A angústia do humano diante da civilização. Por Carlos Weinman.

 

Imagem: Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

Os seres humanos são considerados como seres de cultura, com valores e costumes que determinam a forma de ver o mundo, que corresponde a uma maneira de perceber os comportamentos considerados adequados, que podem ser enquadrados em uma determinada ordem, socialmente considerada aceitável. Para designar essa ordem, é comum ser utilizada a palavra civilização, contraposta ao que é designado como barbárie, subdesenvolvido, inadequado. Entretanto, surge a questão se seria possível a civilização produzir, de forma dialética, em uma relação de contradição, a barbárie. Essa questão é afirmada quando a civilização promove uma tendência em devorar e aniquilar seus filhos, o que podemos observar nas circunstâncias que determinam o tempo de vida da filha de Deméter, diante de uma condicional posta: podes pagar? Quantos são os viajantes do mundo que não podem? Quantos seres apenas rastejam a sua existência até o fim derradeiro? A cabeça de Ulisses estava cheia desses pensamentos, estava angustiado, queria notícias da sobrinha, quando estava organizando os produtos do mercado, viu a chegada de Roberto e de Inaiê, imediatamente foi pedir sobre a sobrinha:

Ulisses – Como está Perséfone?

Roberto – Ela está bem, consegui pagar R$ 10.000,00, mas deixei a ferrugem dos esperançosos como garantia. Sinto muito por não ter consultado, mas era a única coisa que poderia fazer.

Ulisses – Não tem problema, o importante é que o tratamento dela começou.

Roberto – Verdade, porém temos um desafio, temos que arrumar em um mês R$ 1.000.000, 00 para cirurgia.

Inaiê – Minha nossa, não sei o que vai acontecer, mesmo trabalhando, achando outros empregos vai ser muito difícil.

Quando pensaram sobre o valor da cirurgia, os três ficaram por um momento sem ânimo, desesperançados, tudo que queriam era ouvir e ver a sobrinha crescer, brincar, rir, fazer e contar seus planos, sofrer com seus amores e desafetos. Contudo, as condições do momento levavam a impossibilidade de dar vida a uma menina, pois um modelo de civilização estava para devorar mais uma entre muitas crianças, mais um ser humano na multidão, um número, o civilizado estava lá para acalmar os sentimentos e, ao mesmo tempo, parecia estar lá para literalmente “engolir”, findar uma existência, afinal havia um valor entre a vida e a morte que deveria ser respeitado, os valores e a boa conduta davam o tom de naturalidade, de normalidade.  Enquanto isso, a ampulheta que media o tempo, para tentar salvar a vida de Perséfone, já estava contando.  Roberto quebrou o longo silêncio fazendo uma pergunta:

O que faríamos se soubéssemos que teríamos apenas um mês de vida?

Inaiê – Que pergunta? Poderia ter ficado quieto!

Ulisses – Calma Inaiê, o fato de estarmos vivendo essa situação não deve tirar de nós a possibilidade de questionar, de pensar, o que é próprio do ser humano.  

Inaiê – Que humano estás falando? Esse ser que deixa seus semelhantes morrerem sem atendimento se não tiver com o que pagar? Ou então, para não chocar as aparências, finge que atende, mas deixa desfalecer ou escolhe aqueles que podem pagar para salvar! Ainda tem a possibilidade de contratar profissionais para fazerem apenas um pouco, pois recursos que lhes são dados não garantem a possibilidade de fazer o que sabem, alguns ganham diagnóstico, mas se não há possibilidade de fazer o tratamento, não seria a ignorância mais benéfica? Que civilização é essa que forma profissionais da saúde para atuar e ter que fazer escolhas, devido aos limites de recursos?

Roberto – A nossa ideia de civilização e desenvolvimento vem acompanhada por ideias sobre um mundo fantástico, apresenta o anseio de sucesso. Contudo, criamos um mecanismo em que o ser das pessoas desvanece tanto em espírito como em condições materiais. Somos capazes de criar máquinas para substituir o humano, dando a falsa impressão sobre a possibilidade de chegar um momento da história em que as pessoas poderiam ser mais livres, pois desenvolveriam trabalhos mais intelectuais e criativos. Porém, a substituição do homem pela máquina vem demonstrando a precarização das condições de sobrevivência, exigido cada vez mais formação e criatividade, privando o espírito de sua liberdade, por mais contraditório que pareça, visto que não é possível escolher. Os sonhos, em geral, são construídos por outros, a ideia de sucesso é externa aos indivíduos, fazendo o ser esvaziar-se, as pessoas buscam cada vez mais, diante do vazio e das incertezas, a salvação através da sua espiritualidade, trata-se de uma salvação individual, voltada para o mercado, uma espiritualidade da barbárie ou da civilização que permite que seus filhos sejam devorados todos os dias, sejam levados.

Inaiê – Nessa lógica de mundo, que criamos, tudo vira uma mercadoria, bens materiais, pessoas e até a espiritualidade são apenas um objeto  para quem sabe tornar-se grande, um grande negócio!!! Quero encontrar o humano, por todo lado encontro uma multidão de pessoas, mas não encontro o sentimento, a espiritualidade, a consciência da humanidade!!! Onde está o humano?

Ulisses– Calma minha irmã, vamos conseguir!

Inaiê – Calma? Vamos conseguir o quê? Acalmar nossos ânimos, enquanto estamos harmoniosos e em paz, as pessoas morrem, as pessoas não encontram a si mesmas, estão jogadas nesse mundo, como se fossem embrulhos, objetos descartáveis!!!

Ulisses – Você tem razão em parte,  sobre isso o filósofo Martin Heidegger destacava que, muitas vezes, no nosso cotidiano, passamos ter uma vida inautêntica, que corresponde ao fato de tornarmo-nos preguiçosos e cansados de nós mesmos, nos perdemos nos afazeres, com as coisas, com as ideias, pensamentos e formas de ser de outros  e esquecemos que temos a possibilidade de viver um projeto de ser humano que está ligado ao nosso ser, isto é, a possibilidade de nos projetar, significar, simplesmente ficamos distanciados de nós mesmos.

Roberto – No entanto, não escolhemos as circunstâncias históricas, geográficas, sociais e econômicas, parece que somos jogados no mundo.

 Ulisses – Verdade, ele dizia que isso corresponde a facticidade do ser, mas temos a existencialidade, que para Heidegger não é simplesmente estar no mundo, mas envolve o fato do ser humano ser ou ter uma existência interior e pessoal, tem a possibilidade de se projetar, de dar sentido e significado.

Roberto – Entretanto, esse projetar-se não pode ser dado fora das condições em que está inserido.

Ulisses – Exatamente, temos coisas que estamos envolvidos e não temos como fazer diferente.

Inaiê- Vou dizer isso para um jovem que está terminando o seu ensino médio, que tem desejos, sonhos, quer ter um espaço na sociedade, mas o espaço não é dado a ele, como poderia falar de projetar-se?

Ulisses – E como não poderia? Teremos que aceitar simplesmente o que está posto no mundo e ficarmos nele acomodados?

Inaiê – Claro que não!

Ulisses – Heidegger destacava que o ser humano tem o risco da ruína do seu ser, quando ele se desvia do seu projeto, reduzindo a sua vida  como se fosse para as relações públicas, vivendo para o trabalho, para o seu status, para os projetos dos outros, se distanciando da principal  característica da humanidade, que é o de buscar realizar ou tornar-se a si mesmo.

Inaiê – Dessa forma, parece se tratar de uma atividade meramente individual!

Ulisses – Sim e não, pois trata-se de um projetar-se do indivíduo no mundo e com o mundo, o que torna a relação entre o individual e o mundo indissociáveis.

Roberto- Lembrei que Heidegger descreve que nós acordamos para a vida autêntica diante de um sentimento, que é a angústia, em especial a angústia da morte, que nos traz a consciência da nossa finitude e nos leva a pensar sobre o que é realmente importante.

Inaiê – Não sei, mas vemos muitas pessoas no mundo sem possibilidade, com muitas carências e não fazemos nada por elas, simplesmente passamos, pelo motivo de nos sentirmos impotentes diante de tantas mazelas.

Roberto – Verdade, por outro lado, se olharmos para nós, estamos debatendo sobre isso pelo motivo de estarmos experimentando a angústia e o medo da perda, do contrário faríamos essa reflexão? Ficaríamos indignados?

Inaiê – Acredito que não, talvez Heidegger esteja certo, não estou convencida disso, vejo que a humanidade está carecendo da experiência de ser, estamos apenas voltados para o ter e aparecer, perdemos a capacidade de perceber as contradições e as dores dos nossos semelhantes, muitas vezes falamos da coletividade, do bem comum, mas não somos capazes de perceber a dor dos outros, simplesmente estamos no mundo e pensamos em capitalizar, para ter garantias, mas no fundo, isso é uma quimera.

Nesse momento a dona do estabelecimento foi em direção dos três, percebeu que eles estavam parados por um bom tempo e estavam angustiados. Diante disso perguntou:

Parece que vocês não estão bem, tem alguma coisa que eu possa ajudar?

Inaiê – Moira, se você tiver um milhão de reais com certeza!!!

Moira – Minha nossa, qual o motivo dessa ironia?

Roberto – Não é apenas uma ironia, é o valor necessário para salvar a vida de Perséfone, temos apenas um mês para alcançar esse valor.

Moira – Não sabia que era tanto, podemos fazer uma campanha aqui na cidade e na capital, tenho conhecidos que podem ajudar, enquanto isso vou ver com um advogado se podemos fazer alguma coisa judicialmente!

Os três concordaram, uma centelha de ânimo surgiu, agora era necessário levar um pouco desse sentimento para Deméter, para uma mãe desesperada, que estava cuidando da filha. Roberto tinha combinado com ela que iria no hospital e ficaria com a menina durante a noite. Assim, começou uma campanha e um pedido de solidariedade para mais pessoas para salvar uma vida, mas eles não sabiam que por detrás do gesto das pessoas que passavam a solidarizar-se, havia uma sementinha sobre algo perdido, capaz de construir um novo lançar-se, um novo projetar-se em busca da humanidade.

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Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

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