Verdades e mitos sobre o filme “O jovem Karl Marx”, de Raoul Peck

Por Michael Heinrich.

O jovem Karl Marx é um belo filme, realizado de maneira muito profissional por um admirável diretor de esquerda (o haitiano Raoul Peck) e com uma série de atores realmente bons. Ele abarca o período entre 1842, quando Marx era o editor-chefe da Gazeta Renana (Rheinische Zeitung), e início de 1848, quando fica pronto o Manifesto Comunista. O filme não foca apenas na amizade entre os dois rapazes, Karl Marx e Friedrich Engels, cujas teorias posteriormente tornaram-se enormemente influentes; ele trata também das relações desses dois homens com suas parceiras – Jenny von Westphalen e Mary Burns, respectivamente – e do importante papel que essas mulheres desempenharam. Comparado com algumas das produções mais antigas sobre Marx produzidas na União Soviética e na Alemanha Oriental, esse filme é, em qualquer aspecto, bastante superior.

No entanto, vale a pena não perder de vista de que evidentemente nem tudo que aparece no filme são dados ou anedotas comprovadas. É certo que os fatos principais estão todos corretos: que Marx editava um jornal em Colônia, que ele viajou a Paris onde encontrou Proudhon e onde tem início sua amizade com Engels, que Marx e Engels se tornaram influentes na “União de Comunistas” etc. Entretanto, praticamente todos os detalhes são puramente fictícios. Não sabemos quando, onde e como Engels encontrou Mary Burns. Não temos conhecimento nem mesmo de uma única fotografia dela. A história contada pelo filme, de que Mary trabalhava em uma fábrica da qual o pai de Engels era parcialmente proprietário não passa de um bom conto-da-carochinha. (Aliás, o pai de Engels nunca nem dirigiu uma fábrica na Inglaterra, ele residiu a vida toda na Alemanha).

Sem dúvida, quando se quer produzir uma narrativa cinematográfica cativante, é preciso se valer de tais artifícios, é necessário inserir falas e montar cenas puramente fictícias para colocar determinados temas em evidência. Em certa medida, pode se dizer esse tipo de procedimento como tal é inerente a qualquer adaptação da matéria histórica em forma fílmica. No entanto, a forma pela qual certas coisas foram postas em evidência acabaram deixando de fora um dos aspectos, a meu ver, mais fascinantes da figura de Marx. Vejamos.

Quando, no filme, Marx aparece pela primeira vez discutindo com o conselho editorial da Gazeta Renana e exigindo uma linha mais radical contra o governo prussiano, a polícia já está esperando do lado de fora, batendo à porta, e finalmente prende o conselho inteiro do jornal. O problema não é nem que esse episódio não tenha nunca de fato ocorrido (o jornal foi censurado e finalmente fechado pelo governo, mas ninguém chegou a ser preso). O problema é que já nessa cena inicial, o muito jovem Marx aparece retratado como um lutador radical contra as autoridades prussianas, que por sua vez revidam sem dó.

A história verdadeira não é tão simples, mas é muito mais interessante. A Gazeta Renana foi fundada e financiada pela burguesia liberal da região do Reno e, na medida em não se tratava de um jornal católico, o Estado prussiano (que era protestante) tinha até certas simpatias pela publicação. Em 1842/43, Marx era um liberal e não um comunista. Nessa época, ele não era um oponente fundamental ao Estado prussiano. Em seus artigos, ele buscava demonstrar como o Estado prussiano, na condição de Estado moderno esclarecido, deveria agir. Foi somente depois da Gazeta Renana ter sido fechada que Marx começou a questionar sua posição anterior. Além disso, as autoridades prussianas dessa época também não eram tão hostis a Marx quanto o filme insinua: depois de terem fechado a Gazeta Renana, elas inclusive entraram em contato com ele e para lhe oferecer um cargo (oferta que Marx, aliás, recusou).

Para mim, um dos aspectos mais fascinantes da personalidade de Marx é essa radical disposição para aprender e para rever conceitos anteriores à luz de insights novos. No filme, esse aspecto acaba sendo reduzido a uma visão muito simplificada: o gênio, Marx, que sempre se manteve firme no mesmo caminho – o correto –, e que nunca teve de superar alguma ideia anterior questionável. Quando, no filme, Marx encontra Proudhon em 1844 pela primeira vez, ele já o critica com argumentos que, na realidade seriam usados apenas em 1847 na Miséria da filosofiaO filme apresenta Marx como teoricamente superior a Proudhon logo no primeiro encontro dos dois. No entanto, no início de 1844, Marx na verdade o admirava justamente porque nessa época Proudhon tinha um domínio maior de teoria econômica. Antes de Marx se tornar capaz de criticar Proudhon, ele teve de aprender muito com ele.

A maneira pela qual o real desenvolvimento intelectual e político de Marx passa ao largo do filme se torna muito clara na cena em que Marx e Engels se encontram em Paris na casa de Arnold Ruge. Marx reprova Engels e explica o porquê: quando eles se encontraram em Berlim no salão de Bettina von Arnim, Engels falava do comunismo como se ele havia o inventado. Esqueçamos que Marx deixou Berlim em abril de 1841 e que Engels chegou à capital alemã apenas em setembro de 1841, de forma que esse encontro nem poderia ter ocorrido. O ponto importante é que em 1841 o comunismo não era sequer uma questão para Marx, tampouco para Engels. Além de não serem de forma alguma comunistas na época, eles nem debatiam teorias comunistas naquele momento.

Em todo caso, de uma forma geral, trata-se de um filme bem legal, que certamente pode inspirar as pessoas a aprenderem mais sobre a vida e obra de Marx e Engels. Já isso é um tremendo mérito que devemos apreciar. Então, aproveite o filme, mas não deixe de ler sobre a vida e a trajetória intelectual e política de Marx!

***

Michael Heinrich é cientista político, matemático e biógrafo de Marx. Foi professor convidado de ciência política na Universidade de Viena e na Universidade Livre de Berlim. Atualmente é professor de economia na Universidade de Ciências Aplicadas de Berlim. Editor da PROKLA (Jornal da ciência social crítica) e do site Oekonomiekritik, participa do projeto MEGA 2, um monumental esforço internacional visando à publicação das obras completas de Marx e Engels. É autor, entre outros, do prefácio à edição da Boitempo do Livro II de O capital, de Marx e dos livros Crítica da economia política: uma introduçãoUma introdução aos três volumes d’O capital de Marx. Em 2018 a Boitempo publicará o primeiro volume de sua monumental biografia intelectual e política de Karl Marx: Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna – ambicioso projeto que comportará ao menos três volumes ao todo!

 

Fonte: Blog da Boitempo.

1 COMENTÁRIO

  1. Caro Michel, eu tenho algumas dúvidas quanto a Mary Burns – os documentos dizem que ela não só existiu como foi companheira de Engels durante 20 anos sem oficializar a união e depois de sua morte, a irmã Lizzy casou-se com ele também, Aqui tu podes ver fotos das duas,
    https://alchetron.com/Mary-Burns Jovem
    https://notasperiodismopopular.com.ar/2018/03/07/mary-burns-mucho-mas-companera-engels/ Mary com Engels e a foto de sua irmã https://shelflife.cooklib.org/2015/12/22/pick-of-the-week-mrs-engels-by-gavin-mccrea/
    Quanto ao fato do pai de Engels nunca ter saído da Alemanha, não significa que ele não tenha tido uma fábrica na Inglaterra. Com a chegada da Revolução Industrial na Inglaterra acredito que era natural ricos explorarem esse novo advento, com as máquinas de vapor, já que a da agricultura se extinguia, até onde eu entendo é que ele enviou seu filho para aprender sobre, e acredito que desta ida dele para lá, surgiu o romance entre a operária e o moço, não enxergo nada de carochinha neste ponto.

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