A dura tarefa de se opor ao que está dando certo

lollo_06_07Por Ladislau Dowbor.

Oposição nos traz a ideia de resistência, de buscar travar um processo que consideramos errado ou nocivo. Os seringueiros se opuseram ao desmatamento, buscavam bloquear as máquinas. É uma guerra dura contra interesses dominantes, mas pelo menos as coisas são claras. Bastante mais complicado é se posicionar quando se trata não de reverter tendências, mas de acelerar e aprofundar o processo. De certa maneira, trata-se de empurrar esse imenso paquiderme chamado governo, carcomido por interesses de grandes grupos agarrados por todas as partes, para que avance mais e melhor. A grande realidade, o elefante na sala, para ficarmos nos paquidermes, é que as políticas adotadas nos últimos anos no Brasil estão dando certo. Mas poderiam dar muito mais.

Isso gera sem dúvida problemas grandes para a direita, a que quer reverter os processos, pois não pode dizer a que vem: os programas sociais, o avanço da repartição do produto, os programas para os segmentos mais pobre da sociedade e semelhantes só são atacáveis por quem queira fazer um suicídio eleitoral. Sobra a improbidade administrativa, esse eterno cavalo de batalha que é a corrupção (que soberba lição de ética nos deram Jânio Quadros com a “vassourinha”, os militares no poder ou o caçador de marajás de Alagoas), ou a frágil proclamação de maior eficiência para fazer o mesmo. A direita, para travar os avanços, apela para elevados sentimentos de ética, o que pode gerar confusão, mas não constrói alternativas.

Mas, para os que apoiam os avanços do país, é também bastante complicado. Não dá para negar os imensos avanços, mas não dá para negar a imensa paralisia política que gera a tal da governabilidade, o travamento da reforma agrária, os imensos atrasos do saneamento, a continuidade do financiamento dos grandes grupos de comunicação pela publicidade oficial, o escandaloso nível dos juros dos bancos comerciais, a fortuna transferida anualmente para os bancos pela taxa Selic, a imensa injustiça do sistema tributário, e assim por diante. Muitos simplesmente baixam os braços e se tornam espectadores, quando não se juntam a alguma alternativa que esperam ser mais promissora.

O resultado é uma situação no mínimo esdrúxula, em que legítimas manifestações por mais realizações, ajudando de certa maneira a empurrar as coisas, se veem confundidas com movimentos de direita, com amplo apoio na mídia, que quer reverter o que se conseguiu. Essa política da direita, pegando carona em reivindicações legítimas, faz parte da confusão gerada. Do lado da oposição positiva, da oposição “para a frente”, por assim dizer, vale a pena deixar as coisas mais claras.

Interiorização do desenvolvimento

 Já era tempo de termos boas cifras sobre como anda o Brasil em sua base territorial. O Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil 2013 apresenta a evolução dos indicadores nos 5.565 municípios do país. A confiabilidade é aqui muito importante. No caso, trata-se de um trabalho conjunto do Pnud, que tem anos de experiência internacional e nacional de elaboração de indicadores de desenvolvimento humano, do Ipea e da Fundação João Pinheiro de Minas Gerais, além de numerosos consultores externos. Os dados são do IBGE. Não há como manipular cifras ou dar-lhes interpretação desequilibrada com esse leque de instituições de pesquisa.1

 Outro fator importante: o estudo cobre os anos 1991-2010, o que permite olhar um período suficientemente longo para ter uma imagem de conjunto. Para os leigos, lembremos que o índice de desenvolvimento humano (IDH) apresenta a evolução combinada da renda per capita, da educação e da saúde. Isso permite desde já ultrapassar em parte a deformação ligada às estatísticas centradas apenas no PIB, que mede a intensidade de uso dos recursos, e não os resultados. Um desastre ambiental como o vazamento de petróleo no Golfo do México, só para dar um exemplo, elevou o PIB dos Estados Unidos ao gerar gastos suplementares com a descontaminação, “aquecendo” a economia. O fato de prejudicar o meio ambiente e a população não entra na conta. A Inglaterra acaba de melhorar seu PIB ao incluir estimativas de tráfico de drogas e prostituição, no valor equivalente a R$ 37 bilhões.2

O dado mais global mostra que nessas duas décadas o IDH municipal (IDHM) passou de 0,493, ou seja, “muito baixo”, para 0,727, “alto”. Isso representa um salto de 48% no período. Em 1991, o Brasil contava 85,8% de municípios no grupo “muito baixo”, portanto, abaixo de 0,5, e em 2010, apenas 0,6%, ou seja, 32 municípios. É um resultado absolutamente impressionante e retrata um avanço sustentado na base da sociedade. A tendência já foi sentida nos anos 1990: claramente, a Constituição de 1988, com a democratização, e a quebra da hiperinflação em 1994 permitiram os primeiros passos.

O número de municípios com IDHM “alto” ou “muito alto” passou de 0 em 1991 para 134 no ano 2000, e em 2010 atingiu 1.993 municípios. O que os dados gerais representam para este país tão desigual é imenso: a interiorização do desenvolvimento.

A esperança de vida ao nascer passou de 64,7 anos em 1991 para 73,9 anos em 2010, o que significa que na média o brasileiro ganhou nove anos extras de vida. Em 2012, segundo o IBGE, atingimos 74,5 anos. Não há como mascarar esse imenso avanço. Os saudosos da ditadura têm hoje em média dez anos de vida a mais para protestar contra a democracia.

No plano da educação, a porcentagem de adultos com mais de 18 anos que tinham concluído o ensino fundamental passou de 30,1% para 54,9%. Em termos de fluxo escolar da população jovem, segundo indicador do item educação, passamos do indicador 0,268 em 1991 para 0,686 em 2010, o que representa um avanço de 128%. A área de educação é a que mais avançou, mas também continua a mais atrasada, pelo patamar de partida particularmente baixo que tínhamos. E em termos de renda mensal per capita, passamos de 0,647 para 0,739 no período, o que representou um aumento de R$ 346. Isso é pouco para quem tem muito, mas, para uma família pobre de quatro pessoas, aumentar em mais de R$ 1.000 a renda muda a vida.

São avanços extremamente significativos. Pela primeira vez o Brasil está começando a resgatar sua imensa dívida social. Aqui não há voo de galinha, e sim um progresso consistente. Por outro lado, os mesmos dados mostram quanto temos de avançar ainda. É característico o dado de população de 18 a 20 anos de idade com o ensino médio completo: 13% em 1991, 41% em 2010. Grande avanço, triplicou o nível, mas também revela o imenso campo pela frente, e copo meio vazio permite gritos e denúncias, em particular quando se aproximam as eleições. O Nordeste ainda apresenta 1.099 municípios, 61,3% do total, com índice “baixo”, na faixa dos 0,5 e 0,6 no IDHM. Não se trata de questionar o processo, e sim de reforçá-lo e aprofundá-lo. Guiar-se pelos dados, e não pelos ódios ideológicos, é fundamental.

Além do PIB

Resumir os resultados do desenvolvimento de uma nação em uma cifra apenas beira o surrealismo. Uma metodologia interessante apresentada em 2014 mede o desempenho de 132 países, focando os resultados efetivos em termos de qualidade de vida das pessoas. São 54 indicadores agrupados em três questões:3

1) O país assegura as necessidades mais essenciais de sua população?

2) Os fundamentos básicos que permitem aos indivíduos e às comunidades alcançar e sustentar seu bem-estar estão assegurados?

3) Há oportunidades para todos os indivíduos alcançarem seus plenos potenciais?

Com o apadrinhamento de Michael Porter e o peso da Universidade Harvard, os resultados dificilmente poderão ser tingidos de viés progressista. Fazendo coro com os já numerosos aportes metodológicos que se multiplicam pelo mundo, o estudo desloca com clareza o foco das medidas. “Tornou-se cada vez mais evidente que um modelo de desenvolvimento baseado apenas no desenvolvimento econômico é incompleto. Uma sociedade que deixa de assegurar as necessidades básicas, de equipar os cidadãos para que possam melhorar sua qualidade de vida, que gera a erosão do meio ambiente e limita as oportunidades de seus cidadãos não é um caso de sucesso. O crescimento econômico sem progresso social resulta em falta de inclusão, descontentamento e instabilidade social” (p.11).

Na análise dos autores, “entre os países dos Brics, o Brasil apresenta o perfil de progresso social mais forte e ‘equilibrado’” (the strongest and most “balanced”). Exibe uma fraqueza em Necessidades Humanas Básicas (puxada pelo score muito baixo de 37,5 para Segurança Pessoal), mas tem uma performance consistentemente boa em todos os componentes tanto dos Fundamentos de Bem-Estar como de Oportunidades, com exceção de Educação Superior (38,09, 76o) (p.50).

O Brasil ocupa o 46o lugar entre 132 países, com um índice médio geral de 69,957. A Colômbia ocupa o 52o lugar; México, o 54o. O PIB per capita brasileiro utilizado na pesquisa é de US$ 10.264 em valores de 2012. Os dados sintéticos para o Brasil podem ser observados na Tabela 2.

Para termos uma referência, os Estados Unidos ocupam o 16o lugar, com um PIB per capitade US$ 45.336 e um índice médio geral de 82,77. No caso do item Fundamentos do Bem-Estar, que envolvem “Acesso ao conhecimento”, “Acesso à informação e comunicação”, “Saúde e bem-estar” e “Sustentabilidade”, há uma dinâmica inversa interessante: os Estados Unidos estão recuando para uma maior desigualdade nos últimos anos e gerando danos ambientais muito elevados, enquanto o Brasil progride, o que explica os números muito semelhantes da tabela: 75,96 para os Estados Unidos e 75,78 para o Brasil.

Produtividade dos recursos

 Um segundo eixo de análise que essa pesquisa permite é em termos da repartição dos recursos. Constata-se uma forte correlação entre o aumento do PIB e a melhoria na área das necessidades básicas (no caso, “Nutrição”, “Água e saneamento”, “Habitação” e “Segurança”), mas apenas para os mais pobres: “As necessidades humanas básicas melhoram rapidamente quando o PIB per capita aumenta, nos níveis baixos de renda, mas depois [a tendência] se torna mais horizontal [flattens out] à medida que a renda continua a aumentar” (p.54).

Para nós, isso é muito importante, pois mostra que o aumento de renda nos estratos mais pobres melhora radicalmente o progresso social em geral. Em outras palavras, o dinheiro que vai para a base da sociedade é muito mais produtivo em relação aos resultados para a sociedade, o que bate plenamente com as pesquisas do Ipea sobre a produtividade dos recursos. Estamos aqui no centro do problema da baixa produtividade econômica gerada pela concentração de renda, confirmando os efeitos multiplicadores que geram a redistribuição, inclusive para o próprio PIB.

Isso nos leva de volta ao principal desafio: avançar na redução da desigualdade. Esta continua crescendo no mundo e está atingindo limites insustentáveis. É a razão do imenso sucesso do livro de Thomas Piketty, O capital no século XXI.A desigualdade foi tema central do último Fórum Econômico Mundial. Grande impacto gerou também o relatório da Oxfam, Working for the few,4 que com cifras insuspeitas do Crédit Suisse, que gerencia fortunas e sabe do que fala, constata que 85 pessoas acumularam mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial.

A dimensão brasileira aparece no relatório da Forbes, com os principais bilionários brasileiros.5 A origem das fortunas, no nosso caso, é particularmente interessante: trata-se essencialmente dos banqueiros (concessão pública, com carta patente, para trabalhar com dinheiro do público); de donos de meios de comunicação (concessão pública de banda de espectro eletromagnético para prestar serviço de comunicação à população); de construtoras (as grandes, que trabalham com contratos públicos, nas condições que conhecemos); e de exploração de recursos naturais (solo, água, minérios), que são do país e os quais mais se extraem do que se produzem. É o divórcio crescente entre quem enriquece e quem contribui para o país. Piketty é claro: “A experiência histórica indica que desigualdades de fortuna tão desmesuradas não têm grande coisa a ver com o espírito empreendedor e não têm nenhuma utilidade para o crescimento”.6

Moral da história? O avanço social, a redução das desigualdades e a sustentabilidade ambiental não constituem entraves, e sim condição do desenvolvimento em geral. No nosso caso, ao mesmo tempo que se constatam avanços impressionantes, temos um imenso caminho pela frente. Dizer que a dinamização do desenvolvimento pela inclusão se esgotou é bobagem. Estamos no caminho certo, mas o processo precisa de um sólido impulso.

Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e professor titular da PUC-SP. É autor de A reprodução social e Democracia economômica – um passeio pelas teorias (contato http://dowbor.org).

Ilustração: Lollo

Fonte: http://linkis.com/diplomatique.org.br/vckpU

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