A conversão do diabo e a igreja do diabo. Por Edna Garcia Maciel

Nuit du Sabbat. Eugène Delacroix, 1828

Por Edna Garcia Maciel, para Desacato.info

A história a seguir, apresenta sínteses e reflexões de dois contos sobre o diabo. O primeiro, de Leônidas Andreiev[1] e, o outro, de Machado de Assis[2]. Os geniais autores mostram dogmas e contradições sociais. Quem nunca pensou em vender a alma ao diabo em troca de algo inatingível?

Um velho diabo, repentinamente começou a ter certa inclinação à virtude. Afinal, quem não ama o bem? O personagem de Andreiev, quando moço, havia praticado inúmeras e insignificantes proezas diabólicas.  Na velhice, ficou mais razoável e estava cansado do seu ofício. Apesar de um tanto metafísico, o diabo gostava de filosofar. Exauriu sua fé na perfeição do inferno e nos costumes diabólicos. Subiu à terra e se instalou numa igrejinha católica em Florença. Ali, experimentou certo repouso de espírito e principiou sua conversão. A igreja era muito pequena, ele não tinha muito trabalho. Percebeu que os fiéis só cometiam pequenos pecados – que a eles se entregavam sem necessidade de sua intervenção. No início, quis tentar o velho pároco da igreja. Tudo em vão. Por desencargo de consciência, contava uma anedota escabrosa a uma velha ajoelhada perante a virgem, ou fazia o velho sacerdote confundir palavras da missa. Feito o trabalho, o diabo ia ler um breviário roubado escondido atrás de uma coluna da igreja. Em suas raras visitas ao inferno, mentia para Satanás a respeito de suas tarefas. O fato é que ele sentia certa aversão pela barulheira, sujeira e desordem do inferno. Voltava com satisfação à igrejinha.

Um dia, disfarçou-se de homem e foi ao confessionário. O pároco ficou estupefato quando um senhor velho e triste se apresentou como diabo. Para confirmar a declaração, pediu provas. O diabo lhe contou sobre as muitas vezes que fizera o padre cair em tentação. O pároco queria escorraçá-lo, porém, o diabo respondeu que desejava se arrepender de tudo, segundo preceitos do Evangelho. O sacerdote se espantou ainda mais com essa revelação. Então, indicou a ele uma lista de livros. Durante dois anos, o diabo leu todos e aprendeu muito. No entanto, não encontrou resposta à indagação que o perturbava: o que era o bem e como praticá-lo. Desesperado, pediu ao pároco que o salvasse. O velho falou que, ao invés de crer, ele só fazia procurar contradições nos livros. Mas, o diabo argumenta que, de um lado, tudo era proibido, de outro, tudo era permitido. Ele precisava de uma resposta que lhe servisse para sempre, para todos os casos da vida – que não tivesse em si nenhuma contradição.

Deu um prazo de sete dias ao pároco, caso contrário, voltaria para o inferno. No sétimo dia, ainda furioso com o diabo, o religioso falou que ele era inteligente, mas que deixara escapar um princípio muito importante dos livros: “Ama-te a teu próximo como a ti mesmo”. Porém, o diabo argumenta que não podia amar ninguém devido à sua natureza. Passados mais sete dias, o sacerdote comunicou ao diabo que havia encontrado dois preceitos básicos no Evangelho: “se te pedem a camisa, dá-a, embora não tenhas outra”; se te dão uma bofetada, na face direita, oferece igualmente a esquerda”.

O velho sacerdote pensou que havia encontrado um jeito de salvar o diabo do inferno. Depois de algum tempo, o infeliz regressou e disse ao padre que ninguém o esbofeteara. Relatou que um senhor tinha dado uma bengalada em sua cabeça, que ele devolveu a pancada quebrando duas costelas do ancião. Contou ainda, que foi espancado por muitos outros porque não salvou um homem de um afogamento. E, mais, que estivera entre pobres – nenhum deles havia pedido a camisa nova que estava usando. Depois de muita insistência, o pároco resolveu ensinar-lhe leis gerais sobre o bem. Foi então, que velho padre pensou em tudo que havia lido ao longo de sua vida. Falou ao diabo que existia uma lei geral que poderia servir-lhe. Abriu o livro sagrado e mostrou-lhe grandes palavras que diziam: “NÃO TE OPONHAS AO MAL”. O diabo ficou assustadíssimo – até perdeu seu habitual orgulho. O frade explicou-lhe que aquela lei perigosa e suprema do bem era fácil de ser praticada: bastava que o diabo permitisse que as pessoas procedessem à vontade, que ele repetisse sempre a mesma frase: “Perdoai-os Deus Onipotente, porque eles não sabem o que fazem”.

Dois meses depois, o diabo regressou terrivelmente magro, sedento e coberto de cicatrizes. O pároco ficou abismado com a expressão de terror e de angústia nos olhos dele. O diabo contou que estava deitado atrás de uma grande pedra quando viu dois bandidos assaltarem uma mulher que trazia um embrulho; que os marginais partiram a cabeça da mulher e mataram a criança. O Sacerdote estarrecido perguntou ao diabo porque ele nada fizera. O diabo retrucou que havia seguido à risca a lei geral: “não te oponhas ao mal”. O padre pálido e horrorizado, orou por horas, sentindo-se culpado por tudo que acontecera. Com toda razão.

Por fim, o pároco disse que nada mais podia fazer por ele. O diabo sentiu-se perdido, teria de voltar para o inferno. Após muita insistência, o pároco falou que iria traçar uma linha de procedimento sem leis e sem regras. Então, se pôs a elaborar uma espécie de agenda para o ano todo, de modo que o diabo deveria seguir as instruções milimetricamente. Enquanto o sacerdote se entregou com afinco ao trabalho, o diabo ficou instalado num pequeno desvão na torre da igreja, entre velhos trastes. O diabo não via e nem falava com mais ninguém – apenas refletia sobre o bem, como praticá-lo sem que esse se tornasse o mal. Um dia, pela janelinha da torre da igreja, viu queimarem uma herege. Ficou paralisado ao constatar o prazer sublime do padre perante a fogueira. Pensou no mandamento “não matarás”. Mas, o sacerdote retrucou que ninguém havia matado a mulher – que ela fora queimada graças a Deus. O diabo quebrava a cabeça para explicar essa nova contradição. Com o coração oprimido, esperou pacientemente que o sacerdote – já muito doente – concluísse seu trabalho.

O padre levou três anos escrevendo um Manuscrito. Ao recebê-lo, o diabo prometeu cumpri-lo à risca. Mas, ao invés de percorrer o mundo – movido pelo orgulho e pela vaidade – foi exibir o Manuscrito aos outros diabos no inferno. Tudo que ele falou sobre o bem, todas as palavras santas repetidas por gritos daqueles lábios impuros e mentirosos tornaram-se incríveis torpezas. Além de espancarem o diabo, rasgaram seu Manuscrito. Em seu desespero para apanhar o Manuscrito, ele insultou até Satanás. A cólera deste foi tão grande que o discípulo do padre teve que fugir. A muito custo, apanhou o Manuscrito rasgado e despedaçado. Correu para a casa do padre que já estava moribundo e suplicou-lhe que fizesse outro Manuscrito. Mas, o padre estava morrendo. Uma dor profunda apoderou-se do diabo que se agitava, gemia e uivava como um animal feroz. Atirou o manuscrito a um canto. “Não suspeitou naquele instante que fazia o bem, este bem intangível que ele havia procurado com tanto afã e às custas de muitos sofrimentos. E não o compreendeu em toda sua vida”[3].

O Manuscrito achava-se diante dos olhos tristes do diabo que envelhecera muitos anos, num só dia. Abriu o documento com mãos trêmulas e mergulhou longo tempo no estudo das linhas cuidadosamente escritas. Ao terminar a leitura, ficou fora de si. O Manuscrito inteiro lhe parecia uma pilhéria de mau gosto. Dir-se-ia que o velho sacerdote estava zombando do diabo ou, devia ter perdido o juízo. Sentiu-se furioso e sem esperança. Todo o Manuscrito – da primeira à última página – era composto de prescrições que diziam o que o diabo deveria fazer a cada semana, dia a dia, hora a hora. Não havia nele nenhuma lei geral. O que dolorosamente impressionou o diabo foi não ver em todo o Manuscrito uma só verdade, daquelas que a humanidade recolheu durante muitos séculos destinadas a embelezar o bem.

Subitamente, o diabo teve um raio de esperança. Ponderou que o sacerdote teria feito o Manuscrito para que ele deduzisse por si, conclusões gerais. Foi trabalhar palavra por palavra, letra por letra, procurando apropriar-se de um fio sutil e perceptível que conduzisse à definição do bem. Se o fio se quebrava, esforçava-se para juntar as extremidades. Não se cansava e nem se irritava esperando chegar às conclusões necessárias às regras do bem. Impossível descrever o seu desespero e horror quanto terminado o trabalho, nada encontrou. Nem uma ideia geral, nem uma verdade concludente, clara e indiscutível.

“Não matarás; porém, se for necessário, mata. Não mentirás; porém, se for necessário, mente. Dá tudo que tem ao próximo; porém, algumas vezes, tira-lhe o que possua. Não cobices a mulher do teu próximo; porém, se não há outro remédio, podes tirar-lhe a mulher, seu escravo e seu boi”[4]. Em tudo do manuscrito não havia uma prescrição que não fosse desmentida na página adiante. Milhares de contradições impediam chegar a conclusões gerais. O mais terrível era que o sacerdote admitia, em alguns casos, assassinatos e mentiras com uma serenidade desconcertante. Instantaneamente, passou-lhe pela cabeça que o sacerdote tinha sido um grande pecador. Encolhido a um canto dizia para si mesmo – enlouquecido de pavor – que talvez o sacerdote fosse Satanás disfarçado, tal como ele se disfarçou em homem e se perdera para todo o sempre. Esperou que Satanás abrisse a porta e o levasse de volta para o inferno. Mas, a porta não se abriu.

O diabo foi vivendo do jeito que dava. Quando, de acordo com o Manuscrito, ele precisava salvar alguém, salvava; quando era preciso matar, matava. Pouco a pouco, se habituou com suas tarefas e se tranquilizou. Deixou de pensar no bem. Passava por situações difíceis quando o Manuscrito, meio destruído, interrompia-se, e o diabo ficava sem saber o que fazer. Nessas ocasiões subia ao campanário e ficava horas sem fazer nada, com os olhos fechados, os ouvidos tapados para não ouvir. Suas mãos capazes de remover montanhas, ficavam cruzadas sobre o peito, condenadas à impotência. Certo dia, concluiu que estava muito cansado e desiludido com sua monótona rotina. Quando o diabo se aborrece, coisas inacreditáveis acontecem. Decidiu que iria fundar sua própria igreja, pois estava cansado e humilhado com o papel avulso e subalterno que havia exercido por séculos: sem organização, sem rituais e sem cânones.

O diabo resolveu percorrer o mundo até que chegou ao Continente Americano. Dentre os países latinos, avaliou que um deles, era o mais propenso a crenças, à adoção de mitos e adoradores de messias – um terreno favorável às doutrinas diabólicas. Sua igreja poderia prosperar e tornar-se meio eficaz de combater outras religiões e destruí-las de vez. No Novo Mundo, o protagonista de Assis, não teria diante de si nem Maomé e nem Lutero. Foi falar com Deus na entrada do céu. Explicou que ali estava não por um Fausto, mas por todos Faustos de séculos e mais séculos. Com um sorriso de escárnio e triunfo tinha uma ideia cruel, alguma coisa que o fazia acreditar ser superior a Deus. Este, em sua divina sabedoria, retrucou que ele era, além de retórico, vulgar – a pior coisa que poderia acontecer a um espirito de sua espécie. Disse-lhe ainda, que tudo que falava já tinha sido dito e redito, há muito tempo. Entediado, o dispensou. Então, o diabo mergulhou em direção à terra promissora: Brasil. Disfarçado com uma túnica beneditina, se pôs a espalhar a nova doutrina prometendo aos fiéis, aos discípulos, aos apóstolos, as delícias da vida, deleites mais íntimos e glórias. Confessava que era o diabo. Não o diabo das noites sulfúreas e dos bacanais com bruxas depravadas e horrendas. Quase ninguém acreditou.

A doutrina do diabo era a que podia ser: a negação de tudo. Esta era a substância da demoníaca filosofia. Quanto às formas, podiam ser sutis, mas em sua maioria, eram cínicas e descaradas. Afirmava que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras – naturais e legítimas. Elegeu-se presidente da Nação. De início, se pôs a reabilitar a soberba, a luxúria e a preguiça dos poderosos. Declarou que a avareza não era mais do que “a mãe da economia” e, desse modo, escolheu um poderoso ministro para essa área – destinado a destruir todas conquistas dos trabalhadores, em nome da acumulação da riqueza individual. Queimou florestas que dariam inveja ao poderoso fogo secular do inferno – a fim de enriquecer os ricos. Ficou tão extasiado com seu compromisso de classe que declarou guerra aos cientistas, à educação pública, aos estudantes, professores, jornalistas, artistas – a quaisquer críticos do governo. O diabo, que nunca suportou contradição, tratou de instaurar o pensamento único e, com isso, vivificou as mais devastadoras formas de obscurantismo. Cercadinho por figuras medíocres – e pela ema palaciana -, afirmou que a gula tinha um valor intrínseco. Juntamente com seus discípulos, apregoou que era muito melhor sentir o gosto de manjares do que a saliva da fome alheia. Que, substituiria a vinha do Senhor pelas melhores cepas do vinho moderno – que a bebida nunca faltaria às principescas ceias de seus seletos cúmplices.

Como se não bastasse, instituiu que a inveja era uma virtude inigualável na obtenção de infinita prosperidade. Seus admiradores e bajuladores o seguiam entusiasmados. Aprofundou a fraude, inclusive judiciária, no cumprimento de acordos com a burguesia. Demonstrou, com exatidão, que a venalidade era um direito superior a todos outros direitos. Neste caso, raciocinou que, se um indivíduo podia vender coisas – tênis, roupas, dentre outras – que existiam fora de si, podia legitimamente vender seu voto, sua fé, sua palavra, inclusive a si mesmo, isto é, sua consciência. Desse modo, fez do parlamento um local de mero exercício da hipocrisia, da dissimulação e de negociatas subordinadas às esteiras da privatização de tudo. Discursou, deu entrevistas, apregoou sua nova doutrina e retificou tudo que pode. Todas formas de respeito, consideração pessoal e social foram condenadas pelo diabo.

Para concluir sua doutrina, difundiu que era preciso eliminar qualquer solidariedade. O amor ao próximo foi considerado obstáculo grave ao estabelecimento da nova ordem institucional. Só haveria uma exceção: amar mulheres alheias, uma forma de amar a si próprio. Reforçou que a candura, o respeito e a cordialidade tinham sido invenções de parasitas, de maricas, de negociantes insolúveis e, sobretudo, de comunistas. Não se devia dar ao próximo senão, a indiferença – em alguns casos, o ódio e o desprezo, principalmente aos movimentos sociais e aos pobres. Até montou um gabinete do ódio nos lindos tapetes do palácio construído com sangue de operários. Elevou a misoginia, o machismo e o racismo ao paroxismo. Disseminou, pelo exemplo, práticas discriminatórias violentas para o gozo de muitos demônios sádicos. O rancor – antes dissimulado -, veio à tona por meio deboches grosseiros e cruéis exercidos cegamente por personagens semelhantes às de Saramago. Turbas passaram a adorar o mito infernal. Foram formadas grupos de seitas satânicas. Em todas regiões do país surgiram igrejas com ignóbeis e prósperos mercenários da fé diabólica. O diabo, finalmente havia triunfado. Até que um dia…

[1] ANDREIEV, Leônidas. A Conversão do Diabo. In: Maravilhas do Conto Russo. Editora Cultrix, São Paulo.  p. 221-248.

[2]ASSIS, Machado. A Igreja do Diabo. In: 50 Contos de Machado de Assis. Seleção, Introdução e Notas de John Gledson. Companhia da Letras, São Paulo, 2007. p. 183-190.

[3]ANDREIEV, Leônidas. A Conversão do Diabo. In: Maravilhas do Conto Russo. Editora Citrix, São Paulo.  p241.

[4] ANDREIEV, Leônidas. A Conversão do Diabo. In: Maravilhas do Conto Russo. Editora Cultrix, São Paulo. p.  247.

Edna Garcia Maciel é natural de Igarapava, São Paulo. Foi professora e pesquisadora da UFSC. Doutora em Educação. Atualmente, participa do Núcleo de pesquisa Transformações no Mundo do Trabalho, da UFSC. Livros literários são parte do seu viver.

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