Por Pedro Marin.
Em um dos capítulos de seu clássico “Massas e poder”, o escritor búlgaro Elias Canetti trata das “ideias de grandeza dos paralíticos”. Cita um homem, um comerciante de meia-idade, que em função de sua paralisia adentrou num certo estado alucinatório de grandeza. Em seus delírios, além de planejar montar uma grande fábrica de papel, estabelecer-se na agricultura em larga escala, abrir uma madeireira, criar 40 cavalos e outros bichos, “sentia-se bastante disposto para o trabalho e tão bem física e mentalmente como nunca estivera. Queria ali, naquele lugar que o agradava tanto [a clínica em que era tratado], escrever poesias, o que fazia melhor do que Goethe, Schiller e Heine […] Queria inventar uma infinidade de máquinas, reformar a clínica, construir uma catedral mais alta que a de Colônia e envolver a clínica toda em vidro blindado. Era um gênio, falava todas as línguas do mundo, moldaria toda uma igreja de ferro fundido, conseguiria do imperador as mais elevadas condecorações, inventaria um remédio para acalmar os loucos, doaria mil volumes à biblioteca da clínica – em sua maioria, obras de filosofia – e tinha apenas pensamentos divinos. Essas ideias de grandeza alternavam-se constantemente. Surgiam num momento para, rapidamente, tornarem a cessar […]”. Tudo isso e mais um pouco o homem planejava calmamente, a despeito de sua paralisia.
Olhando retrospectivamente ao 8 de janeiro de 2023, certamente encontraremos essa tendência à grandeza na massa que, após dias ocupando rodovias e meses protestando em quartéis, irrompeu nos prédios dos Três Poderes em Brasília, destruindo tudo quanto lhe aparecesse à frente. A violação do acervo dos prédios – com a queima de uma Constituição, quebra de relógios e vasos, pinturas rasgadas, togas de ministros roubadas e até alguns indivíduos que simularam defecar no Supremo Tribunal – indica como o rebaixamento de toda simbologia institucional refletia-se na massa como seu próprio engrandecimento; engrandecimento esse que permitia a componentes da massa gritar frases como: “O Brasil é nosso! Nós vamos passar por cima! Ninguém vai tirar a gente mais! Dane-se o resto!”.
Mas o moral da massa em questão e sua disposição à violência se elevou não só porque, envoltos em ideologia, estivessem muito determinados em seus objetivos. Não; essas características cresceram na massa especialmente porque ela vinha de semanas sem que suas ideias de grandeza se enfrentassem com as forças da realidade: ocuparam rodovias por todo o país com a anuência das polícias locais e da Polícia Rodoviária Federal; ocuparam quartéis sob a proteção física e moral dos comandantes das Três Forças; e depois, no dia 12 de dezembro, data da diplomação de Lula, causaram imensa destruição em Brasília, também com a inação das forças de segurança. Embora fosse pequena – não passavam de alguns milhares – a massa que invadiu os prédios no 8 de janeiro não era assim tão delirante em sua grandeza: só não percebia que essa grandeza, esse poder, lhes era facilitada por aqueles que, nos quartéis, batalhões e casernas, verdadeiramente a tinham, e permitiam que ela avançasse. Não era nem delirante, nem paralítica; e tendo seus vigorosos movimentos estimulados por aqueles que lhes deveriam impedir, a massa avançou e cresceu.
A um ano do 8 de janeiro, convém perguntar se não somos nós os paralíticos com ideias alucinatórias de grandeza. Como a massa golpista, gostamos de frases laudatórias, que nos elevam em relação à nossa própria fraqueza: “os golpistas foram derrotados”, “a democracia venceu”, “as instituições venceram e estão funcionando” e afins, como o mote que adorna a cerimônia de aniversário que o Governo Federal organizou para relembrar o 8 de janeiro: “democracia inabalada”. Não repetíamos esses bordões quando víamos a massa avançar sobre Brasília há um ano; não era nesse estado de tranquilidade – embora fosse em igual estado de paralisia – que assistíamos aos golpistas fecharem rodovias e ocuparem quartéis. O que nos assegura tanta confiança agora? Em que assentamos essas máximas que nos elevam tanto? Teríamos razões para de fato crer nessas frases que dizemos a nós mesmos, ou só as repetimos para prolongar nossa ilusória sensação de grandeza?
Como escrevi então, é certo que o 8 de janeiro foi derrotado pela burocracia estatal. Mas também é certo que ele só avançou graças à burocracia estatal, em particular às suas frações mais importantes, isto é, as armadas. A um ano do 8 de janeiro, nenhuma destas organizações foi sequer reformada. Mudou-se o comandante do Exército, é verdade – mas a missão confessa do novo comandante, escolhido por um vídeo que fez para a internet, é impedir reformas no Exército, e nesta incumbência o general Tomás Paiva vem sendo feliz. O ministro da Defesa, José Múcio, sente-se ainda hoje tão confiante na posição que ocupa – a de um parasita militar a se alimentar da fraqueza de seu hospedeiro, o governo, frente às Forças Armadas – que chama o 8 de janeiro de “piquenique” e, sobre ser considerado um preposto militar no governo, diz: “eu acho o máximo, eu gostaria que dissessem mais. Porque todas as vezes que dizem isso as Forças ficam satisfeitas. Veem em mim uma pessoa que trabalha por elas”. Dado que Múcio não foi demitido durante todo este ano, o governo parece concordar com esse grave desvio de função.
Se as Forças Armadas, elemento crucial não só do 8 de janeiro, mas de todo golpismo, não foram sequer reformadas, frases como “as instituições venceram” são a manifestação perfeita da ilusão de grandeza paralítica – só não é sintoma mais grave da doença do que dizer, sem que absolutamente nada tenha sido feito, que se está “construindo a possibilidade desse país viver todo século 21 sem ter golpe de Estado”, como declarou o presidente Lula.
O movimento golpista do 8 de janeiro mobilizou três temas em relação aos quais a pasmaceira institucional tem repulsa, mas que seguem caros ao presente e ao futuro político do país: mobilização de massas, violência e ideologia; cada qual alimentando o outro. Pôs em xeque as premissas do ingênuo republicanismo brasileiro, e relembrou a todos da proximidade entre guerra e política. Não, a democracia não está “inabalada” após o 8 de janeiro. E é incapaz de responder a este fato um governo que mantém um ministro da Defesa que se orgulha de ser visto como alguém que trabalha pelos militares; que mantém no comando do Exército um comandante que considerou a eleição do atual presidente “indesejada e infeliz”; que mantém as Forças Armadas intocadas após ter nas mãos a melhor oportunidade de reformá-las em três décadas. Os mais exuberantes atos de simbolismo não são suficientes nem para decrescer a massa, nem para responder à sua violência, nem para compor uma hegemonia “democrática” que a oponha: deveríamos ter aprendido com a massa golpista de quanto valem os símbolos.
Ao invés de repetir afirmações grandiloquentes, talvez devêssemos nos fazer algumas perguntas: quantos conseguiríamos reunir para ocupar prédios em defesa da democracia, para mantê-la “inabalada”, tal qual a massa golpista fez no 8 de janeiro para nela pôr fim? – a “defesa da democracia” convence alguém? –; Se houvesse entre a massa odiosa alguns armados, nos disporíamos a dar a resposta, ou teríamos de encontrar socorro naquelas mesmas Forças Armadas que permitiram à massa golpista crescer? – a esquerda brasileira é refém da burocracia estatal? –; Reafirmar publicamente estas nossas ideias de grandeza um ano após o 8 de janeiro está contribuindo para educar o povo brasileiro quanto ao problema do golpismo, para pôr-lhe em movimento, ou para desarmá-lo e paralisá-lo? – afinal, queremos convencer alguém das coisas que nós mesmos desprezamos?
Massas, violência e ideologia: assim como a anuência das forças em armas com os golpistas lhes permitiu crescer e deu-lhes a confiança de que iriam “passar por cima” e de que “o Brasil é nosso”, também as graves faltas do governo e das instituições, que veremos desfilar com pompa neste primeiro aniversário do 8 de janeiro, contribuem para que o Brasil seja alvo de novos golpes – ainda neste século.
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