Vaga Carne: “Sou uma força de resistência enquanto artista”, defende Grace Passô

 

Imagem: Grace Passô (Reprodução)

Por Bruno Carmelo.

Vaga Carne (2019) nasceu como peça de teatro. Grace Passô interpreta uma voz que penetra vários corpos, enquanto faz descobertas sobre a sua própria identidade. Mas como interpretar uma voz? De que maneira esta história pode se desenvolver? E como levar o monólogo tão complexo à linguagem do cinema? A resposta se encontra no média-metragem dirigido por Passô e Ricardo Alves Jr.

Depois de passar pelos festivais de Berlim e Tiradentes, o filme chega ao público nesta quinta-feira, 14 de maio, através dos sites da Embaúba Filme e da Spcine Play. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com a atriz e diretora sobre os desafios deste projeto, as dificuldades de trabalhar com cultura num país polarizado e o polêmico projeto de série sobre Marielle Franco, contra o qual se manifestou publicamente nas redes sociais:

A proposta de interpretar uma voz representa um grande desafio. Como dar corpo a essa personagem?
Desde o início, o meu tesão por essa ideia passava pela dificuldade: entender como construir artisticamente a situação de uma voz que invade um corpo. Sempre me interessei pelo estranhamento que essa situação me trazia. Era tão estranho que eu intuí que ela me obrigaria a ser muito inventiva para dar conta dela. Gostei disso. Desde o início, quando se fala numa voz que invade um corpo, eu imaginava ações, gestos e movimentos não harmonizados com o corpo. Esta pororoca entre falar e fazer é extremamente metafórica em relação à humanidade e aos nossos tempos. A situação de uma voz que tenta mover esse corpo, sem se conectar harmonicamente com ele, foi o que sempre me agradou.

Como foi o processo de transportar este conceito do teatro ao cinema?
O desafio foi pensar através dos elementos cinematográficos. A gente precisava pensar a peça de teatro enquanto texto, partindo dele para alçar outros voos por meio da linguagem cinematográfica. Precisamos entender como usar a dimensão sonora, já que a personagem principal é uma voz. De que maneira o cinema traria outra dimensão ao som? Sempre conversamos sobre isso. Era preciso dimensionar aquela narrativa numa situação de cinema.

Qual é o papel, no filme, do público negro que observa esta voz?
São vários papéis. Primeiro, aquele público representa uma reunião muito simbólica para mim. Tem pessoas do filme Temporada (2018), que fiz há pouco tempo, tem o próprio André Novais Oliveira, além de outros parceiros antigos e novos. Este público diz muito sobre a minha vida artística. Ao criar um público, a gente cria o lugar da escuta e da observação. A partir do momento que o personagem é a voz, a evocação da escuta e da atenção se tornam primordiais para a gente sentir aquela história. O público concretiza a escuta. Ao mesmo tempo, Vaga Carne fala sobre um corpo tentando construir sua identidade social. Então o corpo não é apenas o meu.

A existência do público multiplica a carne de que fala o texto, modificando a dimensão do corpo. A carne que vaga não é apenas minha, mas também daquelas pessoas que estão assistindo. Existe um jogo no ato de olhar para a cena, para a atriz. Este é um jogo de projeção com o público, que são todas pessoas negras por um motivo. Este é um dos poucos elementos de identificação para ela ao longo da trama. Apenas no final do filme a voz descobre algumas coisas sobre si mesma e sobre sua carne, em especial o fato de ser negra. Por isso, oferecemos uma retroprojeção com aquele público, entre os que eles são e o que podem ser.

As vozes ao final expandem a ideia de outras carnes.
Falamos de uma voz interrompida. Não existe uma determinação do que seria esta interrupção, mas a voz, em determinado momento, para de falar. Por isso existe uma coleção de vozes de mulheres que, de formas diferentes, foram interrompidas. Entra em cena uma textura da realidade, exigindo do espectador que articule significados entre a peça e o nosso cotidiano.

Vaga Carne tinha previsão de estreia nos cinemas, algo raro para um média-metragem, em conjunto com Sete Anos em Maio (2019). A pandemia alterou o lançamento, mas ambos serão disponibilizados juntos. Como enxerga a relação entre os dois filmes?
Essa foi uma ideia da Embaúba, como forma de entender o formato do média-metragem dentro do circuito comercial. Às vezes aparecem algumas ideias tão boas que ficamos nos perguntando porque ninguém tinha pensado nisso antes. Essa ideia foi uma delas: embora isso já tenha acontecido antes, não é um formato comum de distribuição. Mas faz todo o sentido proceder assim: a sociedade está tão acostumada a mudar subitamente de canal, de conteúdo, que pode ver uma obra de quarenta minutos, mudar a chave e ver outra obra de canal de 40 minutos – e depois ver um vídeo no YouTube, parar, encontrar outro vídeo… Este ritmo está muito assimilado pela nossa sociedade.

São dois filmes muito diferentes sendo exibidos no mesmo lugar, mas hoje isso faz todo o sentido. Em comum, eu, o Ricardo Alves Jr. e o Affonso Uchôa somos de Belo Horizonte, e pertencemos à mesma geração de artistas. Existem dois conceitos nestes filmes: eu proponho algo mais ficcional, enquanto o Affonso traz elementos de experiências reais dentro de uma ficção. São duas figuras narrando verdadeiras sagas que aconteceram consigo. Elas buscam descrever coisas muito difíceis de falar. Os dois personagens buscam criar imagens complexas através da narração.

A cultura no Brasil tem sofrido diversos ataques, incluindo ameaças de cortes no financiamento. Como devemos reagir? Enfrentando o atual governo, ou buscando uma forma de diálogo com ele?
A gente nunca vai parar. Nunca parou, nem vai parar. Sempre vai existir o processo de criação dentro da arte. Nos tempos que vivemos, ao mesmo tempo em que criamos, podemos nos associar a movimentos para inverter esta lógica e cobrar o que nos é de direito. O exercício cultural e criativo constitui um direito da sociedade e do operariado artístico. É possível reagir das duas maneiras ao mesmo tempo. Eu continuo trabalhando com arte. Ao trabalhar, não deixo de exercitar o meu ponto de vista crítico em relação ao que vivemos hoje, enquanto opero objetivamente uma resistência aos abusos deste governo contra a cultura.

Participo de rodas de debates e me posiciono publicamente em relação a questões que me interessem. Eu sou uma força de resistência enquanto artista, e continuo trabalhando com isso. Parar é o privilégio de alguns. Quem pode se dar ao luxo de parar? Poucas pessoas têm essa possibilidade. Faço o que a maioria das brasileiras faz: penso na roda enquanto ando em cima dela. Esta é uma das questões dos sistemas que nos controlam: eles encontram uma maneira de nos deixar sem tempo para pensar, nem agir. Esta também é uma armadilha do capitalismo, do neoliberalismo. Cria-se uma estrutura onde se parece possível parar. Mas temos que fazer tudo isso ao mesmo tempo: eu me associo a lutas, enquanto também faço esta arte existir.

Grace Passô em Vaga Carne

Vaga Carne cita Marielle Franco no final. Você tem se posicionado de maneira muito potente contra o projeto da série sobre Marielle dirigida pelo José Padilha.
Pessoalmente, não me interessa se o projeto vai existir ou não. O que me interessa sobre ele é conseguir escancarar o fato de que as características desse projeto são recorrentes no cinema nacional, e são exemplares do modo como a arte reage às complexas estruturas coloniais do nosso país. Muitas coisas em torno desse projeto são difíceis de engolir porque não dizem respeito apenas a esse projeto, e sim a uma estrutura opressora. Ao mesmo tempo, ele escancara como determinados projetos se colocam de maneira falaciosa em relação ao racismo estrutural do país.

Às vezes tenho vergonha de falar tanto sobre Marielle. Nunca falo dela sem lembrar que existem famílias e pessoas ligadas a ela afetivamente, que precisam lidar com essa história trágica. Existe uma apropriação e uma exploração muito grande da trajetória dela. Quando essa história é atingida, e comprada por forças tão coloniais, ela acaba se repetindo. O assassinato se repete para a gente, para a sociedade: a exploração volta a acontecer. Hoje a gente vive uma polarização muito complexa em relação ao povo brasileiro. Isso leva muitas pessoas a acharem que existem apenas dois setores na sociedade: a esquerda e a direita. Situações como essa, sobre o projeto, servem didaticamente para a gente entender que o Brasil é muito mais complexo do que isso. Nosso pensamento não pode se estagnar na criação de um inimigo: nossas ações, entre os nossos, precisam ser refletidas. Elas também ferem.

Aliás, precisamos pensar quem são os nossos. Existem muitas lutas que se articulam e se atravessam dentro dos setores da esquerda. Não podemos criar uma falaciosa imagem de que estamos todos no mesmo lugar. Esta história obriga algumas de nós a reviver a situação trágica de exploração de uma pessoa, e do que ela significa para a gente. Recebi muitos telefonemas de pessoas que ficaram feridas com este projeto. Decidi escrever a respeito por causa disso. A história da Marielle é de um simbolismo imenso para o país e para as pessoas negras. Muitas pessoas que não são negras e não são periféricas não sabem disso, porque não estão acostumadas a se deslocarem do centro do protagonismo social.

Marielle representa muitas pessoas negras, pobres e periféricas no Brasil. São pessoas que lutam muito para furar uma estrutura racista, junto de suas famílias, e conseguem entrar em lugares de poder que tradicionalmente as extinguem. Quando chegam lá, são retiradas – e no caso de Marielle, ela foi retirada através de um assassinato. Ver essa história ser explorada numa perspectiva de quem não entende isso, de quem não faz parte disso, nos fere muito. É uma nova forma de interrupção. Toda revolução brasileira é ceifada: nossa história é cheia de revoluções interrompidas. Isso já faz parte do nosso imaginário. Este projeto representa mais um modo, através da linguagem capitalista, de interromper Marielle e o fortalecimento das lutas sociais brasileiras.

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