Por Slavoj Žižek.
(TRADUÇÃO DE ARTUR RENZO)
A atual propagação da epidemia do coronavírus também desencadeou um enorme surto de vírus ideológicos que se encontravam em estado dormente em nossas sociedades: fake news, teorias conspiratórias paranoicas, explosões de racismo… A necessidade concreta e bem fundamentada de se implementar quarentenas reverberou nas pressões ideológicas de se erguer fronteiras claras e submeter “inimigos” que representariam uma ameaça à nossa identidade a condições de isolamento.
Mas é possível que outro vírus ideológico, este muito mais benigno, também deva se alastrar e, com sorte, infectar a todos nós: o vírus de começarmos a pensar em possibilidades alternativas de sociedade, possibilidades para além do Estado-nação, e que se atualizam nas formas de cooperação e solidariedade globais. Muito se especula hoje que o coronavírus pode levar à queda do governo comunista na China, da mesma forma que (como o próprio Gorbatchov admitiu) a catástrofe de Chernobyl foi o acontecimento que deflagrou o fim do comunismo soviético. Mas há um paradoxo aqui: pois o coronavírus também deve nos estimular a reinventar o comunismo com base na confiança no povo e na ciência.
na cena final de Kill Bill: Volume 2, de Quentin Tarantino, a protagonista Beatrix (Uma Thurman) debilita o malvado Bill (David Carradine) e o golpeia com a “técnica dos cinco pontos que explodem o coração”, o golpe mais mortífero de todas as artes marciais. A técnica consiste em uma combinação de cinco golpes aplicados com a ponta dos dedos em cinco pontos de pressão diferentes no corpo do oponente – depois de sofrer o golpe, assim que a vítima virar as suas costas e completar cinco passos, seu coração explode e ela desaba. (Esse golpe, desnecessário dizer, é parte da mitologia de artes marciais de matriz chinesa mas não pode ser reproduzido na realidade.) No filme, depois que Beatrix aplica o golpe em Bill, ele calmamente faz as pazes com ela antes de dar seus cinco passos e morrer… O que faz esse golpe ser tão fascinante é o intervalo que ele comporta entre sua execução e o momento da morte: uma vez golpeado posso ainda ter uma conversa tranquila contanto que eu permaneça sentado calmamente, embora esteja plenamente ciente de que a partir do momento que me eu levantar para andar, meu coração irá explodir e eu cairei duro.
Não poderíamos dizer que a ideia por trás das especulações sobre como o coronavírus pode levar à queda do governo comunista na China passa um pouco por aí? Como se essa epidemia operasse como uma espécie de ataque social ao regime comunista chinês com “técnica dos cinco pontos que explodem o coração”? Uma vez golpeados, eles ainda podem permanecer sentados, comentando a situação com tranquilidade e tocando os procedimentos rotineiros de quarentena etc., mas toda e qualquer mudança real na ordem social (como efetivamente confiar nas pessoas) inevitavelmente levará a seu colapso… Minha modesta opinião, contudo, é muito mais radical que essa: arrisco dizer que essa epidemia do coronavírus é uma espécie de ataque com a “técnica dos cinco pontos que explodem o coração” a todo o sistema capitalista global – um sinal de que não podemos mais continuar tocando as coisas da mesma forma, que é necessária uma mudança radical.
Alguns anos atrás, o crítico literário e ensaísta Fredric Jameson chamou atenção ao potencial utópico presente nos filmes sobre catástrofes cósmicas. Isto é, uma ameaça global como um asteroide ameaçando a vida no planeta Terra ou uma pandemia que está aniquilando a humanidade traz a potencialidade de ensejar uma nova solidariedade global: diante dela nossas pequenas diferenças tornam-se insignificantes e todos passamos a trabalhar juntos para encontrar uma solução. E aqui estamos nós hoje, na vida real. Veja, o ponto não é se aproveitar sadicamente do sofrimento generalizado contanto que ele contribua com nossa causa. Muito pelo contrário. Trata-se de refletir sobre o triste fato de que precisamos de uma catástrofe dessa magnitude para nos fazer repensar as características básicas da sociedade em que vivemos.
O primeiro modelo ainda vago desse tipo de coordenação global é a Organização Mundial de Saúde (OMS), que não vem nos oferecendo a bobageira burocrática usual, mas sim alertas precisos, divulgados sem alarde. Devemos conceder a tais organizações mais poder executivo. Bernie Sanders vem sendo ridicularizado por céticos por defender atendimento universal gratuito de saúde nos EUA – mas será que a lição desta epidemia do coronavírus não é de que é necessário ainda mais do que isso, de que devemos começar a montar algum tipo de rede global de atendimento de saúde?
Um dia depois do vice-ministro iraniano da saúde, Iraj Harirchi, realizar uma coletiva de imprensa para tentar minimizar o alarde sobre a disseminação do coronavírus e afirmar não haver necessidade de implementar quarentenas de massa, ele soltou uma declaração breve admitindo que ele próprio havia contraído o coronavírus e se colocado em situação de isolamento (já durante a primeira aparição televisiva, ele chegou a apresentar repentinos sintomas de febre e fraqueza). Harirchi acrescentou: “Este vírus é democrático, e não discerne entre pobres e ricos ou entre políticos e cidadãos comuns.” Nesse sentido, ele está profundamente correto – estamos todos no mesmo barco.
E não estamos lidando apenas com ameaças virais – outras catástrofes também rondam nosso horizonte, se já não estão ocorrendo: secas, ondas de calor, tempestades massivas etc. Em todos esses casos, a resposta correta não deve ser um pânico generalizado, mas sim o trabalho duro e urgente de se estabelecer algum tipo de coordenação global eficiente.
A primeira ilusão da qual devemos nos desvencilhar é aquela formulada por Trump durante sua visita à Índia – a saber, de que a epidemia vai regredir logo e que só precisamos esperar chegar o pico pois em seguida a vida voltará ao normal… A China, aliás, já está se preparando para esse momento: a mídia deles chegou a anunciar que, terminada a epidemia, as pessoas terão de trabalhar de sábado e de domingo para tirar o atraso. Contra essas esperanças demasiadamente fáceis, a primeira coisa a admitir é que a ameaça veio para ficar: mesmo se essa onda recuar, ela voltará a surgir em novas formas, talvez até mais perigosas.
Por esse motivo, é de se esperar que as epidemias virais terão impacto nas nossas interações mais elementares com outras pessoas, com os objetos à nossa volta e inclusive com nossos próprios corpos. Evite entrar em contato com coisas que poderiam estar “contaminadas”, não toque em livros, não sente em privadas públicas ou em bancos públicos, procure não abraçar os outros e apertar suas mãos… talvez até fiquemos mais ciosos sobre nossos gestos espontâneos: não mexa muito no nariz, evite esfregar os olhos e coçar o corpo. Ou seja, não é apenas o Estado e outras instâncias que nos controlarão: devemos aprender a controlar e disciplinar a nós mesmos.
Talvez apenas a realidade virtual seja considerada segura, e se deslocar livremente em um espaço aberto se torne algo reservado para as ilhas privativas dos ultrarricos. Mas mesmo no nível da realidade virtual e da internet, vale lembrar que nas últimas décadas os termos “vírus” e “viral” eram usados principalmente para designar fenômenos digitais que estavam infectando nosso espaço-virtual e dos quais não estávamos cientes, ao menos não até que seu poder destrutivo (digamos, de corromper nossos dados ou torrar nossos HDs) fosse liberado. O que estamos testemunhando agora é um retorno massivo ao significado literal originário do termo. As infecções virais operam de mãos dadas em ambas as dimensões, real e virtual.
Outro fenômeno esquisito que podemos observar é o retorno triunfal do animismo capitalista de se tratar fenômenos sociais, tais como mercados ou capital financeiro, como entidades vivas. Ao lermos algumas das principais manchetes da grande mídia, a impressão que fica é que o que realmente deve nos preocupar não são os milhares que já morreram (e milhares que ainda vão morrer) mas o fato de que “os mercados estão ficando nervosos” – o coronavírus está perturbando cada vez mais o bom funcionamento do mercado mundial, e, como nos é dito, o crescimento pode sofrer uma queda de 2 ou 3 por cento… Será que isso tudo não assinala claramente a necessidade urgente de reorganizarmos nossa economia global de modo a não deixá-la mais à mercê dos mecanismos de mercado? Não me refiro aqui ao comunismo à moda antiga, é claro, mas simplesmente de algum tipo de organização global capaz de controlar e regular a economia, bem como limitar a soberania de Estados-nação quando assim for necessário. Países inteiros foram capazes de fazer isso em condições de guerra, e estamos efetivamente efetivamente nos aproximando, todos nós, de um estado de guerra médica.
Além disso, também não devemos temer apontar certos efeitos colaterais potencialmente benéficos dessa epidemia. Um dos símbolos da epidemia são passageiros presos (postos em quarentena) em grandes cruzeiros – que ironia do destino, fico tentado a dizer, para a obscenidade que representam essas embarcações. (Só precisamos tomar cuidado para que a viagem para ilhas desertas ou para outros resorts exclusivos não se torne privilégio da minoria de ricos, como décadas atrás ocorria com a viagem de avião). A produção automobilística ficou seriamente afetada – bem, isso pode até nos obrigar a pensar em alternativas para nossa obsessão com veículos individuais… A lista pode ser prolongada indefinidamente.
Em um discurso recente, Viktor Orbán disse o seguinte: “Não existe liberal. Um liberal não é nada mais que um comunista diplomado.” Mas e se no fundo o oposto for verdadeiro? Se chamarmos de “liberais” aqueles que se importam com nossas liberdades, e “comunistas” aqueles que estão cientes de que só podemos salvar essas liberdades com mudanças radicais visto que o capitalismo global se aproxima de uma crise, então devemos dizer que, hoje, aqueles que ainda se consideram comunistas são liberais diplomados – liberais que estudaram seriamente por que nossos valores liberais estão sob ameaça e tornaram-se conscientes de que apenas uma mudança radical pode salvá-los.
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014), O absoluto frágil (2015) e O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.