“Vimos no Vale do Javari como as palavras de um presidente influenciam no aumento do crime”, diz indigenista Carlos Travassos

Equipe da Funai, co, Bruno Pereira, na CGIIRC, reunida com os Matis, Vale do Javari. Acervo Funai

Com uma experiência de 15 anos na defesa de povos isolados e de recente contato, o geógrafo e indigenista Carlos Lisboa Travassos conta como percebeu o surgimento, no Vale do Javari, de uma estrutura criminosa sofisticada após a posse de Bolsonaro.

Os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips atraíram os olhares do mundo para a região do Vale do Javari, no oeste do Amazonas. A segunda terra indígena do Brasil em extensão territorial é lar do maior número de populações isoladas do mundo e conta com duas bases de proteção da Fundação Nacional do Índio (Funai), onde Bruno trabalhava desde 2010, ajudando a proteger a área da invasão de criminosos. O trabalho aguerrido do sertanista chamou a atenção de infratores, que passaram a ameaçá-lo.

Entre 2007 e 2009, antes de assumir a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai, o também indigenista Carlos Travassos, 42 anos, amigo de Bruno, sentiu na pele o medo e a insegurança de trabalhar naquela região, alvo de diversos conflitos causados pelo tráfico de drogas, caça e pesca ilegal, garimpo e extração ilegal de madeira.

Segundo Travassos, o que já era ruim ficou ainda pior quando o “anti-indígena” Jair Bolsonaro subiu a rampa do Planalto, em 2019, intensificando o desmonte da já combalida Funai e empoderando infratores ambientais com declarações antidemocráticas.

O que se viu depois no Vale do Javari foi a sofisticação do crime, disse o geógrafo nesta entrevista ao InfoAmazonia. Filho de presos políticos na ditadura militar, Travassos é hoje uma das maiores autoridades em indígenas isolados no Brasil, com 15 anos de experiência na área. Ele não segurou o choro ao falar do destino de Bruno e Dom Phillips e refletir sobre os rumos da luta a favor dos povos indígenas em um país hostil a seus ancestrais e às suas lideranças ambientais. Travassos trabalha hoje no Maranhão com os Awá Guajá.

Abaixo os principais trechos da entrevista:

Audiências com as etnias do Vale do Javari lideradas por Bruno Pereira e Carlos Travassos.

Infoamazonia – Podemos começar com um panorama do Vale do Javari. Como se deu o processo de demarcação?

Carlos Travassos – A terra indígena Vale do Javari foi demarcada na década de 90. Na época, havia uma tendência de querer demarcar as terras em ilhas, onde cada povo morava, sem pensar no conjunto ecológico. O que fez com que essa localidade conseguisse ser demarcada de forma contígua, totalizando 8,5 milhões de hectares, foram os estudos da presença de índios isolados. Era uma região muito maltratada pela exploração madeireira. As calhas dos rios eram ocupadas por patrões da madeira, que tinham uma relação com os indígenas de praticamente escravidão. Após a demarcação, esses moradores não índios nascidos e criados ali saíram.

Com o passar dos anos as cidades amazônicas cresceram, tanto no lado brasileiro quanto nos lados peruano e colombiano. As populações desses municípios aumentaram, assim como a atividade pesqueira e de caça. Começa então a haver escassez de peixes e outros animais. Na terra indígena, ocorre exatamente o oposto, porque você tem ali uma proteção integral. A fauna e a flora se restabelecem com muita força lá. E é aí começa esse processo de pressão territorial e, a isso, adiciona-se uma animosidade que sempre existiu entre esses moradores e os povos indígenas.

Existe uma estimativa de quantos povos isolados há no Vale do Javari? E quais são os grupos já contatados que vivem ali?

Temos 16 regiões com referências de índios isolados. E desse total estima-se que haja 11 grupos diferentes. É a maior concentração desses povos no mundo. Entre os contatados temos os Matsés, conhecidos como Mayoruna; os Marubo e seus subgrupos; os Matis, que também se denominam Matsés, mas são de uma etnia diferente; os Kanamari, que são de outra família linguística; e os Kulina, um grupo bem pequeno e que no processo de contato e demarcação sofreu uma depopulação muito grande, mas que hoje está se restabelecendo como povo.

Matis e Korubo em encontro em 2014.

Como esses grupos isolados vivem? Quais são seus hábitos?

Eles são agricultores. Também caçadores e coletores, claro, mas possuem uma agricultura rica, com mandioca, batata, milho, algodão, urucum, jenipapo, uma série de plantios de época. Eles têm também cultivos perenes, como palmeiras, pupunha, açaí e bacaba. É uma sofisticação muito grande em termos de hábitos, de cultura alimentar, da forma como ocupam o território. E tem também os aspectos cosmológicos, as tradições, que estão muito ligadas às estações do ano e às características do ambiente. Alguns povos estão mais próximos uns dos outros e interagem, com trocas positivas. Às vezes tem alianças, mas também tem guerras.

Você participou de algumas frentes de proteção a esses povos. Como é esse trabalho? Quais são suas peculiaridades?

É um trabalho que exige desprendimento da vida com a qual estamos acostumados. Lá, você tem a necessidade, pela distância e pelo envolvimento, de passar períodos prolongados. As condições de estrutura eram muito ruins. Faltava comida, tínhamos de pegar o alimento na própria floresta. Quando chovia muito não se conseguia pescar, os índios não conseguiam caçar e passávamos aperto.

Mas as pessoas não compreendem a importância desse trabalho, que exige paixão por estar na floresta, em um ambiente que não é o nosso. Mas, ao mesmo tempo, é muito recompensador trabalhar com os povos indígenas.

O que mudou naquela região de 2019, quando você saiu de lá até agora? As ameaças, por exemplo, se intensificaram?

Na época que trabalhei lá, havia epidemia de hepatite e malária que ganhava dos piores índices dos países africanos. Morria muito indígena. Mas passamos a ter um controle maior sobre isso. Mas esse controle depois decaiu de novo. Você começa a perceber, no final do governo Dilma, com os cortes orçamentários, um cenário nocivo para a Funai na área de isolados. Quando o Michel Temer entra, ocorre um segundo corte no orçamento. Logo depois vem o Bolsonaro e você vê crescer a pressão das bancadas ruralista e evangélica sobre a Funai. E aí a coisa começa a desandar.

Então, você tem uma população que passa a ser incentivada pelo governo a explorar a floresta. A gente não faz ideia de como as palavras de um presidente influenciam ainda mais para aquele cara já acostumado a praticar crime ambiental.

Vimos no Vale do Javari como as palavras de um presidente influenciam no aumento do crime. Percebemos o surgimento de uma estrutura muito mais sofisticada, porque antes não havia tanto essa percepção da impunidade. Hoje, os equipamentos, por exemplo, são aprendidos e, no dia seguinte, aquele cara aparece com canoa, rede e motor novos. As armas que os caras usavam eram diferentes. A estrutura criminosa começou a ganhar mais força.

Quais a principais ameaças aos povos indígenas do Vale do Javari?

A gente pode listar todos os praticantes de crimes ambientais. Minimizamos a ação dos caçadores e pescadores, achando que atuam para sobreviver. Não! É caça comercial. São pessoas muito perigosas, que vivem de matar. A natureza deles é uma natureza da morte. São caras corajosos que andam na mata sozinhos, sempre armados e, muitas vezes, conhecem a região melhor que os indígenas. Depois tem a questão do tráfico, que tem suas regras próprias. Qualquer um que vai contra essas regras é eliminado. A retirada ilegal de madeira age mais ou menos assim também. É um modus operandi primitivo e violento. O garimpo também é nocivo, porque de 100 garimpeiros, 10 vão falar assim: “se os índios vierem, a gente mata”.

“Minimizamos a ação dos caçadores e pescadores, achando que atuam para sobreviver. Não! É caça comercial. São pessoas muito perigosas, que vivem de matar. A natureza deles é uma natureza da morte.”

De que forma essas atividades ilegais impactam no trabalho da Funai?

Impactam muito. Primeiro você tem 10 servidores e os caras começam a ameaçar, você fica só com um. E aquele lá vai ficar sozinho. Então a gente se pergunta até que ponto vale a pena se arriscar. O Bruno Pereira lutava pela proteção daquela terra. Será que agora depois do seu assassinato alguma coisa vai mudar? Será que lamentar e ficar indignado vai melhorar a proteção no Vale do Javari? É muito ruim essa questão do medo e da insegurança.

Na sua opinião, o que deveria ser feito para minimizar esses problemas de ameaças e dos crimes que acontecem lá dentro. Quais seriam as políticas ideais?

Não há uma ação isolada. Começa com um trabalho, voltado à população do entorno, de consciência ambiental e criminal, e também de geração de renda, porque essas populações buscam o crime para ter acesso à renda, que lhe é, de alguma forma, facultado. Qual o projeto que se tem para a região de Atalaia do Norte? A gente precisa pensar quais são as aptidões daquela região. É uma área lindíssima, com um potencial turístico forte. Você pode ter um instituto técnico na área de turismo, na área de produção farmacológic etc. Tem que botar os prefeitos para conversar. Se a gente não atuar nisso, dificilmente só comando e controle vão dar conta da proteção da terra.

Por outro lado, você tem, sim, que ter ação de comando e controle muito eficiente também. Porque se o cara sabe que ele vai responder por aquilo, ele pensa duas vezes antes de cometer o ato ilícito. Mas se ele sabe que vai ter sucesso na invasão, ele minimiza os riscos.

Após a exoneração do Bruno Pereira da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC), houve a nomeação de um missionário evangélico. Ano passado, um militar da Funai falou em “meter fogo” nos indígenas isolados da região. O que está acontecendo na pasta e na Funai como um todo?

É um órgão que estava doente e chegou alguém para tentar desligar o tubo de oxigênio. A impressão que tenho é que o atual presidente da Funai, Marcelo Xavier, e o pessoal que comanda com ele chegaram com o travesseiro para sufocar de vez a instituição. Ele é um policial federal com um discurso agressivo. Difícil de dialogar. Ele exerce medo nos servidores com assédio moral, transferindo alguns, demitindo outros, falando no estilo Bolsonaro de ser que quem ficar contra ele vai se arrepender.

É um órgão que estava doente e chegou alguém para tentar desligar o tubo de oxigênio. A impressão que tenho é que o atual presidente da Funai, Marcelo Xavier, e o pessoal que comanda com ele chegaram com o travesseiro para sufocar de vez a instituição.

Eu tenho uma visão crítica também da nossa geração. Foi uma geração privilegiada no sentido da garantia dos direitos civis, mas que diante dessa ameaça do Bolsonaro, se encolheu, ficou com medo da reação. Deixamos de exercer nossos direitos, de nos defender caso sejamos processados por fazer o que é certo. Não foi uma postura covarde, mas foi uma postura pouco ativa e muito introspectiva. As pessoas sentiram muito as ameaças. Quem teve coragem de lutar, como o Bruno, ficou sozinho.

O que o desaparecimento do Bruno Pereira significa na luta para a proteção dos povos indígenas? Quem tem responsabilidade e precisa responder por isso?

A responsabilização tem que ser completa. Não é só quem possivelmente executou ou mandou executar o Bruno, tem também o cenário de omissão do Estado. O presidente da Funai, o diretor de Proteção Territorial e coordenador-geral de Índios Isolados, que são os três níveis de subordinação, têm responsabilidade no assassinato. Se eles não tiverem um mínimo de responsabilização nas mortes, a mudança pelo assassinato de Bruno vai ser zero.

A gente tem essa visão eurocêntrica do herói que precisa morrer para ser reconhecido. Precisamos valorizar a luta das pessoas enquanto elas estão vivas. O Bruno não estava ali por acaso. Não vi nenhum movimento da Funai para mudar a estrutura (que favoreceu a exoneração e o assassinato de Bruno). O Marcelo Xavier tinha uma missão para cumprir? Tinha. Não cumpriu? Tem que pagar. Esses caras têm que responder na Justiça.

O Marcelo Xavier (presidente da Funai) tinha uma missão para cumprir? Tinha. Não cumpriu? Tem que pagar. Esses caras têm que responder na Justiça.

No ano passado, você publicou um artigo na revista Veja intitulado “Resiliência como prova de Humanidade”. Nele, você escreve que “o custo de lutar pela floresta começa pelo medo da morte e a restrição à liberdade”. Como sustentar essa luta em um país com um histórico tão violento contra lideranças ambientais?

É complicado. Todos nós temos famílias. Você se arrisca e acaba arrastando todo mundo junto. É muito difícil ser sozinho. Os indígenas que estão à frente desse trabalho têm uma dificuldade muito grande com a família deles de explicar porque estão se arriscando. A impressão é que todo mundo admira meu trabalho e fica preocupado, mas de fato ninguém é capaz de abrir mão da sua vida. Seria mais fácil se fosse uma luta coletiva e não de um pequeno contingente de pessoas. Eu sempre acreditei que uma hora a nossa sociedade fosse acordar e valorizar. Mas o que eu percebi é que a nossa relação de informação dura, no máximo, três semanas. Daqui a pouco a morte do Bruno e do Dom será apenas mais uma das muitas.

Há em tramitação em Brasília projetos de lei e teses jurídicas, como o marco temporal, que mudam regras de demarcação de terras indígenas, entre outros efeitos. Que impacto essas políticas têm sobre os povos originários?

É retrógrado e devastador. Essas ações, tanto no Congresso quanto o acompanhamento do marco temporal pelo STF, são muito preocupantes. Na mão desses caras está o fim de uma política indigenista e o fim dos princípios de um Estado Democrático de Direito. Quando o STF discute as teses do marco temporal, ele está brincando com a nossa capacidade de discernimento histórico, político e social. O Executivo é pouco sensível para a questão indígena, mas o Judiciário é pior. Talvez você tenha 1% do Judiciário que consiga compreender minimamente uma questão humanitária de povos isolados.

Quando o STF discute as teses do marco temporal, ele está brincando com a nossa capacidade de discernimento histórico, político e social.

Este ano vamos ter a renovação dos quadros políticos brasileiros. Quais são suas expectativas?

Vai ser uma guerra. Trabalhei na Funai no governo Lula e peguei dois anos de governo Dilma. Tudo o que a gente ouvia era que não dava para avançar por conta das correlações de força no Congresso. E as concessões para esse povo era uma coisa absurda. Hoje percebemos o peso daquela correlação de força. O Bolsonaro não chega à Presidência por acaso. Tem toda uma construção de um estado reacionário que prepara o ambiente para ele entrar. E o desafio hoje é grande porque, para combater essa extrema direita, você aumenta ainda mais os laços com o centro e com a centro-direita, que percebeu que o Bolsonaro não responde às suas expectativas.

Mas tem um lado positivo: o mundo pela primeira vez colocou a questão ambiental como pauta e, dentro dessa questão ambiental, a Amazônia tem destaque. As pessoas começam a sentir os impactos do aquecimento global, até mesmo setores da agricultura. Em 2023 teremos um cenário em que isso vai pesar muito.


Entrevista do InfoAmazonia para o Projeto PlenaMata.

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