‘A literatura pode ajudar a entender o valor de uma luta coletiva’

Imagem: Reprodução

O alarme soa e o grupo de adolescentes deixa a roda instalada no piso térreo do Sesc Santos. Uma das alunas do Programa Juventude permanece na sala e prolonga a conversa com a escritora de 72 anos: questiona sobre identidade, sentimentos e frustrações. Essa interação com os jovens é, nas palavras de Conceição Evaristo, a força de potencialização não apenas de sua obra, mas também de uma nova construção de sociedade, pautada no resgate da humanidade e, quem sabe, na construção de futuro diferente e mais igualitário.

Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946. A origem humilde e a tardia conclusão dos estudos (deixou os bancos escolares já aos 25 anos) não a impediu de seguir um caminho rodeado de palavras: se graduou Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense e fez mestrado em Literatura Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro, com a dissertação Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade (1996).

Os direitos humanos e a valorização da cultura negra são assuntos recorrentes nas palavras que soprou pelo mundo, registradas em livros que atravessaram as barreiras ideológicas e nacionais e já foram traduzidos para francês, inglês e espanhol. A mulher que teve o primeiro espaço de recepção junto aos seus pares do movimento negro, hoje luta para que seu reconhecimento lance luz também a diversos outros autores negros que foram e ainda são apagados das histórias.

“O caminho está sempre em construção. Talvez hoje a positividade desse caminho seja a força com que todos os fatos acontecem e são divulgados. É preciso lutar permanentemente pela visibilidade. Quero que através da minha imagem outros possam ser levantados, como outros tantos nos permitiram chegar até aqui”, conta.

Da infância simples, Conceição lembra da composição feminina de sua casa. Uma cena que se repete em diversos lares Brasil afora: avó, mãe e tia que viveram na subalternidade, mas cujas lutas – mesmo que não em movimentos sociais propriamente ditos – apresentaram outros caminhos.

“Nós crescemos trabalhando em ‘casa de família’ e fomos caminhando, nos afirmando. Minha filha já tem outras perspectivas e meu padrasto pedreiro, se estivesse vivo, veria o neto cursar Engenheira. Viver é lutar. Em alguns momentos a luta é pelo aqui e agora, mas com uma dignidade que deixa lições para as gerações futuras”.

EM TODOS OS ESPAÇOS

Autora premiada, Conceição insiste no poder das narrativas – inclusive o de desconstruir outras narrativas. Seus textos e visões de mundo saíram dos espaços reclusos de sua mente inquieta e ganharam as salas de aulas, lugar onde ainda acha imprescindível estar.

“Eu cresci sem conhecer nenhum escritor de perto. Hoje a criança negra ou a criança branca que me vê na mídia pode enxergar uma possibilidade futura para ela. Acredito de verdade que a mídia, a militância e a educação são capazes de neutralizar forças negativas e conceber a ideia de uma nação justa”.

Nesse quesito, a escritora acredita que cada um, com suas opções políticas – e não necessariamente partidárias – tem responsabilidade pela luta coletiva a partir de seu lugar social. “Não existe milagre, existe construção. Nesse sentido, a mídia constrói um discurso social, cria um lugar de cultura e quanto mais esse discurso for diverso e plural, mais a gente tem possibilidade de ver direitos mais iguais”, conta, refletindo que possivelmente há dez anos ela não estaria inclusa em atividades desenvolvidas por um órgão como o Sesc falando de literatura negra sem ser uma literatura folclórica.

PROCESSO HISTÓRICO

Conceição acredita que o processo histórico é sempre de construção e a experiência negra mostra que não existe mudança de uma hora para outra.

“Tudo é construído paulatinamente. Cada escritor negro que se apresenta, que fala de seu processo criativo e do seu entendimento de literatura só faz com que a Literatura Nacional ganhe. A gente vai forçando uma marca, assim como a autoria indígena faz e como a literatura homoafetiva faz. Essa última, por exemplo, vai construindo outras formas de relacionamento que vão inclusive desconstruir uma literatura que traz um imaginário heteronormativo. Esses grupos que tiveram suas identidades agredidas ou negadas têm na literatura um espaço de recuperação, de afirmação”.

UM BRASIL DE DÉBORAS E SAMARAS

Em sua obra, ‘Histórias de Leves Enganos e Parecenças’, Conceição apresenta personagens como Dolores Feliciana e Andina: mulheres abatidas por opressões sociais. Enquanto a primeira representa uma das tantas mães que choram a morte dos filhos, a segunda busca uma forma de alimentar a fome dos seus.

A narrativa, embora ficcional, é também o retrato de um Brasil doente: dados da Fundação Abrinq apontam que em 20 anos, o assassinato de jovens negros cresceu 429% e um relatório do Banco Mundial afirma que a pobreza aumentou no Brasil entre 2014 e 2017, atingindo 21% da população (43,5 milhões de pessoas).

Ao tomar conhecimento da história de santistas como Débora – fundadora das Mães de Maio após o assassinato do filho no período que ficou conhecido como ‘Crimes de Maio’ – e Samara, presidente da Associação dos Cortiços do Centro, Conceição destaca que embora não tenha passado por essas situações, sua condição de mulher negra a permite experimentar essa dor enquanto inserida no coletivo e registrá-la em seus textos.

“Essa realidade precisa ser dita. Um problema que não é tocado é como se ele não existisse. Um menino de 13 ou 14 anos disse que começou a ler meu texto e a princípio era a história de uma mãe arrumando a roupa do filho, mas depois esse texto foi criando um incômodo. Essa literatura para incomodar precisa ser escrita. Eu gosto desse processo de criação, onde eu preciso pegar esse leitor de surpresa e fazer ele questionar por qual motivo isso mexe com ele. O incômodo gera reação e quem sabe ele se sinta tão comprometido com isso a ponto de compreender o valor de uma luta coletiva?”, pondera.

Ela se recorda de uma ocasião, também em sala de aula, que um estudante branco compartilhou e só após a leitura do texto parou para pensar, que até chegar ao quarto da empregado doméstica era preciso passar por diversos espaços compartilhados da casa e que essa distância, além de física, era também emocional.

“O texto literário que tem o poder de convocar a sua humanidade faz com que você enxergue o outro de forma diferente. Ele entendeu que ela só aparecia na hora que se tornava necessária. E eu espero que esse menino, que por tradição será um dos mandantes dessa nação no futuro, pelo menos cresça refletindo sobre essa realidade injusta e formas de transformá-la. O poder do texto literário é, em outras palavras, o de acordar a humanidade do outro”.

Mais uma vez, ela volta a bater na tecla da importância da educação. “Acredito mais no jovem do que nas pessoas da minha idade. Acho que os mais velhos estão mais viciados, mais fechados em seus valores. O jovem tem a chama da juventude, do novo. E nesse sentido, a juventude negra que cresce experimentando uma sensação de morte é ainda mais aguerrida. Eles estão mudando a história dos cursos superiores, sabem por qual motivo estão aqui”.

MUITO MAIOR QUE UMA CADEIRA

No ano passado, a maior campanha popular da história tinha como objetivo fazer com que Conceição Evaristo fosse a primeira mulher negra a assumir uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL). A falta de representatividade negra e feminina na centenária instituição é notória: das 298 pessoas que já ocuparam cadeiras, apenas 8 são mulheres.

Da experiência, ela guarda apenas aprendizados. “Não sei se me candidataria de novo. Sei que a minha campanha mudou a história e fez as pessoas pensarem inclusive sobre as regras de seleção. O resultado mostrou o que é a ABL. Eu não perdi nada. A Academia é que perdeu a oportunidade de ser um espaço mais plural”, finaliza.

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