Documentos do SNI revelam visão da ditadura sobre a Novembrada, que completou 37 anos

Da sacada do Palácio Cruz e Sousa, Figueiredo e Bornhausen observam protestos na praça 15 de Novembro. Agecom/UFSC/Divulgação/NDPor Matheus Vargas.

Por Matheus Vargas.

Dentro do palácio Cruz e Sousa, um ruído ganhou corpo ao ponto de se tornar enorme vaia. Escorado na sacada frontal do casarão, o presidente João Batista Figueiredo lançou um sinal enigmático aos manifestantes: um círculo formado pelos dedos indicador e polegar que se tocavam. Soou como provocação. A dignidade da mãe do presidente entrou em pauta no coro que vinha da praça 15 de Novembro. Figueiredo perdeu a calma. Foi em direção aos manifestantes para resolver a questão no braço.

A confusão com o presidente da República inseriu Florianópolis no almanaque da ditadura militar brasileira. No último dia 30, a Novembrada completou 37 anos. Disponibilizados recentemente para pesquisa, com incentivo da Lei de Acesso à Informação, documentos elaborados por órgãos inteligência revelam a visão da ditadura sobre o episódio.

Pesquisadores da Comissão da Memória e Verdade da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) foram os primeiros a utilizarem documentos com carimbo de confidencial sobre a Novembrada, armazenados no Arquivo Nacional. Foram encontrados registros dos dias anteriores à confusão com o presidente, quando a ditadura já monitorava possíveis manifestações. Relatórios de inteligência apontariam as falhas de organização da visita de Figueiredo. Outras centenas de páginas tratam dos desdobramentos: prisões, protestos e julgamento dos sete estudantes apontados como lideranças do confronto contra o presidente.

Recorte de documento do SNI sobre a Novembrada. – Arquivo Nacional/Reprodução/ND
Recorte de documento do SNI sobre a Novembrada. – Arquivo Nacional/Reprodução/ND

Para alguns protagonistas do episódio, a Novembrada ainda gera desconforto. “O que tinha de ser dito sobre o assunto está escrito em minha biografia. Não tenho menor interesse em falar sobre”, afirmou o ex-governador Jorge Bornhausen, mais de três décadas após a confusão.

Ditadura vigiava “subversivos”

Nos dias anteriores à confusão, circulou entre agências do SNI (Serviço Nacional de Informações) o alerta de que o presidente Figueiredo seria recebido com protestos na capital catarinense. Em telex de 28 de novembro, o Serviço informou: “Estaria sendo articulada manifestação frente ao palácio do governo com mais ou menos dez casais/ homens se apresentarão com bolsos para fora e as mulheres com panelas vazias/ (ilegível) faixas, em protesto elevação custo vida”.

Atual reitor da UFSC, Luis Carlos Cancellier era estudante de direito à época. Ele atuava dentro do movimento estudantil como membro do PCB (Partido Comunista Brasileiro): entre a clandestinidade e a legalidade, infiltrado na juventude do MDB (Movimento Democrático Brasileiro). “Era madrugada quando terminamos os panfletos e cartazes”, recordou o reitor sobre a maratona para organizar a Novembrada. Cancellier não acordou a tempo de flagrar a confusão.

Telex enviado entre agências do SNI revela agente da ditadura em reunião do DCE – Arquivo Nacional/Reprodução/ND
Telex enviado entre agências do SNI revela agente da ditadura em reunião do DCE – Arquivo Nacional/Reprodução/ND

Para o reitor, era latente a sensação de ser vigiado em reuniões do movimento estudantil. Ainda assim, ele e a maioria dos estudantes da época desconheciam que dentro da própria universidade havia espécie filial do SNI. Conhecida pela sigla ASI/UFSC (Assessoria de Segurança e Informações), o órgão alimentaria as fichas políticas daqueles considerados subversivos para a ditadura.

Informes minimizaram atos e apontaram falhas de segurança

O alcance da rede de informações da ditadura em Santa Catarina pode ser mensurado por documento do SNI com data de 1978, que revela a estrutura de vigilância no estado. Em grandes repartições públicas, como Eletrosul, Telesc e Celesc, havia o próprio setor de investigação. Em alguns casos, informes com “comunistas” e “subversivos” como alvos deixariam de ser produzidos apenas no início da década de 1990, com a extinção do SNI.

Dias após a Novembrada, a agência de Curitiba do SNI enviou para a central um relatório sobre a visita de Figueiredo à Florianópolis. O documento de 27 páginas relata o episódio e faz análises sobre falhas da equipe de segurança da recepção ao presidente. Conforme os agentes, a situação saiu do controle quando o presidente estaria no Ponto Chic:

– Nesse momento (…) começam os empurrões, e o deslocamento do presidente até o carro e a partida do comboio foi difícil. (…) Com a confusão, algumas pessoas, em particular senhoras, caíram e houve escoriações leves de joelhos e cotovelos – registrou o SNI.

Os agentes minimizaram os atos dos estudantes. Conforme o documento, haveria mais de dez mil pessoas na praça, sendo que “os agitadores, inclusive os colegiais de 10 a 12 anos, não chegavam a 40”. O informe também listou possíveis motivos para a manifestação popular e criticou falhas na segurança do presidente. Para os agentes, o correto seria realizar uma “operação arrastão” nos dias anteriores, prendendo os possíveis líderes das manifestações que estava prevista. Além disso, consideraram que o cenário de crise e insatisfação popular teria motivado protestos:

Policiais contém manifestantes que, conforme o SNI, “não chegavam a 40” – Agecom/UFSC/Divulgação/ND

Estudantes absolvidos após protestos e processo frágil

Entre a multidão que participou do protesto, sete estudantes da UFSC foram apontados como lideranças: Adolfo Luiz Dias, Lígia Giovanella, Amilton Alexandre (Mosquito), Geraldo Barbosa, Marize Lippel, Newton Vasconcelos e Rosângela Koerich de Souza. Enquadrados na Lei de Segurança Nacional, eles seriam absolvidos apenas em 1981, com passagens pela prisão e diversos depoimentos até o julgamento.

A central do SNI elaborou análise sobre o processo, com críticas ao inquérito policial “repleto de falhas”, e à denúncia apresentada pelo procurador Bertino Ramos, “sem que houvesse provas suficientes para condenação”. O mesmo procurador entrou no caminho de presos políticos catarinenses anos antes, ao pedir a condenação de 19 envolvidos na Operação Barriga Verde (1975), episódio mais violento da história da ditadura no Estado.

Autoridades dentro do Ponto Chic e multidão para o lado de fora – Casa da Memória de Florianópolis/Divulgação/ND
Autoridades dentro do Ponto Chic e multidão para o lado de fora – Casa da Memória de Florianópolis/Divulgação/ND

Anos mais tarde, ao final do julgamento sobre a Novembrada, o procurador Ramos protestaria. “Dizendo-se inconformado com a sentença absolutória recorreu ao Superior Tribunal Militar (STM)”, registrou documento do SNI com críticas ao inquérito e à denúncia. Para o serviço de informações, a insistência do procurador traria prejuízos para a própria ditadura. “Uma denúncia como essa, somada à apelação, para enquadrar estudantes na LSN sem que haja provas suficientes, fortalece a campanha contra a referida lei”, destacou informe do SNI.

Placa a Floriano Peixoto seria a “motivação”

Entre a Novembrada e a absolvição, diversos protestos ocorreram em Florianópolis e restante do país a favor dos estudantes. Semanas antes do júri, um telex enviado da agência de Curitiba para a central do SNI detalhou a intervenção da polícia – batizada Operação Arco Íris – para impedir uma grande manifestação em frente à Catedral. Na confusão, tiros foram disparados e turistas argentinos ficaram feridos. Segundo a mensagem, 29 foram detidos e liberados na mesma noite após interrogatório.

Para o julgamento da Novembrada, um improvável personagem foi chamado como testemunha de defesa dos estudantes. Em seu próprio automóvel Corcel, que quebrou o para-brisa no caminho, Esperidião Amin seguiu para a Curitiba onde defenderia que o protesto teria motivações históricas: a placa da discórdia em homenagem ao ex-presidente Floriano Peixoto. Durante batalhas para confirmar a república pretendida por Peixoto, centenas foram fuzilados em fortalezas de Florianópolis, quando ainda se chamava Nossa Senhora do Desterro.

Após a Novembrada, o presidente Figueiredo voltaria a Santa Catarina em outras três ocasiões antes de encerrar seu mandato, em visitas sem grandes cerimônias de bajulação ou protestos.

 

Conclusão do Serviço Nacional de Informação

  1. a) as manifestações contrárias ao Presidente da República, não foram espontâneas da população presente como quiseram fazer crer os estudantes em nota divulgada e alguns jornais.
  2. b) A falta de ações preventivas ou repressivas por parte dos órgãos de segurança permitiu que as manifestações se desencadeassem livremente.
  3. c) A população presente, ainda que aplaudisse as palavras do Presidente, permaneceu indiferente às manifestações de hostilidade promovida pelos estudantes, na expectativa de que a polícia tomasse essa atitude.
  4. d) Houve insuficiente policiamento por parte da Polícia Militar/SC, porquanto seus efetivos, além de pequenos, tiveram parte empenhada em Honras Militares. A data escolhida para a visita do Presidente à Santa Catarina, em face dos últimos eventos como: Aumento do preço dos combustíveis, Energia Elétrica, Campanha para retirada da placa do Marechal FLORIANO, impossibilidade da concretização da Sidersul, declarações do Ministro JAIR SOARES (nomes destacados no documento) sobre aposentadoria aos 65 anos, não foi oportuna.
  1. f) A presença de elementos, registrando antecedentes (…) entre os agitadores, caracteriza a origem do movimento contestatório.

 

(Samba da Conciliação, composto por Luiz Henrique Rosa) 

Presidente João

O povo do Brasil nesta canção

Vem lhe pedir humildemente

Um minuto de atenção.

O coração brasileiro não se cansa

De ter sempre uma esperança

Para a vida melhorar.

Pode contar com a gente Presidente

A decisão está na sua mão.

Santa Catarina saúda João

O presidente da conciliação

Fonte: ND.

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