Para Dai Sombra.
Este texto está extraído do artigo dirigido à Nova Primavera Internacional, do Partido dos Trabalhadores.
“Erros só os novos; repetir os velhos não vale” (Gilberto de Carvalho, na Nova Primavera).
Perigos, os mais subjetivos. É preciso estar atento e forte.
Tanto Gramsci quanto Umberto Eco já alertaram que a existência do Fascismo não pressupõe, necessariamente, a existência ou inexistência de um partido fascista. É – também! – subjetivo.
Por outro lado, você pode até não gostar de sentir-se um privilegiado. Mas jamais poderá negar o quanto o Privilégio te beneficia (fazendo parte de um imenso e complexo sistema de seguir beneficiando somente quem ele, o tal Privilégio quer) em detrimento de uma imensa maioria que, historicamente, se prejudica com ele. Beneficia fascista e antifascista. De forma diferente.
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Ele, o danado do Privilégio, se protege de si mesmo, escondendo-se dentro de você. E escondendo-se até de você mesmo. É a forma que ele encontra para, escondido, sobreviver.
Além disso, como no exemplo do coronavírus, o Privilégio está em toda a diversidade de indivíduos. O fascista adora que ele exista também no antifascista. Assim, ele “se justifica”.
Sabe aquilo de “foi-sem-querer-querendo”? No fundo, você acaba gostando dos benefícios que o Privilégio te traz, por mais que você o condene publicamente. E morre de medo de perdê-lo.
Mas, vamos falar de militância brasileira no exterior. Paralelamente à questão do Privilégio.
A militância no Brasil, felizmente, empodera. É terapêutica, para quem abraça a oportunidade da participação cidadã. Mas qual a relação entre oportunidade e privilégio? Haverá contradição?
No exterior, principalmente pra quem nunca sofreu discriminação no Brasil – principalmente os Homens Brancos, como eu – dói muito o sofrer preconceito pela primeira vez. Aquilo que para uma Mulher Negra, infelizmente, ela já sofre desde que era criança. E torna-se forte, ela, para não acostumar-se nunca. Porque é sempre melhor não acostumar-se com a crueldade.
Ser discriminado como imigrante na Europa (confundido com um árabe?!) me fez questionar todas as vezes na minha vida que eu tenha sido ou não, preconceituoso no Brasil. Foi um momento válido por anos de formação, aulas, academia, etc. Essa questão nos empodera mais ainda. O tapa na cara de sentir-se discriminado pela primeira vez nos fortalece. Mas até onde?
Até onde essa dor se transforma na dor coletiva, histórica, em que até mesmo já colaboramos?
Não há bem sem mal. Nem maniqueísmos. No hay mal que por el bien no venga. O perigo é a soberbia. A presunção, a pretensão, o convencimento, presente em mim mesmo. A fala que supera a escuta. “Brasileiro no exterior fala muito e escuta pouco”, me disseram, ontem mesmo! Talvez por isso, eu gosto tanto de escrever. Escrever é um falar e calar ao mesmo tempo. Convida sempre ao diálogo e à interlocução. Escrever é mais que tudo refletir. É pausa. Fundamental.
Há sempre o risco de sermos inoculados pelo vírus (histórico, colonialista) do falar muito e escutar pouco. A proximidade com a herança (atual!) dos colonialistas, presente até mesmo nos nossos melhores amigos e vizinhos europeus, teria nos contaminado, nem que seja somente um pouquinho? Foram séculos de história de achar que a mulher pobre, sertaneja, lutadora, sabe menos do que eu (homem branco de classe média) que tive a oportunidade de migrar pra Europa? Até onde você já se questionou sobre essas coisas? Qual a sua empatia?
Não é hora de falar somente de coisas agradáveis. Principalmente quando a fome da tal mulher, mencionada na frase anterior, é uma realidade, hoje, ontem e amanhã.
Eu não. Eu já tomei um bom café-da-manhã. Logo almoçarei e jantarei bem. E você? Ela… não!
É hora de ser mais freireano do que nunca. É hora de falarmos fixamente olhando para o nosso espelho. Coerência era algo sagrado para Paulo Freire. Não maculemos isto que não é somente um conceito. Ou é práxis ou não é. Não é difícil definir coerência: é fazer aquilo que se pensa.
Mas, muito cuidado: o pensar pode ser diferente do sentir. E eu priorizo o sentimento.
Não existe luta antifascista somente de fora pra dentro. O inimigo pode ser interno também.
Para os homens, que ainda estão em maior ou menor processo de desconstrução de machismos dentro de si mesmo, o ponto anterior, o Poder (mais que o empoderamento) aumenta. É o privilégio. O assunto mais desagradável do momento. Principalmente para a luta antifascista. Até porque pra fascista, é como se estivéssemos falando grego. Com esse, perda de tempo…
E por isso mesmo é o refletir sobre todas as merdas do privilégio, o que mais vai nos transformar. Para melhor. Claro. Porque no Sertão já se diz: quem cresce pra baixo é rabo de cavalo.
É hora não somente de inverter as pautas, como a gente sempre disse que ia fazer (e, de fato, eu creio que, Nesse Sentido, NUNCA fizemos). Sejamos sinceros: estávamos nos auto enganando. Não estou falando de inverter as pautas de prioridades da política econômica de esquerda, pois essa sim, eu creio que o PT começou bem a fazer. Mas porque não foi suficiente? Eu sei que há outros diagnósticos e infinitos condicionantes. Mas eu quero falar, TAMBÉM, sobre ESSES condicionantes. É hora de falar do que dizíamos que não sabíamos, mas que na verdade era aquilo que a gente – por algum motivo – não QUERIA falar.
Quantas vezes, no meio de uma discussão, o interlocutor te dispara: “você não está me entendendo?!”. Entendi sim. Mas não concordo. O que é bem diferente. E é exatamente o que você, interlocutor, não quer escutar de mim. A dissonância é possibilidade de (nos) reconstruir.
Não é hora de falar somente de compatibilidades, entre o classismo e o feminismo, entre o classismo e a luta antirracista, entre o classismo e as pautas indígenas, entre as questões de classe e as questões LGBTQIA+. A compatibilidade existirá, quando as oportunidades também o forem. Mas não são. E de quem é “a culpa?”. É do Privilégio. E o que é o Privilégio? Ele pode estar em Você! Bem escondidinho ou menos escondido. Mas pode estar. Lamentavelmente.
Agora é hora de trazer tudo isso, tudo o que não foram as pautas tradicionais para a esquerda. Trazer estas Novas Velhas pautas Pra Frente De Tudo. Eu disse “pra frente”, e nem mais “ao lado”! E se não o trouxemos até agora, eu não sou ninguém para afirmar absolutamente nada. Quem sou eu? Eu só quero somar-me às perguntas mais incômodas. São elas que nos farão avançar. Esta é, para mim, sim, uma excelente oportunidade. E a boa notícia é que – olhe, com sinceridade e sem hipocrisia ao seu redor – estas incômodas questões não são somente minhas.
Mas, Flávio, nós já temos tanto problema lá na rua, contra os fascistas!
Sim. Mas é compatível. Lembra…? Coerência. Que o centenário de Paulo Freire nos sirva…
Para os não negros e não indígenas e não integrantes da comunidade LGBTQIA+, temos que assumir de cara o desafio de falar dos Privilégios. Não se muda o que não se admite. E as ruas do Brasil (mais da metade da população no Brasil, faz parte das comunidades que a maioria da Emigração Brasileira NÃO representa) estão demonstrando o caminho, e os erros estão sendo jogados na nossa cara. Só não vê quem não quer, por causa do véu do Privilégio, poderosíssimo.
Ele, o Privilégio, operou subjetivamente, de forma sorrateira. Eu tenho certeza que você, alguém, não gostará nada de escutar falar sobre isso. Dói sim, eu sei. Em mim também doeu. Doer em mim me fez bem, enfim. Cura melhor o remédio que arde (lembro sempre minha avó).
Há ainda uma questão generacional. Os que fomos militantes no Brasil, antes de migrar (principalmente os dos cabelos brancos ou pintados), nos alimentamos, subjetivamente, positivamente, também da militância. Nós gostamos e nos beneficiamos desse gostar, por mais que a gente diga que está cansado e que não tem tempo e fique se martirizando e chorando nossos problemas (que, sim, existem). A gente não sai dizendo pela rua o quanto a militância tem nos ajudado a superar, ou contornar (ou pior, esconder) os nossos problemas pessoais. O não cuidarmos de nós mesmos com a desculpa (pra gente mesmo) que estamos nos entregando a cuidar “do outro”. Não se cuida do outro sem cuidar de si mesmo. Faz anos que já sabemos disso. A filosofia já jogou na nossa cara, anos e anos atrás. Mas não é fácil admitir coisa assim.
Temos que assumir esse sentimento: a militância nos fez bem, nos faz bem e, portanto, nos empodera, nos dá um “certo poder”. E nisso tudo, o Privilégio opera e joga um papel imperceptível para muitos. Participa da reunião nos dias de semana, tem dinheiro pra viajar pra encontros, teu aluguel tá pago? Não se martirize: felicidades! Mas, pelo menos assuma que, nesta crise financeira interminável, esta não é a realidade da maioria. A Maioria Merece Mais.
Mas, Flávio, e agora eu devo entristecer, me retirar, me deprimir, me culpabilizar por isso?
Não. Não é disso que se trata. A Nova Primavera só está te pedindo o mínimo (que te fortalecerá para seguir sendo Mais e Melhor): que você reconheça, admita e siga em frente. E se você considera mínima a base do Teu Privilégio, jamais esqueça que ela estrutura a imensa maioria das desigualdades e injustiças sociais que o mundo atravessa. A raiz é a mesma, infelizmente.
A piadinha machista e a ex-esposa assassinada estão muito mais relacionadas ao teu privilégio patriarcal do que você imagina. Não se trata de Culpa e sim de Responsabilidade. Não do que você é ou deixa de ser, mas do que você faz ou fará (Des-Condicionando do passado ou não).
Nos ajuda esse processo de Re-Conhecimento. Porque, no fundo, você já sabe. Isso não é ruim. Nada é bom ou ruim na vida, definitivamente; o importante é o que a gente faz ou deixa de fazer com essas coisas. O mar tá bravo? Navegar é preciso.
Por outro lado, devemos permitir que fale mais, sem condicionantes, principalmente os mais jovens, que deveriam ser – coerentemente! – o motor das Novas Primaveras. Assumir isso pode doer também nas pessoas que sentem que dedicaram toda a sua vida por estas lutas.
Sabia que aquelas pessoas que tem filhos e conflitos intergeneracionais dentro de casa, seriam aquelas com maior propensão a reconhecer os próprios conflitos internos (que são filhos senão nossas contradições lançadas na nossa cara, como um maravilhoso espelho?)?
E, nesse sentido, qualquer recém chegado a Barcelona, não merece a minha arrogância de dizer-lhe que cale e escute os Meus Conselhos, “do alto dos meus 15 anos de já morar aqui”.
A novidade da sua chegada (claro que primeiro se abrindo a reconhecer o território onde pisa) pode ser uma luz a desvendar minhas melhores convicções. Estar convicto pode ser (ou não) um dos piores erros que podemos cometer. Este texto trata de possibilidades. E não de convicção.
Tem mais. A distância e o passar do tempo proporcionam um paradoxo: uma fala do exterior, pelo caráter colonialista na história do Brasil, passa na frente de 300 falas de militante de movimento social brasileiro. Aprendi isso na FIBRA, aqui no exterior, quando mandei uma foto de um jornalzinho catalão sobre uma manifestação antibolsonarista e uma importante editora a publicou, passando na frente de todas as fotos de todas as imensas passeatas no Brasil. E não é que a foto fosse melhor que nenhuma. Eu fui fotógrafo profissional, no Brasil, durante alguns anos e sei um pouco do que eu falo. E não é disso que se trata. É o tal complexo de vira-lata, operando, como tudo nesse texto, da forma mais subjetiva. Outra vez: Meu Privilégio de morar fora, na Europa, operando sorrateiramente no imaginário da minha querida editora. Na Muribeca, periferia do Recife, Jones Manuel leu muito mais livros do que eu. Entendeu?
É hora de transformar qualquer incômodo em oportunidade.
Aproveitar não é somente tirar proveito. É usar o privilégio, por exemplo, contra ele mesmo. Mas com MUITO cuidado para novamente não se auto enganar. O que seria facilíssimo.
O Paradoxo da Ilha, de Saramago, é uma das maiores virtudes da militância no exterior: quanto mais nos distanciamos da ilha, mais a reconhecemos, e a desvendamos, dizia o grande escritor. Com uma perspectiva nem melhor nem pior, mas muito necessária – o ver a ilha de forma “simplesmente diferente” de quem segue nela.
“Renovar os métodos, as técnicas e as estruturas”. Está no próprio documento-base da Nova Primavera do PT, que eu li com atenção, carinho e respeito. E por isso o felicito. Muito.
“A proposta é criar um processo de massa, para um partido de massa”. Quem é a massa brasileira? Qual é o diagnóstico? Quem é hoje o movimento social brasileiro? Quem é a famosa maioria? Freire novamente. Uma boa pergunta pode valer mais que mil respostas.
Segue o texto-base… “Mais que a disputa institucional partidária, reconectar de forma definitiva com os movimentos sociais brasileiros… Ler a realidade e pensar a sua transformação”.
A oportunidade é realmente maravilhosa, apesar dos pesares.
“Reflexões permanentes sobre a prática política”, nos exige o documento-base da Nova Primavera.
Pedagogia da Pergunta, freireana, não somente gritando da porta de casa pra fora. É hora de esperançar achando que a melhor petista é aquela que AINDA nem assim, petista, se considera.
Sem deixar de insistir na frase do início do texto: é preciso estar atento e forte.
O único risco? O medo.
Medo de quem fala o que a gente não quer ouvir. Medo dessas pessoas que subjetivam tanto a política, deixando de lado todos os falsos racionalismos. Medo dessa gente que fala muito em sentimentos. Como se fosse uma estratégia meramente individualista, psicologista, o que não tem nada a ver. Aprendi, na sociologia, a refletir sobre o indivíduo coletivo. Me importa!
Felizmente, temos antídoto. Nenhum partido no Brasil, criou jamais um pequenino slogan que resume e que seria capaz de fechar (ou de abrir todo esse texto). Tem frases que resumem o mundo. A minha é uma: Sem Medo de Ser Feliz.
Agradeço à Maria do Rosário, Vivian Farias, Taís Maciel, Gilberto de Carvalho, cujos nomes aparecem no texto-base. E a todas as pessoas que colaboraram. Com sincero orgulho e prazer.
“Ganhar pra quê? Pra fazer mais e melhor” (Gilberto de Carvalho, referindo-se ao Lula, em palestra para catadores de lixo em São Paulo, ao dizer, Lula, que o seu Principal arrependimento é não ter feito mais pelos excluídos e pobres). Demos nomes e sobrenomes a esses excluídos e pobres, entre os mais pobres. É mulher. É negra. É periférica. É LGBTQIA+. É Índia. É quilombola…
É isso, para mim, o que mais importa agora. E sempre, de hoje em diante, por favor.
Aquele abraço.
Flávio Carvalho é sociólogo, escritor e participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya.
@1flaviocarvalho, @quixotemacunaima. Sociólogo e Escritor.
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