião no Inca antes da conferência. Nossa preocupação, mais uma vez, era desmontar o argumento que só queremos acabar com a produção do tabaco – o que não é verdade. Queríamos mostrar que precisávamos da ajuda dos prefeitos para cobrar as ações do governo federal à altura desse desafio. Propomos trabalhar juntos nisso”, conta. “Consideramos que ele estava bastante sensibilizado e pedimos que ele fizesse essa intermediação com seus colegas, na Amprotabaco.”

Após a reunião, porém, “caiu a máscara”, lembra a médica. “Wickert procurou um membro da equipe da Conicq pedindo para não mencionar que ele estivera no Inca, para não acharem que ele foi ‘convertido.’”

Ao Joio, Wickert confirmou o episódio e afirmou ter sofrido pressão de Telmo Kirst. “Ele mandou Dalvi Soares de Freitas, que era o secretário-executivo na época [e prefeito de Encruzilhada do Sul], junto comigo para ver se eu não entregava os anéis. Ele ficou preocupado. Quando voltamos, Kirst perguntou: ‘como é que o Giovane se comportou?’”

Moral da história? A visão dos prefeitos não é tão “mais ampla e não tendenciosa” como Wickert deu a entender na nossa primeira conversa. “Então, é aquele clima de água e óleo. Pode até chegar perto de um diálogo, mas não avança. É assim ainda hoje”, reconhece ele.

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“É AQUELE CLIMA DE ÁGUA E ÓLEO”

Também foi na COP 8 que a Amprotabaco tentou sua manobra mais audaciosa até aqui: formar uma associação internacional de municípios produtores de fumo. O objetivo era descolar um credenciamento de “observador” para ter maior acesso às palestras e sessões da conferência.

“A cadeia não tem voz nas COPs, quem cuida de tudo é o Ministério da Saúde e não se abre espaço. Mas percebemos que algumas entidades internacionais tinham um espaço, e por isso buscamos essa internacionalização”, explica  Wickert. A tentativa não andou para a frente. “Ficou em banho-maria”, admite. Mas a ideia segue nos planos da entidade.

Em um vídeo gravado na COP 8, Wickert ao lado de um representante da Abifumo, disse que a Amprotabaco marcou presença antes de ser expulsa dos eventos vedados à interferência da indústria. “Viemos aqui buscar um ponto de equilíbrio entre o ponto da saúde, o antitabagismo, e a questão da produtividade. Deu para perceber que o Brasil lidera muito forte a implementação da CQCT, e isso nos deixa mais preocupados.”

Na COP 8, a entidade levou uma jornalista do Zero Hora que deu visibilidade ao plano de internacionalização. A matéria se limitou a relatar a indignação dos prefeitos com a falta de acesso aos debates, algo vedado propositalmente para evitar a interferência da indústria da fumaça do tratado global de saúde. Mais uma vez a Amprotabaco estava ao lado do SindiTabaco e Afubra.

Defesas contraditórias

Nas entrevistas dadas por prefeitos ligados à Amprotabaco, nunca há menção às mortes causadas pelo cigarro no Brasil, estimadas em 161 mil a cada ano. O uso de agrotóxicos e a intoxicação dos fumicultores por esses produtos também não tem espaço. Como autoridades eleitas pelo voto popular reunidas em uma associação que tem como fator comum o plantio do fumo, era de se esperar que essas questões ao menos fossem mencionadas. Mas no rol de preocupações da Amprotabaco não há espaço para críticas à indústria do fumo.

Nem posições divergentes em assuntos-chave para os municípios produtores. É o caso dos dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) – cujo marketing se apoia na hipótese, ainda frágil, de serem menos nocivos à saúde. Apenas os produtos de tabaco aquecido dependem da planta. Os cigarros eletrônicos, ou vapes, são à base de líquidos contendo nicotina, que pode ser sintética.

Comparados aos cigarros convencionais, os novos produtos ainda não representam uma grande fatia na receita da indústria do tabaco, e pode ser que isso continue assim por muito tempo. Mas as empresas vêm investindo pesado para introduzir os eletrônicos no mundo todo e têm mirado em adolescentes para conquistar uma nova geração de usuários.

Se realmente houver mais uma grande mudança no perfil dos consumidores ao longo das próximas décadas, a cultura do fumo no Sul pode entrar numa crise. Mas isso não parece ser uma preocupação da Amprotabaco, que defende a mesmíssima posição das empresas.

Em entrevista antes da derrota de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais, Marcus Vinícius Pegoraro apontou que a prioridade da Amprotabaco é pressionar pela liberação do cigarro eletrônico, proibido pela Anvisa em 2009, posição reafirmada em 2022.

“Defendemos o cigarro pensando exclusivamente na produção de fumo. Fumar é uma decisão individual de cada cidadão, não podemos interferir nisso. Claro que tem as questões de saúde, mas é permitido, não? Então nós defendemos que a produção continue”, disse Pegoraro ao Joio.

Já Wickert usa o exemplo da indústria da bebida para tergiversar. “O álcool mata mais e não sofre tanta pressão. O consumo de álcool gera violência, e o fumo não. Há um excesso de controle sobre o tabaco. E o açúcar, e a obesidade?”, questiona.

“A Amprotabaco defender o cigarro eletrônico é muito grave. Há bem menos tabaco no cigarro eletrônico. Estão apenas reproduzindo o que a indústria quer sem nem saber direito o impacto disso na produção”, critica o deputado petista Zé Nunes, para quem a entidade não defende pautas que “realmente farão diferença na autonomia do produtor”.

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“FUMAR É UMA DECISÃO INDIVIDUAL DE CADA CIDADÃO, NÃO PODEMOS INTERFERIR NISSO. CLARO QUE TEM AS QUESTÕES DE SAÚDE, MAS É PERMITIDO, NÃO? ENTÃO NÓS DEFENDEMOS QUE A PRODUÇÃO CONTINUE” MARCUS VINÍCIUS PEGORARO, PRESIDENTE DA AMPROTABACO

Ele dá como exemplo um projeto de lei 204 de sua autoria, apresentado na Assembleia Legislativa gaúcha num longínquo 2015 – que só foi aprovado no final do ano passado. O PL prevê que a classificação das folhas de fumo seja feita na propriedade rural, dando mais transparência à etapa prévia à precificação.

Hoje, a indústria avalia a qualidade do fumo dentro das fábricas sem o agricultor saber quais critérios foram verificados. Essa análise é a base do preço, também estipulado pela indústria. “Muitas vezes, o produtor não concorda com o preço, mas não tem mais o que fazer. Aceita ou perde tudo”, explica Zé Nunes.

Vereador em Santa Cruz do Sul há quatro mandatos pelo PT, Alberto Heck também se impressiona com a posição dos prefeitos. “É uma irresponsabilidade dos gestores não pensarem e planejarem um futuro com menos produção de tabaco, sem as fábricas talvez. As indústrias irão embora sem pestanejar se assim decidirem”, diz Heck, também professor da rede municipal de ensino há mais de 30 anos.

“A pergunta para a Amprotabaco é: os prefeitos estão pressionando para a diversificação ou para dar autonomia ao produtor? Parece que nada”, questiona Heck. “O produtor de tabaco é totalmente dependente da indústria. Ele nem precisa sair da propriedade: ele recebe assistência, as sementes, os agrotóxicos, financiamento da fumageira, que depois compra o que quer determinando a qualidade e o preço. Não é à toa que o tabaco foi chamado a monocultura escravista de produção.”

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