Brasil pode assumir prejuízo de R$ 1 trilhão comprando “papéis podres” de bancos

Há indícios de que banqueiros tenham influenciado mudança irregular na Constituição, apesar do apelo de especialistas

O Banco Central recebeu uma carta branca do Congresso, válida enquanto durar a pandemia, para comprar títulos privados, inclusive os podres, com dinheiro público – Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Por Elisangela Colodeti.

É muito comum encontrar reportagens que tratam de assaltos a bancos. Mas do contrário quase não se fala: dos possíveis assaltos dos bancos à população.

“Papéis podres” são documentos de operações financeiras privadas – em sua maioria empréstimos, financiamentos ou aplicações –, que podem ter sido lucrativos no passado, mas agora dão prejuízo, pelo alto índice de inadimplência, ou dificuldade de venda. Comprar um “papel podre” seria como comprar uma dívida sabendo que o devedor não terá condições de pagá-la.

Num processo que gerou controvérsia entre Câmara e Senado, o Banco Central do Brasil (BC) ganhou carta branca para usar dinheiro público e comprar esse tipo de papéis de instituições financeiras, em plena pandemia.

Aprovada, a Emenda Constitucional 106, que tramitou como a PEC 10, libera o BC, responsável por regular e supervisionar todo o sistema financeiro nacional, para operar num mercado de alto risco conhecido como “mercado secundário de balcão”. Não há limite para esse gasto do BC, contrariando o discurso de responsabilidade fiscal que justifica retirada de recursos de áreas como saúde e educação.

Na prática, todos os brasileiros vão pagar a conta do prejuízo dos banqueiros com seus “papéis podres”. “Você classe média, pobre, passando dificuldade, sem emprego, com salário reduzido, é um dos donos do dinheiro público. Você vai pegar esse dinheiro e vai comprar um título podre do banco pelo preço de antes da crise, e vai comprar de um bilionário. Ele vai jogar o prejuízo dele para você”, afirma o ex-banqueiro Eduardo Moreira, sobre a manobra por trás da aprovação da PEC 10.

Moreira, que foi sócio-fundador banco Pactual, explica que, diferente do mercado organizado de ações, onde as transações ocorrem na Bovespa ou em outra bolsa de valores, o mercado de títulos de dívida privada tem pouca transparência.

Imagina o que vão fazer com o Banco Central.

“É o que a gente chama de mercado de balcão. Ele acontece no telefone, com as pessoas ligando umas para as outras e negociando títulos entre elas”, revela.

Ainda segundo o ex-banqueiro, em períodos de estabilidade econômica, os títulos privados são negociados com variação de preço baixíssima, de 0,12 a 0,25%. Mas, em momentos de crise, por outro lado, a oscilação pode ser muito maior.

“Se eu, no telefone com pessoas que estavam ali, entendidas do mercado, querendo buscar a melhor oferta, num momento de crise cheguei a negociar papéis na mesma linha por uma diferença de quase 20%, imagina o que vão fazer com o Banco Central”, explica.

Em entrevista ao Valor Econômico, o ex-presidente do BC, Gustavo Franco, sugere que a situação é anormal. Ele afirmou que “o Banco Central não tem nenhum traquejo para fazer operações com o setor privado” e esse não é seu trabalho.

“Não tenho nenhuma fé que o Banco Central vai acertar fazer compra de crédito privado, ou que entende a curva e essas coisas. Porque isso não é coisa de Banco Central”, argumentou Franco.

“Maior assalto da história”

A Emenda que deu essa chance aos bancos foi promulgada com o argumento de que era preciso aumentar o fluxo de dinheiro e evitar uma possível crise do sistema financeiro no período da pandemia.

Faltou dizer que os cinco maiores bancos brasileiros têm em mãos recursos equivalentes a toda a economia do país, com ativos somando quase R$ 7,4 trilhões e superando o PIB nacional, que em 2019 foi de R$ 7,3 trilhões. No primeiro semestre do ano, o lucro líquido consolidado desses banqueiros atingiu R$ 13,7 bilhões.

Durante a tramitação da proposta no Congresso, o atual presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, anunciou que, caso fosse aprovada, os gastos chegariam a R$ 972,9 bilhões.

Coincidência ou não, um levantamento publicado em novembro de 2019, apontou que o tamanho da “carteira de créditos podres” dos bancos é estimado em R$915 bilhões, sem correção da inflação, se considerados os débitos acumulados nos últimos 15 anos.

Para comparação, estima-se que com o auxílio emergencial pago a quase 8o mil brasileiros, nos meses de abril, maio e junho, por exemplo, o governo federal tenha gasto R$ 154,4 bilhões.

Segundo a associação Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), formada por dezenas de associações, como a dos Juízes Federais e Procuradores da Fazenda Nacional, os gastos podem ultrapassar vários trilhões de reais, já que não há limite de valor para as operações.

“Esse pode ser considerado o maior assalto aos cofres públicos da história recente do país”, afirma a auditora fiscal e coordenadora nacional da ACD, Maria Lucia Fattorelli .

Influência dos bancos na decisão política

O Senado tentou diminuir o risco de compra de “papéis podres” e limitou os títulos privados passíveis de aquisição a seis tipos, estabelecendo essa condição para as transações.

Mas quando a PEC 10 voltou à Câmara, esse trecho que poderia frustrar o plano dos bancos foi retirado de forma considerada irregular. Como o texto foi alterado, precisaria voltar ao Senado para nova avaliação e votação. Mas isso não ocorreu.

Também foi cortado o artigo 4, que condicionava os gastos gerais com a pandemia ao compromisso com a manutenção de empregos.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, justificou a manobra dizendo que as alterações do Senado inviabilizaram as operações do Banco Central.

“Se isso for autorizado, teremos obrigação de vincular esse capital de giro aos empregos. Mas, no mercado secundário, não temos como garantir que a empresa emissora mantenha os empregos”.

Veja aqui um quadro com as diferenças entre os textos aprovados pela Câmera e pelo Senado.

A alteração gerou uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, a ADI 6417, ajuizada pelo partido Cidadania. Pouco tempo depois, a Confederação Nacional das Instituições Financeiras encaminhou ao ministro do STF Luiz Fux, primeiro relator da ação, uma justificativa, dizendo que “as pequenas supressões do texto em nada alteraram a atuação do Banco Central do Brasil”. Fux fez um pedido de esclarecimentos ao Senado, que informou que as mudanças são, sim, relevantes.

Segundo o senador do Cidadania/SE, Alessandro Vieira, um dos partidários da ADI, a “bancada da margem de lucro dos bancos” é a maior do Congresso e “essa interferência deixa clara a sua atuação”.

A maioria do Congresso ficou surda a esses alertas, e aprovou a PEC 10.

Para a auditora Maria Lucia Fattorelli, não faltou informação aos parlamentares. “Preparamos cinco notas técnicas, vários artigos e vídeos alertando para o risco da compra de papéis podres sem limite, o que só favorece o mercado financeiro, mas a maioria do Congresso ficou surda a esses alertas, e aprovou a PEC 10”, sublinha.

Com a retirada irregular dos limites impostos pelo Senado, a única restrição que restou ao Banco Central é a de que os títulos tenham uma classificação equivalente a, no mínimo, BB-, que é considerada de alto risco.

Essa qualificação precisa ser dada por pelo menos uma das três maiores agências internacionais de classificação o que, segundo Eduardo Moreira, chega a custar cerca de R$300 mil reais.

A Emenda que dá o direito de o BC comprar “títulos podres” no “mercado de balcão” tem ainda outra contradição. O texto garante “preferência à aquisição de títulos emitidos por microempresas e por pequenas e médias empresas”, mas, na prática, elas não seriam capazes de emitir esses títulos.

“Uma microempresa tem faturamento de até 360 mil reais por ano. Um rating custa 50 mil dólares. Que empresa vai emitir uma dívida e gastar quase 300 mil reais para ganhar a nota?”, questiona Moreira.

A análise se torna mais complexa, de acordo com Fattorelli, quando os bancos agrupam vários títulos para venda em uma única cesta. Isso, na prática, torna muito difícil avaliar de forma precisa o risco de compra desses títulos.

“Elas podem conter inúmeros e diferentes ativos financeiros, inclusive títulos sem valor comercial algum, de naturezas diversas, riscos diversos e preços de referência diversos, escondendo a verdadeira identidade e qualidade dos títulos efetivamente negociados”, explica a auditora.

“Em resumo, essa cesta é um pacote, onde pode-se colocar qualquer coisa com um rótulo bonito. Como a agência vai classificar o risco de uma cesta contendo títulos variados?”, completa.

Proteção para os operadores do Banco Central

Ao mesmo tempo em que tudo isso acontecia no parlamento, começou a tramitar no Congresso uma medida provisória que levantou suspeitas entre senadores.

A MP 930, tentava livrar os operadores do Banco Central de serem responsabilizados por “atos praticados no exercício de suas atribuições”. Os senadores questionaram a razão para os operadores receberem tal imunidade e a medida acabou sendo barrada.

Contudo, pouco tempo depois da votação da PEC 10, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) insistiu no assunto, a pedido de sua equipe econômica (BC e Ministério da Fazenda), e editou uma nova medida. A MP 966 tornou os agentes públicos imunes à lei de improbidade administrativa, durante a pandemia.

Várias emendas foram protocoladas por senadores e deputados, pedindo a sua anulação urgente por inconstitucionalidade, mas a medida está em vigor desde maio.

O exemplo dos Estados Unidos

Economistas defenderam a importância da concessão de maior liberdade ao Banco Central neste momento de crise, a exemplo do que fez o governo estadunidense.

Estados Unidos e Brasil, contudo, possuem diferenças consideráveis, inclusive se compararmos as medidas tomadas lá, com as que estão entrando em vigor aqui.

O BC não botou nenhuma regra eficiente.

Segundo Fattorelli, nos EUA o programa para a compra de ativos privados (Facility) envolve o mercado secundário e o primário, e terá limites.

“Os ativos privados terão que ser emitidos por empresas nacionais, há menos de cinco anos, e o Tesouro norte-americano irá investir inicialmente valores limitados. Ele irá emprestar esses recursos para uma empresa, um veículo de propósito específico para efetuar as compras, não o banco central”.

Eduardo Moreira concorda que o Banco Central deva atuar no mercado para evitar um crash que leve a uma crise sistêmica. “Mas, quando você faz isso e sua meta é apoiar o sistema, você atua colocando regras no sistema, e o BC não botou nenhuma regra eficiente”.

Bloqueio das compras de papéis podres

No dia 23 de junho, o Banco Central publicou a circular Nº 4.028, regulamentando as operações.

Nela, o Banco poderia ter especificado os títulos passíveis de compra, mas não o fez, mantendo aberta a possibilidade de aquisição inclusive de ativos privados provenientes do exterior.

A Emenda deixou brechas e não impede que os lucros excedentes, resultantes das vendas de “títulos podres”, sejam apropriados pelos próprios donos das instituições financeiras.

Estava nas mãos do ministro Luiz Fux, ex-relator da ADI 6417, conceder ou não liminar que bloqueasse a possibilidade de compra de títulos privados podres pelo BC. Mas, na quinta-feira, 10 de setembro, Fux tomou posse como novo presidente do STF e o processo será redistribuído.

Segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, até a posse, Fux não havia respondido a uma carta enviada a ele no dia 20 de julho, solicitando a realização de audiência pública sobre o assunto, por videoconferência.

“Essa audiência possibilitaria a abertura do necessário debate sobre o alcance das operações autorizadas pelo referido dispositivo e suas consequências para as contas públicas atuais e futuras”, conclui Fattorelli.

Brasil de Fato entrou em contato, por telefone, com a Confederação Nacional das Instituições Financeiras, mas não fomos atendidos. Até o fechamento desta edição, o gabinete do presidente do STF, Luiz Fux, não havia respondido nossa solicitação de resposta. O Banco Central também não se pronunciou sobre o assunto.

Edição: Rodrigo Chagas.

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