O Brasil parece caminhar na contramão das tendências globais ao não combater o desmatamento e a ilegalidade, expondo as exportações e a economia a crescentes riscos de boicote. “Precisamos nos colocar na posição do outro e refletir: qual comprador, investidor ou país parceiro gostaria de ver sua imagem associada à destruição da natureza e a contravenções?”, questiona Voivodic.
Após o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) constatar aumento de quase 30% do desmatamento na Amazônia no último ano e de 114% desde o ano de promulgação do novo Código Florestal (2012), o governo informou que a perda de cobertura vegetal do Cerrado entre agosto de 2018 e julho de 2019 foi de 648.400 hectares, mantendo os preocupantes níveis dos últimos anos. Muito embora tenha havido uma pequena redução em relação ao ano passado, de 2,26%, a perda ainda é alarmante: equivale à derrubada da cidade de São Paulo, ou a área metropolitana de Londres, a cada três meses.
Os dados são do Prodes Cerrado, mapeamento do Inpe, sob coordenação do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Sua série histórica indica estabilização na taxa de destruição do Cerrado nos últimos quatro anos em torno de uma média de 680 mil ha/ano. Mais da metade da área original do bioma já foi convertida, principalmente para atividades agropecuárias, e pesquisas apontam que infelizmente apenas 20% do que resta de vegetação encontra-se em condições saudáveis de conservação. Isso torna o Cerrado uma das áreas naturais mais ameaçadas do planeta. Segundo pesquisadores, no ritmo de destruição dos últimos anos, o Cerrado caminha para um processo de extinção em massa sem precedentes na história do planeta.
Sobre os números de desmatamento no Cerrado, Mauricio Voivodic, diretor executivo do WWF-Brasil, afirma: “O Cerrado vive uma tragédia silenciosa, pois continua a ser destruído por falta de políticas responsáveis. O Código Florestal, por exemplo, mesmo que estivesse de fato sendo implementado (o que não é a realidade), protege pouco ao bioma – entre 20 e 35%. Temos hoje 23 milhões de hectares de áreas já abertas com alta aptidão agrícola para soja – cultura que representa mais de 80% da agricultura no bioma -, havendo ainda outros 15 milhões de hectares já desmatados e com potencial para a agricultura, somando 38 milhões de terras aptas já abertas. Toda essa área tem o potencial de abrigar com sobras a expansão projetada pelo agronegócio na região, ao longo de muitas décadas. A agricultura ocupa atualmente 22 milhões de hectares no Cerrado, 18 deles com soja”.
Voivodic acrescenta que “o governo federal, no entanto, dá sinais ambíguos aos produtores: se por um lado oferece crédito subsidiado para recuperação de pastagens e intensificação agrícola, por outro edita uma Medida Provisória que legaliza invasões de terras públicas ocorridas até o ano passado (2018), incentivando que a fronteira agrícola siga se expandindo sobre vegetação nativa indefinidamente e de forma ilegal (em terras não tituladas). Precisamos urgentemente acabar com essa ambiguidade e dar um sinal claro de que não vamos destruir a fonte de riqueza da sociedade e dos povos e comunidades tradicionais, que não colocaremos em risco sua biodiversidade única e que não comprometeremos o berço das águas que abastecem torneiras, irrigam lavouras e movimentam turbinas hidrelétricas em benefício de nossa economia e de milhões de brasileiros, da cidade ao campo.”
Os números do Prodes do Cerrado e da Amazônia diferem por causa da distinção de perfil entre os atores que promovem a devastação. Na Amazônia, há terras públicas sem a devida proteção do Estado e, assim, disponíveis à invasão de quadrilhas de grileiros. Já o desmatamento nos últimos anos no Cerrado tem sido promovido principalmente por atores privados, produtores rurais e grupos empresariais – com destaque às chamadas companhias de terra. A estabilização das taxas está em parte associada com o fato de que tais companhias começaram a atender ao apelo de seus investidores e compradores quanto à eliminação das ilegalidades e do desmatamento, já que o desmatamento zero é uma agenda em rápida consolidação tanto no mercado internacional, como em legislações nacionais e de blocos econômicos.
O coletivo de 150 empresas compradoras de commodities e relevantes grupos de investidores de capital (que somam mais de US$ 7 trilhões em seus portfólios), denominado SoS Cerrado, já indicou que pretende tomar medidas imediatas para dissociar suas cadeias produtivas e investimentos da destruição do Cerrado. Os primeiros sinais começam a surgir, neste mês: Nutreco, a maior empresa de ração animal do mundo, a gigante rede britânica de supermercados Tesco e a empresa do setor de proteínas animais Grieg Seafood (uma das líderes globais na produção de salmão) anunciaram um apoio milionário a produtores de soja do Cerrado que tenham intenção de expandir sua produção sem desmatamento.
“Considerando os riscos socioambientais e de perda de mercados, assim como a enorme área aberta disponível para a expansão produtiva, o governo brasileiro deve estabelecer metas e ações concretas para a redução do desmatamento do Cerrado e para a recuperação dos cerca de 20 milhões de hectares de passivos ambientais em propriedades privadas existentes no Brasil”, afirma Edegar de Oliveira Rosa, diretor de Conservação e Restauração do WWF-Brasil. “O governo deve ainda oferecer rastreabilidade de produtos e combater as ilegalidades, dando clareza às empresas, investidores e à sociedade sobre a origem e a legalidade da produção. O setor privado também deve fazer a sua parte, condicionando negócios a uma real segurança quanto à ausência de crimes e desmatamento em suas cadeias e investimentos. Cumprimento das leis e transparência pelo governo, assim como rigor do setor privado em seus negócios serão decisivos para conter a destruição”, sintetiza Rosa.
O Brasil parece caminhar na contramão das tendências globais ao não combater o desmatamento e a ilegalidade, expondo as exportações e a economia a crescentes riscos de boicote. “Precisamos nos colocar na posição do outro e refletir: qual comprador, investidor ou país parceiro gostaria de ver sua imagem associada à destruição da natureza e a contravenções?”, questiona Voivodic.
A importância do Cerrado
O Cerrado se estende pelos estados da Bahia, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Piauí, Paraná, Rondônia, São Paulo, Tocantins e o Distrito Federal. Depois da Amazônia, é o maior bioma da América do Sul, correspondendo a 1/4 do território nacional, com mais de 2 milhões de km2. São insuficientes as áreas protegidas demarcadas: 3,1% em unidades de conservação de proteção integral, 5,2% em unidades de uso sustentável (a maior parte sem fiscalização e implementação de planos de manejo adequados) e 4,8% em 109 terras indígenas.
A área protegida do Cerrado é inúmeras vezes inferior à da Amazônia, e a cobertura com vegetação íntegra do bioma já foi reduzida a cerca de 20% da original, com mais da metade de seu território devastado. Seguida essa trajetória, a destruição do Cerrado acarretará uma extinção massiva de espécies, de acordo com artigo da revista Nature (2017). O bioma tem cerca de 10 mil espécies de plantas, das quais 44% endêmicas, além de uma enorme diversidade de fauna, incluindo espécies como o Lobo-Guará, o Tamanduá-Bandeira e a Onça-Pintada. O Cerrado abriga 30% da biodiversidade brasileira e 5% das espécies do planeta. Apesar disso, a destruição segue e, além de perder espécies, as emissões anuais de gases causadores do efeito estufa, por queimadas e desmatamento, equivalem a mais de 40 milhões de carros.
O atual nível de destruição compromete as águas que nascem no Cerrado e alimentam seis das oito grandes bacias hidrográficas brasileiras: Amazônica, Araguaia/Tocantins, Atlântico Norte/Nordeste, São Francisco, Atlântico Leste e Paraná/Paraguai, incluindo as águas que escoam para o Pantanal. O Cerrado também é a fonte de 90% das águas do rio São Francisco. Quando se desmata o Cerrado, comprometem-se a recarga de três grandes aquíferos brasileiros (Bambuí, Urucuia e Guarani), assim como os recursos hídricos que são fundamentais para milhões de pessoas que vivem no bioma e para nove em cada dez brasileiros que consomem energia vinda de hidroelétricas.