A dualidade drag: Personas de uma vida libertária. Por Rafael Chiamenti Pedroso.

Por Rafael Chiamenti Pedroso.

Drag é arte. Mas, um conselho para quem quer ser drag-queen?

DESISTA.

“Se você quer ser uma drag-queen e está começando, desista. Volte para casa, esqueça isso. Tire isso da sua cabeça, não é para você. Faça algo de verdade, um curso, um técnico, uma faculdade. Pare de brincar. Não, não faça isso de passar maquiagem na cara, de colocar essa roupa. Desista.

Mas, se você chegar em casa, e aquilo te deixar doente, te impedir que respire, te fazer passar mal. A ideia de não estar no palco, não se maquiar, não fotografar, não performar. Se tudo que você tem guardado dentro de você quer se libertar. Aí você volta. Porque aí você quer ser drag-queen.

Se você adoecer, e isso quase lhe causar a morte, e se a ideia de não ser drag te deixar mal, aí sim. Você quer ser drag queen.

Não é moda, não é passageiro.

Isso fala diretamente com você.”

Parafraseando a dama do teatro brasileiro Fernanda Montenegro, Bee Érre é sucinta e direta no conselho para quem quer iniciar com drag. Mas o que se entende por drag? Que cultura é essa? Quem pode fazer? O que me impede de ser uma drag queen?

As respostas não são tão simples. Porém, três drags e uma pesquisadora nos ajudam a respondê-las.

Bee Érre na 4º Parada de Luta LGBTQI+ do Oeste Catinense, 2019.

Para Bee Érre ser drag começou como um hobbie que, aos poucos, virou uma profissão. Em tese, fazer drag, segundo ela, é uma maneira de um ganha-pão.

“Em uma comunidade que vive exclusa, quando você descobre que tem um talento, você tenta profissionalizar esse talento.”

Fora dos palcos Bee Érre é Jade Brum, 22 anos. Mas as duas figuras não são dissociadas. É como se fossem duas pessoas, irmãs, mas dividindo o mesmo corpo simultaneamente.

“Fui olhar para aquela menina que eu carreguei nos braços, e muitas vezes ela me carregou. Deu muitas forças, me mostrou que eu era capaz”, conta Jade.

Carioca da gema, Jade decidiu se revelar em 2018. A data vem à memória dela com facilidade: 17 de março. Com 1,8 m de altura, decidiu subir num salto 12, colocar um maiozão azul com um babado de calda de três metros e atravessar noite adentro as ruas de Chapecó, no interior de Santa Catarina. A definição do momento foi coragem, não de medo.

No início da carreira, Bee Érre foi “abrigada” em uma house, como é descrita a casa da drag-mãe responsável por adotar as iniciantes e auxiliar na montagem. Na época, Jade ganhou uma maleta de maquiagem antiga, para dar sorte, de Karla Muniz, sua drag-mãe.

“Eu quero tirar do caixão a drag brasileira. Eu acho que o pessoal esqueceu um pouco dessa drag, e eu quero mostrar que ela tá muito viva, não só em mim, mas em várias pessoas.” -Bee Érre

Passado três anos do seu processo de ter se tornado drag queen, Jade sonha em fazer um show no Maracanã lotado, com ingressos de preferência grátis. Nele, quer trazer referências evangélicas, dar, espaço para outras drags, para os pretos, as trans. “Eu quero tirar do caixão a drag brasileira. Eu acho que o pessoal esqueceu um pouco dessa drag, e eu quero mostrar que ela tá muito viva, não só em mim, mas em várias pessoas.”

“Não apareça vestido de mulher”, disse pai de drag

Em Nova York mora a carioca Pietra Parker, interpretada por Douglas Gama, a qual denomina-se Doug, 31 anos. Há mais de dez anos, ele foi para os Estados Unidos fazer um intercâmbio de três meses para praticar seu idioma inglês, e nunca mais voltou. Foi conhecendo pessoas, estendendo o visto inúmeras vezes até perceber que sua vida era, de fato, ali. E decidiu ficar.

A drag participa de eventos, shows e festas em Nova York, e leva um pouco da cultura brasileira aos palcos americanos, destoando-se do público e do meio queer da cena novaiorquina.

A personagem é inspirada em uma modelo e na icônica Sarah Jessica Parker, da série Sex And The City. É uma drag de classe e elegante, mas sexy. Passeia entre sensualidade e sexualidade, e um dos pontos é seduzir. “Não ser de seduzir a ponto da pessoa ficar excitada, mas sim de trazer ela para o meu mundo e ficar prestando atenção em mim, de não tirar os olhos do que eu estou fazendo.”

A performance da sua drag é marcada pela expressividade, em ter conexão com o público. Pietra sempre procura colocar músicas que expressem sua persona e conectem com o sentimento de quem assiste.

Pietra Parker, NY Botanical Garden 2019

Quem a vê descaracterizada, mal a reconhece. Sem a maquiagem e a roupa luxuosa é apenas Doug, definido por ele próprio como “tímido e inseguro”. Já Pietra é o oposto, como se o complementasse: forte, poderosa e confiante.

Produtor de eventos, ele teve que largar os bastidores para se dedicar por inteiro a sua drag. “Foi algo que não foi nem doloroso, foi tipo: não quero mais, acabou, não consigo mais focar nisso e nem em qualquer outro. E assim cortei.”

Porém nem sempre o fazer drag compensa. Pietra relata que geralmente o que se gasta não se paga. “Fazer drag tem que ser por amor, porque quem entrar nesse meio pensando em ser rica, desiste. Primeiro de tudo, é ter amor pelo que você faz.”

Antes da pandemia, Pietra trabalhava em bares e boates nas noites em que performava. Com as medidas de restrição, passou a fazer shows fora das boates, na parte externa, com distanciamento e cuidado, porém a ideia não vingou. Passou a fazer então shows virtuais que tiveram bastante aceitação do público. E, vertendo o ganha pão desta forma, algumas drags conseguiram se manter em meio a pandemia.

“Fazer drag tem que ser por amor, porque sem entrar nesse meio pensando em ser rica, desiste. Primeiro de tudo, é ter amor pelo que você faz.” -Pietra Parker

É claro que nada se compara ao show virtual. Antes, muitas casas acabavam se mantendo por conta dos show das drags, o que acabava gerando competição entre elas.

“É uma arte que você mexe muito com o ego da pessoa, então lidar com Drag não é fácil, porque todos nós temos ego independente do que faz. Mas, quando você, ainda no meio da arte, da beleza, da performance, acaba virando uma competição por você ser chamada para performar em tal lugar, em ser vista”.

Antes de Pietra tomar forma, Doug teve que lutar com a própria família pela falta de aceitação da sua orientação sexual. Com o tempo, a relação familiar melhorou. Porém, quando começou a fazer drag, evitou contar aos pais que estava se montando. Até sua mãe, em uma ligação lhe questionar.

“Aí tô vendo que tá fazendo drag, está se maquiando, é isso mesmo?”.

“Eu falei: é isso mesmo. Estou fazendo, estou aprendendo.”

“Nossa é muito bonita sua maquiagem, você fez curso? Já falei com seu pai, expliquei para ele.”

A resposta da mãe foi uma surpresa para ele. Quando se assumiu gay, o pai não escondeu a resistência:

“Não apareça vestido de mulher aqui em casa”.

“Drag queen é um muro de defesa”

Há três anos Dionatan, 27 anos, empresta sua vida a Morgan Solaris. Crítica em relação ao seu trabalho, passa horas trabalhando na sua drag, aprimorando suas habilidades. Fora dos palcos é artista, maquiador e gamer. Para ele, ser drag também é conquistar espaços.

“A drag queen é um muro de defesa para as outras pessoas. Por exemplo, a Pabllo (Vittar) hoje, há muito tempo a criança viada vivia sozinha, não se entendia. Onde na TV antigamente, tínhamos representatividade de gays através do deboche, tidos como motivos de piadas. A exemplo de Lacraia e Vera Verão. E hoje temos Pabllo, Aretuza, Lia, cada vez percebemos que a presença dessas drags é boa, porque essas crianças que já tem sua desenvoltura aflorada, não se sentem estranhas nem sozinhas.”

Morgan Solaris

Mas nem sempre existiu esse lado artístico. Na verdade, Dionatan não tinha muita conexão com o mundo drag. Foi em uma festa em Porto Alegre que as coisas mudaram. Convidado por uma amiga para subir ao palco e apresentar a gincana de pescaria em virtude da festa junina, Dionatan topou. Na ocasião, vestia um kimono vermelho, uma meia calça, e uma peruca curta, num tom loiro. E ali, no meio da diversão, Morgan nasceu.

“A drag além de me desconectar dos problemas do mundo real, ela ajudava a desconectar as outras pessoas dos seus problemas também.”

A sensação de estar pela primeira vez montada como drag foi cômica. A maquiagem muda a fisionomia, a peruca dá volume e, entrar no personagem, muda até a personalidade. É uma sensação de se libertar e estar alegre, entende Morgan.

Morgan se define como uma drag comediante. Onde toca o público, é uma pessoa para ajudar aqueles que querem esquecer dos problemas e se alegrar. Em relação a sua performance, é puxada para os sentimentos. E uma delas marcou: uma ceia comunitária realizada para os LGBTQI+ que não tinham famílias por perto ou não possuíam ligação/conexão com eles. O evento foi organizado pelo Cubo Multicultural, visando à época do Natal, onde famílias que rejeitam seus filhos pela orientação sexual, ou onde os próprios LGBTQI+ que moram longe demais da família e não podem passar a data juntos, se reúnem nesta ceia comunitária.

MAS O QUE É O SER DRAG?

Os drag queens são considerados artistas de entretenimento, segundo a professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Anna Paula Vencato, que há mais de 20 anos pesquisa o universo queer. “Elas fazem (ou eles, no caso de drag kings) uma personificação de gênero com fins teatrais, que por vezes é uma paródia de gênero, ou uma crítica social da lógica de gênero.“ Porém, não há especificamente uma definição do que é ser drag, de forma única. O “ser drag” carrega consigo muitas definições, desde o drag kings (o inverso de drag queens, aqui mulheres se vestem com características masculinas), até o drag queen. Em termos gerais, revela uma personificação de uma figura feminina ou masculina.

Segundo a pesquisadora, o imaginário social brasileiro sempre esteve povoado por pessoas trans, pelas transformistas, por drags, por homens que se vestem de mulher.

“O Brasil é um pais que gosta do transvestismo, da brincadeira de gênero, como performance. Não à toa elas eram atração de programa de TV em plena Ditadura Militar, ao mesmo tempo em que eram caçadas nas ruas pelas forças de segurança.”

Um dos exemplos, é o programa Show dos Calouros do comunicador Silvio Santos, que trazia drags para se apresentarem nos anos 90. Pense então, nesta perspectiva, nascer drag.

O fato de se descobrir, vir a ser, tornar-se drag em um país muito homofóbico, é desafiador. Segundo relatório divulgado pelo Grupo Gay da Bahia, as mortes violentas de LGBTQI+ dos anos 2000 até 2020, atingiram um total de 5.046 vítimas. Desta forma, o preconceito carrega consigo um teor violento e se torna cada vez mais escrachado com o passar dos anos, em relação a comunidade LGBTQI+. Há ainda, com relação a esse fato, uma infeliz contradição. O Brasil também lidera o ranking de consumo de pornografia trans no mundo, segundo dados dos próprios sites adultos.

As drags na história

Imagina que um homem, acima do peso, ser a primeira big girl (em tradução, menina-grande). Em plena década de 1960, colocou um vestido, uma peruca e desenhou no seu rosto uma maquiagem excêntrica para a época. O rosto figurava duas sobrancelhas altas e finas. O pó branco cobria boa parte do rosto, deixando as sombras cor de rosa na altura do olho até as sobrancelhas desenhadas. Naquele momento, prestou o serviço necessário à arte. Dali, nasceu a personagem que ditaria o rumo da produção drag-audiovisual, lançando ao mundo o seu conhecido bordão:

“I am Divine”.

Em sua essência, protagonizou um dos primeiros filmes de um personagem LGBTQI+ assumido: Pink Flamingos (1972). Dirigido pelo seu companheiro de arte John Waters, consolidou a fama da drag dentro e fora do cinema e registrou a marca de uma persona irreverente para as novas gerações.

Mais tarde, surgiu Marsha P. Johson: travesti, negra e drag queen. No levante de Stonewall de 1969, Marsha permaneceu como uma figura central, ao lado de sua amiga Sylvia Rivera, batalhando pelo espaço de direito e respeito à comunidade LGBTQI+.

No Brasil, Miss Biá é considerada a pioneira do movimento drag brasileiro. Com 80 anos, transitou do transformismo a drag queen. Abriu espaço para outras virem. Vera Verão ganhou as telas da televisão em uma época marcada pela conservadorismo Com 1.98m, negro e gay, vestia roupas brilhantes, brincos gigantes e uma bolsa acompanhada do seu bordão “Epaaaa! Bicha não.” Enquanto Marcia Pantera, uma das precursoras do movimento bate-cabelo, se destacou no cenário drag brasileiro nos anos 90. E assim, atraiu a atenção do famoso estilista Alexandre Herchcovitch, desfilando por anos suas produções nas passarelas nacionais e internacionais.

Nos Estados Unidos, Rupaul é uma das drag queens mais famosas. Figura no cenário queer desde os anos de 1980 e é chamada de a “Madonna das Drags”. Criadora do programa Rupaul Drag Race, transformou desconhecidos em produtos comerciais, em shows e em consumo.

No Brasil, a cantora Pabllo Vittar é considerada a maior drag nas plataformas de streamings e visualizações no mundo, atingindo mais de 1 bilhão de reproduções, como no Spotify e Youtube.

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