Militares são ‘reféns’ do governo Bolsonaro

Para o especialista em Forças Armadas João Roberto Martins Filho, generais achavam que poderiam tutelar presidente, mas é ele quem dá o tom. Anti-esquerdismo impulsionou parte das Forças Armadas a se juntar a Bolsonaro

“O apego que os militares têm a esse governo é muito forte e é evidente que o fracasso desse governo – e eles sabem disso – vai afetar a sua imagem. Se é que já não afetou”. Foto Marcos Corrêa/PR

A presença de 10 ministros militares na gestão de Jair Bolsonaro dá a ele uma importante base de sustentação em um cenário no qual a turbulência política é uma constante. Por outro lado, os generais, que pensavam que poderiam de alguma forma tutelar o presidente têm hoje, na prática, que seguir o tom adotado pelo comandante em chefe das Forças Armadas.

“O apego que os militares têm a esse governo é muito forte e é evidente que o fracasso desse governo – e eles sabem disso – vai afetar a sua imagem. Se é que já não afetou.” A análise é do professor de Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) João Roberto Martins Filho, especialista em Forças Armadas.

Parte do apoio dado a Bolsonaro se deve ao anti-esquerdismo hoje arraigado nos quartéis. “Isso por que é um governo deles, que falam o tempo todo no ‘outro lado’, segmento que somos nós, críticos de esquerda, e eles não estão a fim de gerar uma situação em que a centro-esquerda possa voltar ao poder.”

Autor dos livros A dinâmica militar das crises políticas na Ditadura (1964-1969) e O Palácio e a caserna, ele acredita que um regime abertamente autoritário como o iniciado com o golpe de 1964 é improvável no momento, mas mesmo assim a situação atual é preocupante. “O problema é que quem está dando a pauta é o Bolsonaro com seu círculo íntimo. Só que esse círculo íntimo já incorporou alguns generais.”

Como o senhor avalia hoje a relação dos militares e o governo Bolsonaro?

Nós já temos mais de 500 dias de governo Bolsonaro e quando escrevi meu primeiro artigo sobre esse governo e sua relação com militares, eram 200 dias. Eu poderia ter errado a previsão, mas acho que não errei. No dia 20 de julho do ano passado, já estava claro que quem mandava no governo era o Bolsonaro. Houve uma fase inicial, depois da intensa participação dos militares na campanha eleitoral, em que os militares tinham um projeto que parecia mais simples, que era, diante da evidente falta de preparo do presidente eleito, eles, com a experiência que tinham como generais de quatro estrelas – afinal de contas tratava-se de um capitão –, guiariam o presidente, o educariam na arte da política. Alguns eram amigos pessoais do presidente como o general (Luiz Eduardo) Ramos, o próprio general Santos Cruz.

O presidente, depois de alguma vacilação, primeiro demitiu um auxiliar civil, o (Gustavo) Bebianno, de forma cruel, e depois, dado que o núcleo do governo também é composto por um grupo próximo dos filhos do presidente e que tem vários cargos como, por exemplo, o assessor de relações internacionais dentro do Palácio do Planalto, e com influência do Olavo de Carvalho, daí para frente a coisa começou a ficar mais complicada. Isso porque, da mesma forma implacável que ele tratou o Bebianno, começou a entrar em conflito com um amigo pessoal, que era o homem que deveria mais do que ninguém tutelar, orientar o presidente, o general Santos Cruz, que comandou tropas em situação de guerra no Congo, além de ter atuado no Haiti. Ele o demite da mesma forma que demitiu o Bebianno. Este foi um momento chave, o Santos Cruz nunca perdoou, mas também nunca rompeu totalmente com o Bolsonaro, ele tem dado frequentes entrevistas e talvez seja o general com maior prestígio, até por ter saído do governo da forma como saiu.

A partir daí confirmei a ideia de que, primeiro, o presidente é incontrolável. Em segundo lugar, por influência dos filhos e de uma corte que existe ali, queriam dividir poder com os militares. Depois houve um período de meses em que os militares ficaram mais ou menos discretos, no final do ano Bolsonaro já deixava claro que iria conceder a reestruturação de carreira específica dos militares, ou seja, aumentar os soldos da cúpula, e também fez aquela famosa declaração, no final do ano passado, de que os militares seriam a última força contra o socialismo. Em seguida, no final de fevereiro, ele nomeia o general Braga Netto, então chefe do Estado-Maior do Exército, para chefiar a Casa Civil.

Ou seja, em um primeiro momento, eles (militares) acharam que iam tutelar; no segundo, levaram uma trombada do governo e mais ou menos recuaram, e no terceiro momento passam a ser uma força cada vez mais importante. O que mudou é terem aceitado que Bolsonaro tem mais ou menos autonomia em relação a eles e eu diria aqui, para terminar, que Bolsonaro faz a pauta, e eles vão atrás. Essa é minha opinião, tem analistas que dizem que se trata de uma espécie de fantoche dos militares, mas acredito que houve uma adaptação mútua.

E como os militares aceitaram essa situação, ainda mais levando-se em conta o fato de o presidente, apesar de ser comandante em chefe das Forças Armadas, ter chegado só ao posto de capitão? E o comprometimento com um governo como o de Bolsonaro, no futuro, não pode prejudicar a própria imagem das Forças Armadas?

Não deixa de ser um paradoxo. Ele, como presidente da República e como político por 27 anos, nem devia o tempo todo dizer que ele é militar. Mas foi eleito e formalmente é o presidente da República e comandante em chefe das Forças Armadas. Se tivesse topado ser tutelado pelos militares, pelos generais mais influentes, acho que não teria problema para eles. Mas dentro desse quadro que nós temos, cada vez mais, e em junho do ano passado já estava claro, os militares não pretendem se afastar desse governo, mesmo com essas condições. Por outro lado, caso se afastem, o governo provavelmente cai. É uma espécie de simbiose que existe entre os generais, de um lado, e Bolsonaro e sua turma, de outro. Um depende do outro.

O problema é que quem dá o tom, e isso fica evidente na reunião de 22 de abril, é Bolsonaro. Os militares, do meu ponto de vista, vão atrás. Por exemplo, o presidente conseguiu levar o ministro da Defesa de helicóptero e exibi-lo em um ato contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. O apego que os militares têm a esse governo é muito forte e é evidente que o fracasso desse governo – e eles sabem disso – vai afetar a sua imagem. Se é que já não afetou.

Esse apego no caso implicaria por exemplo uma eventual aventura autoritária, principalmente caso comece a correr o processo de impeachment ou prospere no TSE o processo de cassação da chapa de Bolsonaro?

Todos esses processos de possível afastamento do presidente estão muito condicionados pelo fato de que ele tem uma base de apoio ainda forte e muito propensa a usar a violência. Se estão fazendo isso hoje, na situação em que nós estamos, imagine se ele começar a sofrer uma ameaça concreta de impeachment.

O que me chama atenção, nos últimos dias, é que tivemos não apenas o Heleno, uma pessoa que teve que se adaptar ao grupo civil para sobreviver e não acontecer com ele o mesmo que ocorreu com o Santos Cruz, mas o general Ramos não só cobrou o ministro Celso de Mello por ter se referido à Alemanha nazista, quando na verdade o que ele fez foi se referir a um momento histórico em que o regime constitucional foi superado via eleições e acabou gerando o nazismo – e ainda acusou o ministro de falta de patriotismo. Ora, em que país do mundo um general se dispõe a ensinar um juiz do Supremo Tribunal Federal sobre o que deve fazer em termos constitucionais? Você acha razoável que os ministros do Supremo Tribunal Federal comecem a dar palpite sobre qual deve ser a educação no Exército, quais devem ser os postos de guerra do Brasil, como eles devem operar em uma situação de crise? Não, porque eles não entendem disso. Nós estamos nesse momento em que cada vez mais os militares estão comprometidos com o governo Bolsonaro.

Você tinha colocado a questão da possibilidade de uma intervenção militar. O ideal para os militares seria as coisas ficarem como estão. Eles nos bastidores, vazando para a imprensa, “concordo aqui, não concordo ali, vamos tentar moderar o presidente…”. Um regime aberto de golpe militar, no estilo de 64, parece ainda uma hipótese, no momento, não muito provável. O problema é que quem está dando a pauta é o Bolsonaro com seu círculo íntimo. Só que esse círculo íntimo já incorporou alguns generais. O general Ramos disse outro dia, sem ninguém perguntar, que ele é amigo de Bolsonaro há 40 anos, colocou a amizade com o presidente acima da posição dele de general da ativa – ele não é general de reserva, ele representa o Exército na medida em que está na ativa, é licenciado e se sair do governo volta a ter algum posto de comando.

Durante a ditadura tivemos basicamente governos de generais. Hoje, temos alguns generais próximos a Bolsonaro, mas também se fala que a base das Forças Armadas se identifica muito com ele, assim como os policiais militares. Onde está hoje seu principal ponto de apoio, seriam os generais, a base das Forças Armadas ou as policias militares?

Os generais, no momento, são sua base suficiente, porque não sinalizaram o afastamento. Mesmo os mais críticos como, por exemplo, o general (Sergio) Etchegoyen ou o general Santos Cruz, não se afastam dele. Isso porque é um governo deles, que falam o tempo todo no “outro lado”, segmento que somos nós, críticos de esquerda, e eles não estão a fim de gerar uma situação em que a centro-esquerda possa voltar ao poder.

Se esse primeiro bastião vacilar, se houver problemas com o primeiro bastião que são os generais, principalmente os do círculo do Palácio, aí Bolsonaro tem um apoio maior quanto mais se baixa na hierarquia do Exército e também na Marinha – não está claro pra mim isso na Força Aérea, Bolsonaro inclusive a ofendeu ao não comparecer na comemoração do aniversário do Santos Dumont, uma data muito importante, e foi mais ou menos naquela ocasião em que encontraram a cocaína no avião da FAB. Ele teria ficado chateado com a FAB e não foi, mas não esqueceram essa ofensa.

Além disso, se o Exército resolve baixar uma diretriz de afastamento do governo, nós temos as polícias militares. Se olharmos o que está acontecendo no momento, vamos perceber que os governadores praticamente não têm controle sobre as polícias militares e isso vai ficar claro se as manifestações dos antifas continuarem. Uma fotógrafa da Folha de S. Paulo disse no jornal que, nas coberturas que fez, nunca viu chover tanta bomba contra manifestantes como choveu naquele domingo (31) na manifestação das torcidas organizadas próxima ao Masp.

E ainda temos os grupos armados dos quais temos que falar com certo cuidado, aqueles que atuam no limite entre a lei e a ilegalidade. A situação é muito séria, pois temos as Forças Armadas com uma atitude dúbia, condescendente em relação ao presidente. São uma força organizada, hierárquica, altamente capacitada, com pessoas que sabem pensar estrategicamente, e se não deixam claro que a situação está virando um confronto entre governo Bolsonaro, arrastando os militares, contra os outros poderes da União, em especial o Poder Judiciário, o que falar então se pusermos nessa situação a Polícia Militar ou os grupos que atuam paralelamente, as milícias?

A situação é muito grave e acho que ninguém não está preocupado com o que pode acontecer. O bom é que está começando a surgir uma grande união contra essas atitudes do presidente. Esses manifestos, por mais limites que tenham, mostram que não estamos falando só de quem votou no (Fernando) Haddad, mas de um segmento da população muito maior que não suporta mais o governo. E, sabendo disso, cada vez mais ele (Bolsonaro) joga com esses grupos de força.

Em que ponto o senhor vê essa mudança de comportamento dos militares, deixando uma relativa discrição de lado e partindo para uma posição mais ostensiva? Mesmo antes da eleição de Bolsonaro tivemos o general Villas Bôas ameaçando o Supremo por conta de um habeas corpus pedido pelo ex-presidente Lula em 2018…

Acompanhei as manifestações do general Villas Bôas, confesso que a gente não percebeu a coisa no momento em que estava acontecendo, mesmo porque considerávamos o general democrata, e hoje por tudo que ele fala você sabe que é um dos apoiadores do presidente Bolsonaro. Mas acho que feita essa pesquisa, já com o atual governo em curso, a primeira manifestação do general Villas Bôas vem dois ou três meses depois do afastamento da presidente Dilma. Depois disso ele fala com frequência, até o ponto em que, quando transfere o comando, o presidente vai à posse em 11 de janeiro e o general diz que a vitória de Bolsonaro era muito bem-vinda, porque era o fim da época do politicamente correto e em lugares onde todos pensam igual não existe mais o pensamento livre. E Bolsonaro responde que, se não fosse o general, ele não estaria ali. O que é uma frase capciosa, porque ele complementa dizendo “nunca vou revelar o que nós conversamos”, mas já estava revelando que houve uma conversa.

Da mesma forma que Bolsonaro, quando nomeia Braga Netto, diz “meu terceiro andar está completamente militarizado”. Ora, se estivesse, ele não falaria, e se está falando é porque joga com esse argumento de que os militares estão com ele. Mas, ao mesmo tempo, sabe que quem manda é ele. Os militares estão um pouco reféns dessa situação em que Bolsonaro é o líder, tem o carisma, 30% de apoio e obteve uma quantidade de votos surpreendente.

Nesse retorno dos militares a uma atuação política mais incisiva, que papel tem o fato de o Ministério da Defesa, criado como mais uma etapa no processo de redemocratização do país, ter sido ocupado pela primeira vez desde sua criação por um militar, no governo Temer?

O poder civil tem que comandar os militares em uma democracia, mas como no Brasil nós tivemos uma crise tremenda e o poder civil praticamente derreteu como parte da campanha para retirar do poder a centro-esquerda, afastando o PT, temos as instituições totalmente debilitadas. E quem vai obedecer a um chefe que é completamente fraco? Não vamos esquecer que o governo Temer, que teve a tutela do general Etchegoyen, vivia em uma crise permanente. E é ele quem inaugura o absurdo que é um general comandando o Ministério da Defesa, o que é uma ofensa inclusive para os almirantes e brigadeiros.

Agora, nós chegamos a uma situação tal que para voltar a ter um mínimo de controle democrático vamos ter que colocar um ministro civil. E aí temos um problema que não é só relativo a Bolsonaro, mas a governos que estiveram no poder desde 2003. A quantidade de ministros da Defesa que tivermos durante os 14 anos do PT no poder é muito grande. Isso quer dizer que não houve uma continuidade de política. Os ministros entram e saem do Ministério da Defesa, o que mostra que essa, que seria uma das áreas chave da política de Estado, não estava sendo bem cuidada. Era como se fosse um estorvo, uma coisa que seria melhor que não existisse, mas já que existia melhor não ter conflitos com eles (militares).

É muito ministro para 14 anos. Os governos do PT nunca souberam definir com clareza uma política de relacionamento com os militares.

E na sua avaliação a instituição da Comissão Nacional da Verdade é o outro ponto em que esse anti-esquerdismo fica mais evidente na postura dos militares?

Você disse que eles eram discretos, mas alguns não eram. O Heleno, por exemplo, o general Maynard Santa Rosa, idem, o próprio Etchegoyen protestou contra o relatório que citou seu pai e o tio. Vários casos de generais na ativa que até prejudicaram a própria carreira.

Realmente o corte importante foi a Comissão Nacional da Verdade, mas se você for olhar os setores da reserva, há muito tempo havia insatisfação entre os militares. Isso acabou vazando para os setores da ativa. Até hoje a oposição à esquerda é muito grande e não sei como isso vai ser resolvido se a esquerda voltar a vencer as eleições. O que une os militares é a defesa do governo Bolsonaro como garantia de que ela não vai voltar, pois o fracasso do governo tende a colocar de novo a centro-esquerda no poder.

Ou seja, podemos ter de novo generais ameaçando instituições como foi feito contra o STF em algum caso que envolva o processo eleitoral, por exemplo?

Eles estão em uma situação muito desconfortável e para conseguir uma certa união, precisam de um inimigo. No momento, esse inimigo, por incrível que pareça, pois é o mais improvável, é o Supremo Tribunal Federal. Mas daqui a pouco podem ser os antifas, por exemplo. Podem pegar um episódio qualquer, podendo haver até provocadores, que possa ser explorado no meio militar.

O que precisava se romper é essa ideia de que só os militares são patriotas, algo que era muito forte no regime militar e perdurou por 21 anos. Milhões de patriotas têm tanto apego quanto eles, que não são donos do patriotismo.

 

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