Bolsonaro, Moro e cia: há método na loucura que tomou conta do Brasil?

Foto: Francesco Ungaro/Pexels.

Por José Sócrates.

É possível identificar o inimigo, a doutrina e o movimento. Já vi tudo isso antes, mas com melhores atores.

Ponhamos em suspenso, ainda que por um instante, as revelações sobre o comportamento do ministro da Justiça enquanto juiz – afinal, não se dispara sobre uma ambulância. O momento em que alguém luta ainda pela sobrevivência política é tão confrangedor que instintivamente nos suscita um compassivo silêncio. Silêncio ainda diante da morte de João Gilberto, que a minha geração admirava profundamente e sobre a qual o presidente do Brasil limitou-se a dizer que “era uma pessoa conhecida”. Silêncio, de novo. A delicadeza parece ter desaparecido do Brasil e a política entrega-se a uma brutalidade diária que assusta e fere, como me feriu este comentário sobre João Gilberto. Vejo para aí espalhada a pergunta: há método nesta loucura?

Primeiro, o inimigo. A violência política dispensa o adversário e constrói o inimigo, é ele quem dá identidade ao grupo e sentido à ação. Não precisa de governação esclarecida ou de se ocupar de temas áridos como a economia, o emprego, ou os temas do desenvolvimento. Não exige medidas nem programa, toda a política se resume ao combate e à agressão. A história universal está cheia desses inimigos construídos politicamente. Na Europa, já foi o herético, já foi o judeu, já foi o estrangeiro. Agora vira-se para o migrante. 

No Brasil, o inimigo já foi o comunista, já foi o negro, já foi o pobre, já foi o homossexual. Agora são todos eles, tudo o que é diferente, tudo o que é marxista, tudo o que é homossexual, tudo o que é pobre, ou então tudo o que é amigo dos pobres, dos comunistas e dos homossexuais. E contra o inimigo berra-se continuamente, de modo a impedir qualquer espaço de quietude de onde possa despontar qualquer coisa de humano que acalme a besta interior. Quem não sabe governar encontra sempre esse refúgio, criar um inimigo e lutar contra ele.

Depois, a doutrina. É preciso uma doutrina. Não para construir nada, pois vieram para desconstruir o que foi feito. O que é necessário é uma doutrina de televisão, semelhante à sugerida pelo apresentador Faustão, keep it short simple and stupid. Uma doutrina básica que não precisa ser a favor de nada, mas contra muita coisa: contra o politicamente correto, contra o kit gay, contra o marxismo cultural. No fundo, contra tudo o que as progressivas políticas de identidade, de alargamento de oportunidades e de novos direitos trouxeram ao mundo moderno (nem as crianças devem escapar, com o trabalho infantil). Bem vistas as coisas, quando escolheram a universidade como primeiro terreno de luta, acertaram em cheio: nada ofende mais a vulgaridade do que o intelectual, nada mais provocante para a estupidez do que o conhecimento.

Finalmente, o movimento. Nada disto pode existir sem mobilizar, sem envolver, sem fazer odiar. É preciso criar um movimento – o movimento. Não para impor uma ordem jurídica ou fazer perdurarem instituições caducas que já nada valem (o Supremo, o Congresso, quem se baterá por eles?). Afinal, não vieram para sustentar o Estado, mas para realizar uma causa, “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. A polícia digital deve ajudar não apenas a regulamentar ou eliminar as liberdades civis, mas a verificar a cada instante se a massa está mobilizada e se as suas capacidades de ação estão devidamente concentradas nos imperativos ideológicos.

A lei é desprezível, tal como já o era para os velhos stalinistas que denunciavam o apego à lei como um tique burguês e decadente. Não precisamos dela. Também não precisamos da velha política, ocupada com discussões estéreis e com a procura de medidas que convenham a todos. Nada de compromissos. O movimento procura uma nova política que só pode nascer do confronto, do conflito e da fuga em frente. Diante de cada desafio, de cada obstáculo, o movimento  aproveita a oportunidade para testar a sua energia, a sua força, a sua realização. O que deve ser cuidadosamente policiado nas redes eletrônicas é a participação, o engajamento de cada um na causa coletiva, sempre à procura de uma fraqueza, de uma vacilação, de uma qualquer heterodoxia que possa pôr em causa a unidade e o dogma. Tudo o que atrapalhar deve ser esmagado sem piedade.

Inimigo, doutrina (simples), movimento. Será isto? Será este o método nesta loucura? Se  assim for, tenho a dizer que já antes vi tudo isto descrito, mas com melhores atores. Oh, sim, melhores atores.

 

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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