25 anos após o furacão Mitch, a América Central ainda não aprendeu as lições

A América Central, com 43 milhões de habitantes, é uma das regiões mais vulneráveis

O bairro La Playa, no município de Acajutla, banhado pelo Oceano Pacífico, no oeste de El Salvador, mostra a destruição que vem sofrendo desde 2015, quando fortes tempestades afetaram as fundações de casas e empresas do setor alimentar. A América Central é uma região que, no seu conjunto, continua mal preparada para enfrentar os ataques climáticos, apesar de ser especialmente vulnerável a eles.  Imagen: Edgardo Ayala / IPS.

ACAJUTLA, El Salvador – Já se passaram 25 anos desde que o furacão Mitch deixou um rastro de morte e destruição na América Central, como fizeram outras tempestades tropicais, mas a região continua despreparada para enfrentar fenômenos climáticos dessa magnitude, que ciclicamente a atingem com força devastadora.

Especialistas em gestão de riscos na região, bem como moradores de comunidades costeiras, disseram à IPS que a América Central ainda não aprendeu a lição de se preparar melhor para o ataque de tempestades e furacões, um quarto de século depois da passagem do Mitch, um furacão de categoria 5, o mais mortal.

“Infelizmente, a situação não melhorou muito”, disse à IPS Marco Granado, secretário executivo da Concertação Regional para Gestão de Riscos, que reúne cinco organismos nacionais na Guatemala, Honduras, El Salvador e Guatemala, da Cidade da Guatemala e Nicarágua. “Deveríamos estar mais bem preparados agora”, acrescentou.

“As famílias vivem aqui porque a pobreza não nos permite ir viver para outro lado”: Marlene Canjura.

O furacão Mitch devastou a América Central em outubro de 1998. É considerado o segundo mais devastador do hemisfério e deixou 11 mil mortos.

A força destrutiva de Mitch derrubou mais de 1.000 pontes e destruiu mais de 1.000 quilómetros de estradas, entre outros danos a infra-estruturas públicas e privadas. As perdas milionárias representaram 13% do produto interno bruto (PIB) da América Central.

O custo da reconstrução foi estimado em 7 mil milhões de dólares pela Comissão Económica para a América Latina e as Caraíbas (CEPAL).

A vendedora de peixe Cristina Ramos, junto à foz do rio Sensunapán que quase anualmente inunda a comunidade de famílias de pescadores onde vive, La Coquera, no município de Acajutla, em El Salvador. A cidade litorânea é atingida pelas ondas do mar, quando o país é atingido por tempestades tropicais como a Pilar, no dia 30 de outubro. Imagem: Edgardo Ayala/IPS

Pobreza em La Coquera

“A passagem do Mitch me marcou, porque lembro que morávamos na beira da praia e pude ver que entre o lixo e os escombros havia um cadáver”, lembrou Marlene Canjura, líder da comunidade La Coquera, uma assentamento de pescadores do município de Acajutla, no oeste de El Salvador.

La Coquera, onde vivem 300 famílias, fica à beira da praia, no Oceano Pacífico, e próximo à foz do rio Sensunapán. E quando uma grande tempestade atinge a área, as águas do mar ou do rio, ou ambas, inundam a comunidade e as pessoas devem evacuar as suas casas.

“Nós, famílias, vivemos aqui porque a pobreza não nos permite ir viver para outro lado”, disse Canjura, 44 anos, que se dedica a fazer artesanato com as conchas de pequenos caracóis marinhos.

Outros entrevistados da cidade concordaram que a responsabilidade pela vulnerabilidade da região recai, em maior medida, sobre os governos e as elites económicas cujos interesses superam o interesse colectivo de desenvolver um modelo que respeite o ambiente, por exemplo.

“Não existem políticas governamentais que melhorem a situação, razão pela qual El Salvador é altamente vulnerável”, disse Canjura.

O casal Jorge Pérez e Marlene Canjura mostram a foz onde o rio Sensunapán e o Oceano Pacífico se encontram, que formam uma espécie de pinça quando as águas transbordam e inundam a comunidade salvadorenha de La Coquera, onde vivem e onde trabalham, ele como pescador e ela, como artesã. Imagem: Edgardo Ayala/IPS

Desde 29 de outubro, a costa do Pacífico da América Central permaneceu sob chuvas constantes devido à influência da tempestade tropical Pilar, que permaneceu fora de sua costa até 1º de novembro.

A presença da tempestade ativou redes governamentais e civis de emergência e resposta a desastres no istmo.

“Qualquer situação climática, por mais ligeira que seja, terá sempre impacto, desde que os governos no poder não favoreçam a população com políticas”, insistiu Canjura, sentada ao lado do marido, o pescador Jorge Pérez, 52 anos, que não pôde ir sair para trabalhar devido à situação climática.

“Há cerca de 12 dias que não podemos pescar, porque antes da emergência o mar já estava muito agitado por causa dos ventos”, disse Pérez à IPS.

El Salvador, a menor das sete nações centro-americanas, declarou alerta vermelho em todo o país, enquanto Pilar avançava ameaçadoramente em direção às suas costas.

A comunidade La Coquera, no oeste de El Salvador, foi levemente afetada pela tempestade tropical Pilar, que colocou toda a área em situação de emergência e causou chuvas persistentes ao longo de toda a costa do Pacífico da América Central entre 29 de outubro e 1º de outubro. impacto do que o esperado, graças ao desvio da trajetória projetada. Imagem: Edgardo Ayala/IPS

Ao fim, Pilar não atingiu com a força esperada, pois desviou-se para oeste e não atingiu a costa, mas foi suficiente para lembrar aos centro-americanos que a região continua basicamente tão vulnerável como era há 25 anos, quando o Mitch atingiu destrutivamente.

“Estamos assim, vulneráveis, por falta de vontade dos governos, não têm interesse em melhorar as condições de vida dos pobres”, sublinhou Cristina Ramos, outra líder comunitária de La Coquera.

Ramos dedica-se à venda de peixe fresco, mas sem actividade piscatória também não tem rendimentos.

“Como não há produto, não podemos trabalhar”, disse Ramos, 37 anos, mãe de uma menina de dois anos e de um menino de 10, demitida. Ela disse que, por enquanto, consegue superar a situação com as poucas poupanças que conseguiu manter, em consequência da venda.

Com a passagem de Pilar, em El Salvador, alguns rios transbordaram, algumas casas foram danificadas e três pessoas perderam a vida.

Em La Coquera, diversas casas construídas com coqueiros e sacos plásticos, na beira da praia, foram derrubadas pelas ondas do mar, que antes derrubou um pequeno muro de pneus e sacos de areia.

No bairro La Playa, no centro de Acajutla, a poucos metros do mar, as ondas continuaram a danificar a construção de casas e pequenos negócios do sector alimentar, afectados pelas tempestades de 2015.

Os prejuízos à agricultura da região ainda estão sendo contabilizados, mas já se espera impacto na semeadura final do feijão, que estava prestes a sair em novembro.

Aproximadamente metade das famílias de La Coquera tiveram que se refugiar em abrigos governamentais ou ir temporariamente para parentes que moram em áreas mais altas, como fizeram dezenas de famílias no resto do país.

Ramos decidiu não evacuar e ficar atento a qualquer situação de emergência que surgisse na comunidade.

Ali está instalado um sistema de alerta precoce, com alto-falantes montados em vários pontos do assentamento para anunciar qualquer risco iminente.

Os líderes comunitários receberam formação em prevenção de desastres do Comité Permanente de Gestão de Riscos salvadorenho e não-governamental.

Pessoal dessa organização foi a La Coquera, no dia 1º de novembro, para monitorar a situação de emergência causada por Pilar.

Tomasa Melga, morador do bairro La Playa, em Acajutla, oeste de El Salvador, mostra os danos ainda visíveis causados ??pelas intensas chuvas de 2015 e que as tempestades e furacões subsequentes têm prejudicado ainda mais. Imagem: Edgardo Ayala/IPS
Letra muerta

A América Central, com 43 milhões de habitantes, é uma das regiões mais vulneráveis do mundo a fenómenos climáticos extremos, segundo relatórios de especialistas em alterações climáticas, incluindo os do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC).

“Estamos na rota de furacões, tanto no Atlântico como no Pacífico, como foi o caso de Pilar”, disse à IPS a ativista Rosamaría Matamoros, do Conselho Nacional de Gestão de Riscos da Nicarágua, de Manágua.

Mas os desastres também são influenciados por más práticas humanas, como a desflorestação ou formas inadequadas de agricultura, como aconteceu com o deslizamento de terras numa encosta do vulcão Las Casitas, no departamento de Chinandega, no oeste da Nicarágua.

Cerca de 1.000 pessoas morreram lá em outubro de 1998, quando o Mitch atingiu aquele país.

“Essa combinação de viver em áreas de risco, aliada a práticas inadequadas, é geradora de risco”, destacou Matamoros. “O deslizamento ocorreu porque não havia cobertura vegetal suficiente, houve desmatamento”, destacou.

Os governos dos sete países da região conceberam políticas em princípio destinadas a prevenir e reduzir riscos, mas a realidade é que na prática essas regulamentações não se materializaram em acções, ou pelo menos não na sua parte essencial, por exemplo o respeito pela ambiente.

É o caso da Política Centro-Americana para a Gestão Integral do Risco de Desastres, aprovada em junho de 2010 pelos chefes de estado da América Central, numa cimeira na Cidade do Panamá.

Na sua atualização de 2017, esta norma propõe o estabelecimento de “uma região resiliente e em harmonia com o ambiente para o pleno desenvolvimento da vida, reduzindo a pobreza e as desigualdades, e avançando assim para a consecução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com uma visão holística. perspectiva integrada, integrativa e multidimensional.”

“Como documento está bom, mas na prática precisamos realmente nos preparar”, disse o guatemalteco Granado, para quem o desejo suscitado na referida política nada mais é do que um dos muitos compromissos que os dirigentes em exercício adotam quando se reúnem pessoalmente, oficialmente, mas que não são integralmente cumpridas.

Por sua vez, Magdalena Cortez, da Mesa Permanente Salvadorenha de Gestão de Riscos, destacou que para que esta política regional avance, os países devem investir recursos financeiros na ordenação de aspectos como o uso do solo, através de leis de ordenamento territorial, e assim antecipar os eventos climáticos.

Mas isso, disse à IPS, “ameaça os interesses económicos de grupos poderosos nos países e na região”.

“Temos feito um esforço de organização nas comunidades, de sensibilização sobre como conhecer os riscos, mas os Estados continuam a gerar cada vez mais vulnerabilidade”, destacou.

Enquanto isso, na tarde do dia 1º de novembro, as chuvas se dissipavam e o céu salvadorenho já mostrava alguns raios quentes de sol, o que deixou o pescador Jorge Pérez e a peixaria Cristina Ramos extremamente felizes, pois em breve poderiam retornar ao trabalho.

Edição original: EG

 

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