Maria*, 53, atende o telefone com a voz abatida. “Estou triste, indignada, tenho vergonha de ser brasileira, eu esperava justiça”, lamenta. Há dois meses, conseguiu um emprego ainda em fase de teste como cozinheira depois de ter fechado o bar que comandava e mudar de endereço por medo. É ela quem aparece no vídeo tendo o pescoço pisado pelo soldado PM João Paulo Servato que foi absolvido, nesta terça-feira (23/8), pelo Tribunal de Justiça Militar (TJM) do Estado de São Paulo.
Servato era acusado de lesão corporal grave, falsidade ideológica, inobservância de lei, regulamento ou instrução e por constranger com violência a dona de um bar em Parelheiros, na zona sul da cidade de São Paulo, em 2020. O cabo PM Ricardo de Morais Lopes, que participou da abordagem, também foi inocentado por falsidade ideológica e por inobservância de lei, regulamento ou instrução.
Imagens reveladas pelo programa Fantástico, da TV Globo, em julho de 2020, mostraram que o policial pisou no pescoço da vítima, uma mulher negra, que estava rendida no chão. Ela ainda levou um soco no peito e um chute na perna durante a ação, em maio daquele ano.
De acordo com a assessoria do TJM, o resultado se deu por um conselho de sentença formado por cinco pessoas. O juiz José Álvaro Machado Marques, da 4ª Auditoria Militar, e um capitão votaram pela condenação da dupla, mas tiveram os votos vencidos por outros três capitães. O documento da decisão ainda não está disponível e deve ser lido e publicado no dia 30 de agosto.
O advogado Felipe Morandini, que representa a vítima das agressões, disse que ficou “incrédulo” com a absolvição e que vai recorrer. “As imagens são claras, e demonstram as brutais e abusivas agressões sofridas”, criticou. “Muito se falou ontem, por ambas as partes, [no julgamento] acerca da mensagem que se passaria à sociedade e à policia militar naquele processo, e, ao que parece, a mensagem é a de que o policial militar tudo pode. Pode agredir, pode mentir, e pode matar. É uma carta branca dada à barbárie. Ninguém em plena e sã consciência pode considerar normal o que vimos nas imagens, e a impunidade dos policiais reduz a confiança da sociedade na instituição policial.”, complementou.
Maria conta estar traumatizada, mas que não teve acompanhamento psicológico: “Eu fiquei fazendo fisioterapia, mas não fiz tratamento psicológico porque nada vai apagar o que eu sofri”. Apesar disso, ela afirma categoricamente que vai seguir em busca de justiça: “Tive de mudar por medo, teve gente que se afastou achando que ia sofrer represália. Mas eu vou até o fim porque a gente não pode se calar, se não as leis não mudam e outras pessoas vão passar por isso”.
O resultado do julgamento foi divulgado ainda na noite de terça-feira (23) nas redes sociais do escritório responsável pela defesa dos PMs. À Ponte, o advogado João Carlos Campanini disse que os policiais foram atacados e “precisavam se defender”. “Para mim, a justiça deu um recado: ‘não parta para cima de um policial militar, não o ataque e não o agrida, ele representa o Estado’”, declarou.
A assessoria do Ministério Público informou que a Promotoria Militar “lamenta profundamente que tenha sido esse o desfecho da decisão em 1ª instância” e que vai recorrer da sentença assim que for publicada.
As agressões
Na denúncia contra os policiais, a promotora Giovana Ortolano Guerreiro considerou que os PMs, lotados na 2ª Companhia do 50º Batalhão Metropolitano, não seguiram os procedimentos de abordagem e embasou a denúncia a partir das imagens, que mostraram as agressões, e que comprovaram que a dupla mentiu quando foi à delegacia, alegando que havia sido agredida com golpes de barra de ferro e chamada de “vermes”.
“Assim, os denunciados inseriram e fizeram inserir declaração falsa e diversa da que devia ser escrita, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, atentando contra a administração e o serviço militar”, escreveu Guerreiro.
O caso começou a ser investigado pela Polícia Civil como crime de abuso de autoridade ao constranger preso ou detento sob grave ameaça e submeter a situação vexatória não autorizado em lei, logo após a repercussão do caso, quando a vítima registrou um boletim de ocorrência, em 12 julho de 2020, mas acabou remetido 12 dias depois à Justiça Militar por determinação da juíza Adriana Barrea, do Foro Criminal da Barra Funda do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), acolhendo o entendimento do delegado Julio Jesus Encarnação.
De acordo com o inquérito da Polícia Civil, que a Ponte teve acesso, a comerciante disse que mora no bairro há 29 anos e que abriu seu bar por volta das 13h. Disse que havia dois clientes, José e Luís (nomes fictícios) que estavam no local e que, em determinado momento, pediu a um deles para abaixar o volume do carro de som, que teria sido atendido. Depois, relatou que ouviu barulhos do lado de fora do estabelecimento e saiu, com um rodo na mão, para ver o que estava acontecendo. Ela afirma que viu José estava ensanguentado apanhando de um policial.
À Ponte, na época, ela contou que nem chegou a ser abordada e que foi agredida assim que tentou intervir contra as agressões ao cliente, tendo investido com um rodo por três vezes contra o policial, como também mostra a gravação. “O rapaz já tinha apanhado bastante, estava caído. Pedi para o PM [Ricardo] parar, aí o outro [João] me jogou duas vezes na grade do bar”, contou na ocasião, citando ter recebido três pancadas antes de ter o pescoço pisado. “Fiquei tonta com os golpes, ele me deu uma rasteira. O chute pegou na canela e quebrou minha tíbia. Quando eu disse isso, ele falou ‘quebrou porra nenhuma’ e pisou no meu pescoço”, relatou a mulher.
Traumatizada, disse na época que não lembrou ao certo quanto tempo o PM permaneceu com a bota apoiada em seu pescoço e que chegou a desmaiar. “Não foi pouco, não. Colocou todo o peso do corpo. Meu rosto esfregou o asfalto enquanto ele me algemava, explicou. Depois, o policial ainda colocou o joelho em seu pescoço e sua costela quando estava jogada na calçada. A comerciante foi levada ao pronto-socorro do Hospital Balneário São José e depois ao 101º DP (Jardim Imbuias), junto com os outros dois clientes.
Na delegacia, os policiais deram uma versão completamente diferente. Ricardo e João alegaram que receberam chamado a respeito de descumprimento de quarentena em um bar e tão logo chegaram ao local disseram que haviam quatro pessoas consumindo no estabelecimento, mas antes de conseguirem falar com o proprietário, um deles teria fugido. Ao tentar mandá-lo encostar na parede, os policiais afirmam que Luís teria dito “Vou colocar a mão na cabeça não, tio! Vai se fuder”, que chegou a empurrá-los e resistiu ser algemado.
A dupla alegou que, nesse momento, sentiram “pancadas na cabeça e chutes” e que apareceu “uma senhora descontrolada, utilizando uma barra de ferro para agredi-los, acompanhada de outros dois rapazes, que também os agrediam com chutes e socos”. Ricardo disse que conseguiu arrancar a barra da mão dela mulher e enquanto tentavam conter os demais que a população ao redor os chamavam de “vermes”. Disse que a comerciante retornou com um rodo e reiniciou as ofensas verbais e agressões físicas aos policiais militares e que a situação só se acalmou quando solicitaram reforço. Na ocasião, como a comerciante não teve alta do hospital, ela permaneceu sob escolta e não deu depoimento no dia.
Já sobre as agressões cometidas pelos policiais, a comerciante disse que teve conhecimento dos vídeos entre cinco a seis dias depois do ocorrido e afirmou que chegou a ir à Corregedoria da PM, mas não foi atendida “sob a alegação de que não poderiam atender de imediato em função da pandemia de Covid-19”. Ela afirma que os policiais ainda teriam voltado à vizinhança atrás de imagens.
Tanto Ricardo quanto João foram intimados a prestar depoimento na Polícia Civil, mas ambos ficaram em silêncio e disseram que se manifestariam em juízo. Com isso, o delegado Julio Jesus Encarnação entendeu, com base na Lei 13.491/2017, sancionada pelo então presidente Michel Temer e que transfere para a Justiça Militar a investigação de crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, que é “competência da Justiça Militar Estadual e correlata atribuição investigativa criminal da corregedoria da instituição miliciana estadual a apuração das infrações da legislação penal especial cometidas por policiais militares, em especial dos delitos de abuso de autoridade”.
Acusada de agredir policiais
A delegada Isabela Pereira Bahia entendeu que a mulher e os dois clientes praticaram lesão corporal contra os PMs, além de desobediência, resistência à prisão e desacato, e também solicitou as prisões dos três. Em audiência de custódia, na época, o juiz Fabrizio Sena Fuzari determinou que a comerciante e os dois clientes respondessem o processo em liberdade, cumprindo medidas cautelares (comparecimento mensal em juízo, não estar fora de casa entre 22h e 6h, não sair da cidade sem autorização), já que os três não têm antecedentes criminais, têm residência fixa e trabalham.
Esse caso ainda está em investigação à parte, na Justiça Comum, e a promotora Flavia Lias Sgobi denunciou a mulher e os dois homens por lesão corporal, desacato, resistência e infração de medida sanitária(bar aberto durante a pandemia), em outubro de 2021, sem fazer qualquer menção às imagens em que a vítima aparece sendo agredida e pisada.
Com a repercussão dessa denúncia, Sgobi voltou atrás e pediu tempo para reavaliar a situação e alegou que não teve acesso ao vídeo e só ficou sabendo dele depois. O caso está parado já que, de acordo com Felipe Morandini, os autos do inquérito militar ainda não foram encaminhados ao Foro Regional II de Santo Amaro para que a promotora reveja se mantém ou não a acusação contra a mulher.
O que diz a polícia
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública sobre o resultado do julgamento e a situação dos policiais envolvidos e aguarda resposta.
*O nome foi trocado a pedido da entrevistada que teme represálias.