O verdadeiro monstro da primeira página dos jornais

É impressionante como um dos grandes filmes políticos italianos, produzido em 1972, pode muito bem explicar como funciona a mídia brasileira de hoje

 
Por: Léa Maria Aarão Reis

Há pouco menos de meio século o cineasta italiano Marco Bellochio já dava uma aula cinematográfica incisiva, no seu filme Sbatti il mostro in prima pagina, de 1972, sobre o conluio criminoso e corrosivo criado, em tempos de crise e de decisões democráticas formais (época de eleições, por exemplo) pelos principais poderes reais que afinal regem a vida cotidiana, a sobrevivência dos cidadãos e a política: os grandes grupos econômicos, locais – hoje, também os globalizados -, a magistratura e a mídia corporativa.

Bellochio é autor de outra produção de grande repercussão no mundo inteiro, na sua época, e foi exibido no Brasil com alarde, dez anos antes, em 62, intitulado Pugni in Tasca. É um dos cem filmes italianos escolhidos para serem preservados pela Cinemateca de Bolonha, da qual ele é o presidente, e que antecipa os grandes movimentos dos estudantes, em 68. Este Sbatti il  mostro  teria, em tradução livre, o título de …o monstro na primeira página. É um espécime exemplar e corajoso do vigoroso cinema político italiano da época, um cinema direto até hoje incomparável, e ao qual se pode assistir na internet.

A produção é estrelada pelo brilhante ator Gian Maria Volonté vivendo o editor-chefe carreirista e manipulador de um poderoso jornal de Milão. Um cão de guarda, chien de garde conforme a feliz expressão cunhada pelos franceses, a propósito dos jornalistas que se transformam em meros porta-vozes dos interesses dos patrões.

Ela é marcante na sua semelhança com o difícil momento que o Brasil vive hoje, iniciado com a vitória do Partido dos Trabalhadores, pela quarta vez reeleito, há um ano, e com a campanha deflagrada pelo segundo lugar, para enfraquecê-lo, a qualquer custo, pelo conjunto dos poderes reais regentes inconformados com a derrota nas urnas: poder econômico, policial autoritário, poder midiático e magistratura – a política a reboque.

Aprende-se no filme, com toda clareza, como se procede à manipulação escandalosa da informação nos desdobramentos de eventos locais. As famosas suítes jornalísticas produzidas, quando se deseja, para induzir leitores e eleitores a determinadas reações e conduzi-los a posições políticas convenientes e coniventes com os tais interesses antes obscuros, hoje cada vez mais escancarados.

O filme é didático, segura um ritmo empolgante, e mistura a narrativa ficcional com sequências de documentários filmados nas ruas da Itália, nos anos 70, nas campanhas apaixonadas da coligação das esquerdas contra grupos fascistas, liberais e monarquistas que procuravam chegar ao poder.

A história é esta:  Rizanti é o editor-chefe-cão-de-guarda, fascista falsamente elegante, irônico, sempre vestido num paletó jaquetão/símbolo do novo rico. Dirige o dia-a-dia do Il Giornale (nome de um jornal milanês criado anos depois da estreia do filme), e decide explorar, politicamente, por determinação do engenheiro Morelli, financista que lidera grupos industriais de extrema direita, um fait divers policial – o assassinato com conotações sexuais (um fato verídico; crime que na realidade existiu), de uma garota estudante, filha da alta burguesia, Milena Sutter, ocorrido na mesma época das manifestações políticas. A vítima escolhida é um dos jovens líderes das passeatas. Preso, ele acaba vítima de uma campanha para desqualificar as esquerdas na qual é apresentado, durante semanas seguidas, na primeira página do jornal de Rizanti, como o monstro estuprador da menina. A campanha tem seu efeito e o rapaz é condenado nessa primeira página pela opinião pública. Uma condenação moral do monstro militante que vai desacreditar a candidatura das forças populares.

Mas o jovem repórter Roveda, o encarregado de produzir as suítes do caso, a certa altura de suas investigações, avisa Bizanti que o verdadeiro assassino é o zelador da escola da garota. Nada a ver com o líder militante. O jornalista e o financista, no entanto, decidem continuar a farsa até, pelo menos, o resultado das eleições, que estão próximas. Decidem manter o segredo sobre o assunto e depois ver o que fazer com o ‘monstro’ oficial, detido.


Há diálogos primorosos em Sbatti il mostro. Rizanti dizendo alegremente, por exemplo, nas reuniões de pauta com os editores:  ”Os protagonistas do estado de direito, afinal,  são a justiça, a magistratura, a mídia, a polícia. Os trabalhadores estão fora deste jogo. ” Ou, irritado, para a sua mulher, leitora e telespectadora contumaz: ”Quando as pessoas vão entender a diferença entre aquilo que se pensa e aquilo que se diz ?” E com ironia cínica :” Milão é a capital moral do país.”

E a sua mais importante tirada, na discussão com o repórter que procura convencê-lo a parar com a farsa do ‘monstro de esquerda’. Do alto da onipotência devastadora (ela poderia ser colocada na boca de qualquer personagem jornalístico, vendido, atual): “Nós, jornalistas, não somos mais observadores; somos protagonistas; entenda que hoje a luta de classes é uma guerra. Entenda também que as pessoas leem o jornal como se ele fosse o evangelho…”

Tristes trópicos, melancólicos tempos para uma profissão e para um país em que um filme como este, de Bellochio, cai como um manto em nós. O seu recado é este: o verdadeiro monstro é Rizanti. Imperturbável monstro agindo nas capas de revistas, nas primeiras páginas e nas chamadas e escaladas, nos telejornais, e produzindo-as, diariamente, sob a máscara de ‘normalidade’. É urgente, assistir este filme. Público e estudantes de comunicação.
Fonte: Carta Maior

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