Por Marco Vasques, para Desacato.info.
DALÍRIO
É inverno. E, como de costume, faz frio. É manhã de sol. E Dalírio toca, como se estivesse em transe ou delírio, um violão sem cordas à beira da estrada. Os carros passam com suas pressas metálicas. As pessoas evitam olhar para a imagem do homem preto com os pés enfiados em havaianas de tiras soltas, com as pernas cobertas por uma calça rasgada e uma camiseta fina incapaz de aquecer a pele. Os passantes desviam suas trajetórias e olhares, os carros atropelam a música emanada pelo balanço frenético de Dalírio, que toca e dança feito anjo que sangra pelas asas.
Abraçado ao seu violão, ele crê nas canções que imagina. A energia desta imagem não pode ser narrada, mas pode ser imaginada. Quem por ele passa deveria se perguntar quais canções passam pelo seu corpo e que sonhos tem este homem que mais parece um pássaro virgem e selvagem que se debate dentro de uma gaiola. Mas não.
Leia mais – Biografias interiores para geografias imperfeitas (XIX): Iara e Yara.
Dalírio canta uma música inaudível para uma plateia inexistente. Se seu nome lembra o perfume das flores, sua vida está mergulhada na solidão ríspida que acomete os farrapos das ruas. Ao menos ele tem o mundo nos dedos que arranham a carcaça do violão que vibra em suas mãos.
É claro que não se pode ouvir coisa alguma numa manhã fria de inverno. Também não se pode imaginar quais espécies de sentimentos ou sentidos fizeram com que ele figurasse numa das avenidas mais movimentadas da cidade a entoar um velho instrumento. Estaria ele inventando uma dança e imaginando música apenas para se aquecer? É possível.
O fato é que a força com que abraça seu violão sem cordas se impõe como mistério e imagem que movem a miséria humana. O mundo ecoa nas suas mãos trêmulas e escoa nos sonhos de uma música por ele inventada. É inverno. Dalírio chora nas mãos do mundo e, ainda assim, canta.
—
—
Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
—