A mídia tradicional abandonou o golpe?

GLOBOOOOPor Samuel Lima.*

O primeiro sinal de que o jogo da mídia começava a mudar veio na noite de quarta, 5 de agosto, no plenário da Câmara Federal. O deputado Mendonça Filho (DEM-PE), calando seus pares e a galeria lotada de trabalhadores do serviço público federal, defendeu posição contrária à aprovação da PEC 443 – que vincula os salários da Advocacia-Geral da União, Polícia Federal, Receita Federal, Polícia Civil (estados e DF) e dos procuradores municipais a 90,25% do subsídio dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), algo em torno de R$ 30,4 mil. Disse o deputado pernambucano: “Firmei convicção que esta PEC não é boa para o Brasil. Ela obedece a critérios que confrontam e afrontam o texto constitucional, que trata da autonomia dos estados, da separação dos poderes”.

No dia seguinte, duas das principais entidades do empresariado nacional, as Federações das Indústrias de S. Paulo (FIESP) e do Rio de Janeiro (FIRJAN) – assinavam nota conjunta “em prol da governabilidade do país”. Em síntese, as entidades que representam a nata do capitalismo no país afirmam que “o momento é de responsabilidade, diálogo e ação para preservar a estabilidade institucional do Brasil”. E respondem ao apelo feito na véspera pelo Vice-Presidente Michel Temer: “A situação política e econômica é a mais aguda dos últimos vinte anos. É vital que todas as forças políticas se convençam da necessidade de trabalhar em prol da sociedade. O Brasil não pode se permitir mais irresponsabilidades fiscais, tributárias ou administrativas e deve agir para manter o grau de investimento tão duramente conquistado, sob pena de colocar em risco a sobrevivência de milhares e milhares de empresas e milhões de empregos” (Fonte: http://migre.me/r7KZr). O recado às bancadas ligadas aos diversos setores econômicos no Congresso Nacional estava claríssimo.

Na manhã da sexta (07/08), coube ao jornal O Globo consignar, em vistoso Editorial, uma posição sintonizada com as entidades empresariais do Rio e S. Paulo. Sob o título “Manipulação do Congresso ultrapassa limites”, o diário carioca faz dura crítica ao que chamou de “marcha da insensatez”: “A Câmara retomou as votações na quarta, com mais uma aprovação irresponsável, da PEC 443, que vincula os salários da Advocacia-Geral da União, delegados civis e federais a 90,25% da remuneração dos ministros do Supremo. Espeta-se uma conta adicional de R$ 2,4 bilhões, por ano, nas costas do contribuinte. Reafirma-se a estratégia suicida de encurralar Dilma, por meio da explosão do Orçamento, e isso numa fase crítica de ajuste fiscal. É uma clássica marcha da insensatez” (Fonte: http://migre.me/r7LuB).

Dando nomes a quem de direito, O Globo pela primeira vez bate de frente com o atual presidente da Câmara: “Mesmo o mais ingênuo baixo-clero entende que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), age de forma assumida como oposição ao governo Dilma na tentativa de demonstrar força para escapar de ser denunciado ao Supremo, condenado e perder o mandato, por envolvimento nas traficâncias financeiras desvendadas pela Lava-Jato. Daí, trabalhar pela aprovação de “pautas-bomba”, destinadas a explodir o Orçamento e, em consequência, queira ou não, desestabilizar de vez a própria economia brasileira” (Fonte Cit.).

No entanto, seria na noite de sexta (07/08), que essa mudança sensível no discurso da mídia chegaria ao palanque do principal telejornal brasileiro, o Jornal Nacional (TV Globo). Uma “longa” reportagem de quase 4 minutos, na qual a presidente Dilma Rousseff teve destacadas falas de um discurso feito em Roraima, rebatendo seus críticos e prometendo trabalhar pela estabilidade política: “Nós temos de nos dedicar à estabilidade institucional, econômica, política e social do país. Eu sei que tem brasileiros que estão sofrendo. Por isso é que eu me comprometo a trabalhar diuturna e noturnamente. País tem uma democracia, por isso nós devemos respeito entre os poderes. Entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. E eu me disponho a trabalhar, também incansavelmente, para segurar a estabilidade política do nosso país” (Fonte: http://migre.me/r7LjX). O tom desta edição do JN se pautou pelo equilíbrio, mesmo nas matérias críticas, bem fundamentadas, ao governo federal.

Algumas perguntas pairavam no ar, a partir daí: seria apenas interesse econômico (“o vil metal”) que levou as grandes empresas de mídia a esse “cavalo de pau ideológico”? É possível distinguir alguns traços de estratégia neste reposicionamento do discurso da mídia monopolista ou é puro “jogo de cena”? Sim, porque para completar a “obra”, os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, ato contínuo, davam espaço e voz ao capital financeiro, através de entrevistas e reportagens com o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco (Acesse aqui:http://migre.me/r7LLH). Na avaliação do banqueiro, “a crise política é mais forte que a própria crise econômica. Isso abala a confiança e retarda a retomada. Todos os participantes desse processo – políticos, Executivo, autoridades – têm de pensar grande. Precisamos ter a grandeza de buscar a convergência”.

Fiquei observando atentamente a movimentação dos três principais jornais impressos do país (edições de 09/08/2015) e nos desdobramentos de segunda (10/08) para ver como essas decisões editoriais impactariam os discursos jornalísticos e colunas. É ainda incipiente para dizer algo mais concreto, porém é significativo que as capas d’O Globo, Estadão e Folha já tragam manchetes “convergentes” (ed. 09/08/2015) – para usar uma expressão do momento: a) O Globo: “PT avalia reconhecer erros éticos para estancar a crise”; b) Folha: “Subsídio ao BNDES vai consumir R$ 184 bi”; c) Estadão: “Em meio à crise, Temer assume papel de fiador do governo”. É cristalino o esforço na direção de buscar alguma saída negociada.

Nas edições desta segunda (10/08), podemos destacar alguns eminentes colunistas destes jornais. Começando com o veterano repórter especial Clóvis Rossi (Folha), cujo título em si já diz quase tudo: “Ruim com ela, pior sem ela?” Não obstante partir de uma bravata do jornalista Igor Gielow (diretor da Redação da Folha, em Brasília), que caracterizou o governo Dilma como “cadáver insepulto na Esplanada”, Rossi vai devagar com o andor: “Correndo o risco de atrair a ira da grande maioria, que considera o governo ‘ruim/péssimo’, ouso dizer que o menos ruim seria recriar as condições políticas para a própria Dilma governar” (Fonte: http://migre.me/r7Mlp).

No vetusto Estadão, radicalmente anti-Dilma, o jornalista José Roberto Toledo assina instigante texto (“Pós Cunha, pós Dilma”), no qual analisa cenários da crise política. Citando os dados de pesquisas de opinião, Toledo destaca que a população não respondeu a nenhum instituto algo essencial: o que ocorreria depois, no caso de afastamento da atual presidente do cargo? Em sua análise, esta é uma questão que não passará pelo crivo da “opinião pública” (aqui abstraio todos os vícios do que significa isso, num país que vive o monopólio da opinião por 7 famílias proprietárias das maiores redes de comunicação). Trata-se, em última análise, de um cálculo político que dois terços do Congresso deve fazer: o dia seguinte a eventual interrupção do mandato de Dilma será melhor ou pior? (Fonte: http://migre.me/r7MRc).

Nas páginas d’O Globo, exceto os militantes mais furiosos da oposição do governo Dilma Rousseff (Merval Pereira e Miriam Leitão), ficou em destaque boa parte da manhã na home do jornal, o texto do colunista Jorge Moreno, reconhecido crítico do PT/Dilma, cujo título não é uma ironia: “Boa sorte, presidente”. No texto, Moreno analisa o que teriam em comum o PT e o PSDB: “O ex-presidente FHC reafirmou, a propósito, que considera Dilma uma pessoa honrada, atribuindo malfeitos naturalmente a seus ‘tratores’ partidários, que atuariam nos ‘limites da irresponsabilidade’. Haveria, segundo ele, lobos e cordeiros na selva política. E o importante é se precaver contra os lobos em pele de cordeiro. Como FHC reclama de Lula por ter dividido a sociedade entre ‘nós’, os do bem, e ‘eles’, os do mal, devemos supor que admita ter conhecido lobos também no PSDB” (Fonte: http://migre.me/r7Ng6).

Os acontecimentos dos últimos cinco dias apontam para uma sensível mudança na prosa da mídia tradicional. É possível afirmar que, para além do alinhamento ideológico aos think tanks nativos (FIESP, FIRJAN, Febraban etc.), há uma aposta de novo tipo no cenário político: o governo Dilma teria atingido um ponto sem volta, em termos de recuperação de sua popularidade, transformando o Partido dos Trabalhadores e seus eventuais aliados (os “ratos” já começaram a pular do navio) em presa fácil para 2018. Ou seja, nessa hipótese, não vale o risco do “quanto pior, melhor” porque isso afetaria os negócios daquelas organizações que são seus financiadores privados – e aliados ideológicos.

O arguto observador de mídia Paulo Nogueira (Diário do Centro do Mundo, DCM) é radicalmente cético e dispara em seu blog: “A Globo não é exatamente original quando procura argumentos para suas atitudes. O que a move é sempre um desses três fatores: dinheiro, dinheiro e dinheiro”. Para Nogueira, “é dentro dessa premissa imutável que se deve buscar a grande questão que emergiu depois do editorial em que a empresa rompe com o golpe. Em 1964, a adesão aos golpistas foi motivada por dinheiro. E isso veio em proporções monumentais” (Fonte:http://migre.me/r7NDX).

Não obstante acreditar que o interesse financeiro das Organizações Globo se sobrepõem, como explicação lógica a esse reposicionamento quase vertical, o jornalista e editor do DCM pondera: “Muito se especulará sobre os detalhes que se traduzirão nisso – dinheiro. Mas uma coisa é batata. Os aloprados (Merval, Kamel etc.) da Globo entenderam perfeitamente o editorial”.

A ver os desdobramentos da crise política, especialmente nos próximos dias quando o PSDB faz um esforço isolado para convocar os protestos contra o governo Dilma, marcados para 16 de agosto.
 

(*) Professor da Faculdade de Comunicação da UnB; pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC) e do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC).

1 COMENTÁRIO

  1. Poxa, professor, o sr. situou muito bem o posicionamento da mídia esses dias, mas na hora do grande Ato Final, me apresenta um pensamento “seminovo” do DCM? 😀 Um amigo meu, funcionário das Organizações Globo, me diz que há um excesso de preocupação com o posicionamento da Globo e que isso apenas a fortalece. Enfim… essa é a nossa obsessão comunicóloga. Abraço.

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