Por Nicoly Ambrosio, em InfoAmazonia.
Manaus (AM) – Em julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, na quinta-feira (27), no Chile, o governo federal pediu desculpas formais, pela primeira vez, aos quilombolas maranhenses. O advogado-geral da União, Jorge Messias, reconheceu que o Estado brasileiro violou os direitos de propriedade e de proteção jurídica das comunidades durante o processo de construção e expansão do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), da Força Aérea Brasileira (FAB). Informou ainda que um Grupo de Trabalho (GT) Interministerial foi instituído para organizar alternativas para a demarcação das terras das Comunidades Remanescentes de Quilombos de Alcântara.
Sem prazo definido para a divulgação da decisão final da Corte, o governo brasileiro já havia anunciado em nota oficial, na quarta-feira (26), que mudaria a postura da defesa perante os órgãos internacionais. Segundo Rita Oliveira, secretária-executiva do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e uma das representantes do Executivo no julgamento, o Brasil pretende apresentar uma postura pautada pelo respeito às comunidades e suas demandas, “mas que também dialogue com a necessidade de avanço tecnológico da região e que possa primar pelo diálogo, com o intuito de construir alternativas sustentáveis”, disse.
Na sustentação da Advocacia Geral da União, o Estado brasileiro reconheceu e se comprometeu a pedir desculpas oficiais por não cumprir seu dever de “titular o território de propriedade coletiva e pela falha na proteção judicial”, afirmou Jorge Messias durante a sessão, que foi transmitida pelo Youtube. Também foram prometidos recursos financeiros para as vítimas e a titulação das terras progressivamente em até dois anos. No entanto, o pedido de desculpas foi contestado pelos quilombolas presentes na Corte.
Para Danilo Serejo, cientista político, peticionário e líder comunitário na Comunidade Quilombola de Canelatiua, “não se pode aceitar por parte das representantes que o pedido de desculpas se reduza a uma fala pública durante uma audiência”. Em sua fala durante a sessão, Danilo disse que deve haver uma conversa anterior com as comunidades afetadas. “As representantes não concordam com os termos das desculpas do Estado brasileiro”, declarou.
A advogada do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), Letícia Osório, declarou que não ficou claro qual é a extensão territorial que o Estado gostaria e precisa demarcar. “Essas decisões do governo foram publicadas ontem. Não houve consulta com as comunidades. Precisamos de uma proposta por escrito para melhor compreendê-la”, disse.
Quilombolas foram ouvidos
Maria Luzia Diniz, de 68 anos, foi uma das primeiras testemunhas a serem ouvidas pelos membros da Corte. Moradora da agrovila Marudá, ela foi vítima dos reassentamentos obrigatórios realizados na região pela FAB. O Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) foi inaugurado durante a ditadura militar nos anos 1980. Em depoimento emocionado, a quilombola contou que a perda do território tradicional e a falta de acesso a serviços essenciais, como saúde, educação e alimentação foram agravantes para tornar a vida da sua comunidade menos digna. “Tiraram tudo da gente. A gente queria pelo menos ter uma vida digna, e isso não aconteceu lá”, disse.
Luzia afirmou que muitos moradores das comunidades reassentadas foram para a capital, São Luís, onde hoje vivem de empregos precarizados. Ela disse que os que foram para a cidade não tinham estudo. “Alguns jovens se envolviam com o tráfico e voltavam em caixões”, contou.
Ela contou ainda que as famílias, que antes moravam perto da praia e viviam do extrativismo e da pesca, foram colocadas em áreas improdutivas e distantes do mar, o que influenciou diretamente na alimentação. Algumas famílias chegaram a passar fome. “A comunidade para onde fomos não tinha condição de sobrevivência. Não tinha terra boa para plantar. A única fonte de renda. Depois que tirou a pesca e a lavoura, todo mundo passou a sentir fome”, afirmou.
Luzia lembrou que a sua e muitas das comunidades não queriam viver sob condições precárias, mas que foram obrigadas. “As mulheres ficarem sem sua fonte de renda, o babaçu. Nessa localidade que a Aeronáutica nos colocou não tem palmeiral. Aquelas que continuaram a exercer o ofício, foram buscar em outras comunidades, que ficam distantes”, relatou.
Ainda em depoimento, Maria Luzia disse que até hoje as famílias não receberam os documentos que dão posse para as casas onde foram realocados nas agrovilas, e que os quilombolas residentes das agrovilas não tiveram acesso à saúde e à educação, como assegurava o acordo. “Tivemos que nos conformar e aceitar essa condição. Vivíamos do extrativismo, roça e pesca e isso foi arrancado de nós. Fizeram vilas perto da praia, para as famílias dos militares da aeronáutica e os moradores foram realocados em áreas mais distantes”, explicou.
Inaldo Faustino, líder comunitário e morador da agrovila Espera, foi também testemunha no julgamento, que encerrou as manifestações das partes. Ele afirmou que a vida nas agrovilas alterou as relações e os costumes tradicionais do modo de viver quilombola. “Eu pescava antes, mas não me adaptei com a prática nas agrovilas. Não ia andar 12 quilômetros para ir pescar”, disse.
“Antes a gente colhia, plantava e colhia juçara, buriti, para nossa sobrevivência. Na transferência, nós perdemos porque fomos mandados para uma espécie de comunidade planejada, mas sem os recursos. Acabou que as comunidades passaram a enfrentar dificuldades porque ali não nos garantia sobrevivência plena e recursos naturais. Hoje vivemos de pequena agricultura familiar porque não temos outra alternativa “, descreveu o morador.
Segundo Inaldo, os quilombolas foram abandonados à própria sorte nas agrovilas e que nenhuma das promessas de titulação e de assistência técnica para manejo de processo de agricultura, foram cumpridas. “Nos deixaram lá. Eles nem se preocuparam em um dia fazer um levantamento e perguntar: como que está a vida de vocês? Então o Estado através do Centro de Lançamento (CLA) tem seus capitães do mato”, relatou Inaldo.
Grupo de Trabalho e indenizações
Nesta quarta-feira (26), o governo federal determinou a criação de um GT interministerial, encarregado de propor uma solução para a disputa territorial em Alcântara. O GT deverá formular propostas para titulação territorial, com consulta prévia às comunidades quilombolas e terá um ano para preparar um relatório sobre a efetivação de direitos sociais, econômicos e culturais do modo de vida quilombola, bem como a participação social direta e o controle social para as políticas públicas destinadas a essa população.
O GT deverá também solicitar informações ao Programa Espacial Brasileiro (PEB) sobre o resultado de trabalhos já realizados na região. O ministro Jorge Messias informou que o Brasil está comprometido em viabilizar recursos financeiros para compensar as violações de direitos sofridas pelos quilombolas ao longo dos anos.
O governo brasileiro também assumiu o compromisso de respeitar e seguir a decisão da Corte sobre o caso. Por meio de nota, o secretário de Assuntos Multilaterais Políticos do Ministério das Relações Exteriores, Carlos Márcio Bicalho Cozendey, lembrou que o Brasil aceita a jurisdição da Corte desde 1998. Segundo ele, o que for definido na audiência de hoje sobre o caso será “um compromisso internacional do Brasil aceitar”.
“As audiências da CIDH são importantes para que os juízes entendam bem qual é a situação das vítimas. Obviamente é uma situação complexa, difícil, em que efetivamente o Estado brasileiro falhou em muitos aspectos, então, isso tudo estará em discussão. Mas é preciso que tudo isso seja enquadrado dentro das regras dos pactos de direitos humanos existentes na região”, disse o secretário.
Com o fim das audiências, começa agora o prazo para as alegações finais escritas e, em seguida, a publicação da sentença pela Corte. A denúncia chegou em 2001 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA). E foi movida pela Justiça Global, pela DPU (Defensoria Pública da União) e pelas comunidades quilombolas.
Desculpas não bastam
Em nota divulgada horas depois do fim da audiência, as organizações representativas das comunidades quilombolas de Alcântara afirmam que as respostas apresentadas pelo governo são atravessadas por dúvidas, uma vez que nada de concreto foi apresentado. “Estes anúncios foram cercados de zonas fundamentais de incerteza quanto ao seu efetivo conteúdo, com expressões pouco precisas, palavras vagas, que mantém o futuro de Alcântara em um campo de grande insegurança institucional”, explicam.
Quanto à titulação do território, as organizações declararam que o Estado não apresentou qual a extensão ou localização dos territórios a serem titulados, e qual a forma jurídica de tais títulos. “Para o Estado, tal definição ficará a cargo de um Grupo de Trabalho anunciado já durante os dias de audiência perante a Corte Interamericana, é formulado sem qualquer consulta às comunidades quilombolas envolvidas”, dizem.
Ainda que frustradas e preocupadas com a possibilidade de não haver respeito com as formas associativas das comunidades, e paridade de participação com os seus representantes durante a atuação do GT, as comunidades de Alcântara dizem “querer crer que estão diante, efetivamente, de um passo rumo ao futuro – mesmo que tudo pareça, de algum modo, repetir as fórmulas do passado”.