Por Cristiane Sampaio.
A queda na cobertura vacinal do Brasil, que ganhou destaque na atualidade, pode fazer o país reviver surtos de doenças antes tidas como controladas, assim como ocorre nos últimos tempos com os casos de sarampo e febre amarela.
O alerta é do pesquisador e professor Luiz Carlos Dias, do Instituto de Química da Universidade de Campinas (Unicamp).
Ele, que também é membro da Academia Brasileira de Ciências e integrante da força-tarefa criada pela Unicamp para o combate à covid-19, ressalta ainda que é necessário mobilizar e sensibilizar toda a sociedade para a compreensão do que significam as vacinas e os seus benefícios.
“Respeitar a vacinação é uma questão de responsabilidade social. Ela é coletiva, é uma questão de empatia, de respeito à vida”, lembra o professor, que conversou ainda sobre outros pontos relacionados ao tema, como o grau de segurança dos imunizantes, as etapas pelas quais passam uma candidata à vacina e a percepção pública que se tem da ciência no Brasil.
Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, Dias chamou a atenção para os riscos do movimento antivacina.
Apontada como um dos fatores que levaram à redução da cobertura de imunizações no país, a mobilização ganha fôlego em meio ao avanço da extrema direita, que, no Brasil e no mundo, tenta desacreditar a ciência e os pesquisadores.
“Precisamos realmente de todos neste momento pra que a gente possa combater esse movimento, que não é forte no Brasil, mas já vem crescendo, infelizmente”, afirma o especialista, ao realçar a importância de se ter a informação como arma contra o problema.
Confira a seguir a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Qual seria, na sua avaliação, o caminho pra gente superar o movimento antivacinas, já que nós estamos neste momento de avanço conservador, que traz consigo um forte discurso negacionista em relação à ciência e às suas possibilidades? A polarização política afeta essa disputa também, então, como poderíamos superar isso?
Luiz Carlos Dias: É preciso conquistar a confiança do público na ciência, na segurança e na eficácia das futuras vacinas. É preciso que a gente use todos os meios possíveis pra conversar com a população brasileira e mostrar a importância da campanha de vacinação.
Precisamos espalhar informações corretas, defender que a necessidade de vacinação é pra todos – pros amigos, pros familiares, pros seus contatos – e ajudar a combater a desinformação.
Isso não é um trabalho só dos cientistas, dos pesquisadores. Nós precisamos combater a desinformação, as mentiras, os discursos de ódio desses grupos obscurantistas, essas fake news, porque eu considero um enorme desserviço pra saúde pública isso que está sendo prestado pelos movimentos antivacinas e pelo negacionismo científico.
Então, nós temos que usar a tecnologia, as mídias sociais pra espalhar informações corretas, mantendo a população bem informada.
Há várias ações, mas é importante ter em mente que respeitar a vacinação é uma questão de responsabilidade social. Ela é coletiva, é uma questão de empatia, de respeito à vida. Nós precisamos de pessoas que multipliquem essas mensagens e as informações corretas sobre a importância da vacinação particularmente neste momento, em que a gente vê um crescente movimento negacionista.
Os números do Sistema Nacional de Imunização (Datasus) têm mostrado uma redução média de 48% na cobertura de vacinas como a tríplice viral e a poliomelite nos últimos cinco anos. Como o Brasil chegou a essa baixa?
Nós temos, infelizmente, observado uma queda histórica na cobertura vacinal de crianças em todo o país. Então, você vê que, pra 2019, após vinte anos, o Brasil observou uma queda muito grande na cobertura vacinal e não atingiu a meta das principais vacinas pra crianças de 2 anos. Isso pode estar relacionado a varias questões.
Uma delas, eu acredito, é o subfinanciamento das prioridades de saúde pública, questões logísticas, como aquisição e distribuição, ausência de campanhas de conscientização da população brasileira. Nós temos também observado uma falta de vacinas em todo o mundo.
As vacinas salvam 3 milhões de vidas por ano ou cerca de 5 vidas por minuto, então, elas são a nossa melhor ferramenta de saúde pública
Aqui no Brasil, particularmente, algumas fábricas foram interditadas, o [Instituto] Butantan está estudando reativar fábricas pra produzir a vacina pra difteria, tétano e coqueluche. E nós temos também o movimento antivacinas, que é muito perigoso, baseado no extremismo religioso, na instabilidade política, no populismo, nas fake news, e traz questões como segurança, que podem prejudicar também as campanhas de vacinação em massa e principalmente a confiança nas vacinas em países que têm esses problemas, e o Brasil é um deles.
Essa queda na cobertura vacinal também pode ter sido influenciada, em parte, pelo sucesso do Programa Nacional de Imunizações [PNI], visto que nós eliminamos algumas das principais doenças e a população pode pensar que elas não estão mais aí, mas estão, e também pela dificuldade de acesso das famílias aos serviços de saúde, principalmente pelos horários em que trabalham os postos de saúde.
Diante desse contexto, nós podemos registrar surtos logo adiante?
Nós já estamos observando isso, porque você vê que nós tivemos aí um abandono pra nove das principais vacinas. Até 2016 nós não tínhamos casos de sarampo no país, uma vez que a cobertura estava acima de 95%. Em 2017, já caiu pra 91% e nós já tivemos surto de sarampo, causando mais de 18 mil casos em 526 municípios e 23 unidades da Federação, inclusive com 18 mortes.
Isso é um dado muito preocupante. Nós precisamos trabalhar pra evitar essa queda vacinal, principalmente no momento em que estamos passando por esta pandemia. Veja como está o cenário mundial com a covid-19, que chegou e nós não temos medicamentos nem vacinas.
Então, você imagine como seria o nosso mundo da forma como o conhecemos hoje sem vacinas, mas com todas as doenças, como varíola, poliomelite, paralisia infantil, coqueluche, sarampo, catapora, varicela, caxumba, meningite, rubéola, tuberculose. Imagina como seria esse mundo sem vacinas pra essas doenças… As vacinas salvam 3 milhões de vidas por ano ou cerca de 5 vidas por minuto, então, elas são a nossa melhor ferramenta de saúde pública, junto com saneamento básico, água potável e esgoto tratado.
Estendendo um pouco esse assunto, as vacinas têm um grau de segurança, né. O senhor poderia explicar um pouco qual é o processo pelo qual elas passam até chegar ao paciente que vai receber aquelas gotinhas ou aquela injeção?
As vacinas são as responsáveis pelo aumento da nossa expectativa de vida, foram as principais responsáveis pela diminuição da mortalidade infantil e são, de fato, um marco na história da saúde humana. Elas salvam cerca de 3 milhões de pessoas por ano.
Na década de 1950, cerca de 10% das nossas crianças morriam antes dos primeiros cinco anos de vida. Doenças como sarampo, poliomelite, catapora e caxumba estavam controladas. A varíola foi erradicada em 1979, 1980, e ela matou 300 milhões de pessoas no século XX, então, elas são muito importantes.
As primeiras etapas [de desenvolvimento de uma vacina] envolvem aquilo que a gente chama de ensaios pré-clínicos, ensaios em cultura de células em laboratório. Depois, elas passam por ensaios em pequenos animais – roedores, ratos, camundongos – até chegaram em macacos.
Depois, se ela se mostra segura, porque segurança é um ponto extremamente relevante, ela entra naquilo que a gente chama de ensaios clínicos em seres humanos e temos fases 1, 2 e 3.
Se estamos protegidos de doenças – e várias já foram erradicadas –, é porque em vários momentos da vida nós tomamos as vacinas
A fase 1 envolve estudos em seres humanos sadios, que não têm a doença, porque a vacina serve pra prevenir a doença. Então, é um estudo pequeno em que se verifica a segurança da vacina. Depois, se ela se mostra segura, entra num estudo de fase 2, em que se estuda, por exemplo, a segurança, as doses necessárias pra induzir uma certa resposta imune de produção de anticorpos ou de células citotóxitas, que é aquilo que a gente procura, e ainda não se busca verificar se ela protege ou não a pessoa.
Mas, se ela se mostra segura, ela entra, então, na fase mais importante, a 3, que envolve milhares de pessoas de vários países, de diferentes faixas etárias, com comorbidades, sem comorbidades e que deem uma ideia daquilo que é a população real.
Então, se analisa a segurança. Uma vacina não pode causar efeitos colaterais graves, por exemplo, em uma pessoa em 1 milhão de pessoas. Ela tem que ser mais segura do que isso. Se causar algum efeito colateral, deve ser uma em cada 10 ou 5 milhões de pessoas.
E, se ela é eficaz pra proteger, ou seja, não basta ela produzir anticorpos de células citotóxitas. Ela precisa proteger a pessoa de ficar doente. Então, por isso é que se fazem esses estudos que a gente chama de “duplos-cegos” [tipo de método científico], randomizados, com grupo placebo, em que você coloca um grupo de pessoas recebendo a candidata vacinal, que ainda não é uma vacina, e um grupo de pessoas que recebem, por exemplo, um placebo, uma substância que não faz mal, mas que também não previne aquela doença, e aí a gente controla e compara.
Se um maior número de casos – por exemplo, de doenças – vier a ocorrer naquele grupo placebo comparado com aquele que recebeu a candidata vacinal, ok, essa vacina tem uma boa eficácia e vai proteger as pessoas. Se for segura e não causar efeitos colaterais muito adversos, ela entra em fase de aprovação e distribuição. Uma vacina só é aprovada em fase 3 se ela se mostrar eficaz e segura pra todos os grupos populacionais.
Então, a gente pode confiar nesse longo percurso que o senhor descreveu pra gente…
Pode e deve confiar e, se nós estamos aqui conversando e se os ouvintes estão aqui nos ouvindo, é porque em algum momento da vida cada um de nós já tomou várias vacinas. Nós tomamos várias desde quando a gente nasce porque, quando a gente nasce, a gente tem apenas uma imunidade inata que vem do leite materno. Depois, ela não nos protege das doenças. Se estamos protegidos de doenças – e várias já foram erradicadas –, é porque em vários momentos da vida nós tomamos as vacinas.
Falando um pouco sobre a covid-19, que hoje é alvo de uma série de pesquisas pra produção de uma vacina contra a doença, o senhor teme que a vacinação contra o coronavírus possa também ficar comprometida, se não se conseguir barrar esse movimento antivacina?
Olha, eu considero esse movimento absolutamente criminoso. Como eu falei, as vacinas são responsáveis pelo aumento da nossa expectativa de vida e esse movimento – que não é muito forte no Brasil, mas está crescendo, então, nós não podemos ignorar – precisa ser combatido.
Há várias teorias de conspiração – de que as vacinas causam alteração no DNA, de que o Bill Gates está envolvido, que tem chips nas vacinas, que elas causam autismo, contêm mercúrio, que são feitas com fetos abortados, etc. Tudo isso é mentira.
Vacinas não causam nada disso e, sendo aprovadas em fase 3, elas são seguras. Nós precisamos confiar. Vejam como está o mundo hoje neste caos porque nós não temos uma vacina pra covid-19. Então, é essencial construir, conquistar a confiança do público na ciência, na segurança e eficácia das futuras vacinas aprovadas em fase 3 contra a covid-19.
Pela primeira vez numa pandemia nós temos a oportunidade de usar a tecnologia, as mídias, as redes sociais pra levar informação numa linguagem simples, acessível, pra que a sociedade possa se sentir segura, bem informada e de forma a auxiliar numa resposta global de vacinação em massa, que é fundamental durante a pandemia.
Então, nós precisamos realmente de todos neste momento pra que a gente possa combater esse movimento criminoso antivacinas, que não é forte no Brasil, mas já vem crescendo, infelizmente, e a gente vem observando muito essa movimentação nas redes sociais.
Uma pesquisa realizada recentemente por uma instituição dos EUA verificou a relação entre a população de alguns países e a ciência e mostrou que 36% dos brasileiros não acreditariam na ciência nem nos cientistas ou mesmo no potencial científico do país.
O senhor chegou a dizer, logo depois, que vê essa estatística com ressalvas e que aposta numa atual melhora da percepção pública que se tem da ciência aqui no Brasil. De onde parte essa visão mais positiva desse cenário?
Parte exatamente desse trabalho que a gente vem fazendo de esclarecimento da população e da sociedade. Nós somos cientistas, mas o cientista hoje não pode mais ficar só nos laboratórios fazendo as suas pesquisas.
O cientista hoje precisa conversar com a população. Isso a gente tem procurado fazer através de atividades de divulgações cientifica, de esclarecimento da população, principalmente num momento como este, de pandemia, em que as informações chegam de forma muito deturpada pra sociedade através das diferentes mídias sociais.
Eu não concordo com essa pesquisa. Ela é muito ampla, tem vários aspectos que são muito interessantes. Particularmente, eu não concordo com relação ao país quando eles dizem que 36% da população brasileira não acredita na ciência e nos cientistas. Eu não concordo com isso. Esse número é muito menor.
As universidades e as instituições públicas brasileiras mostraram o seu valor pra sociedade durante esta pandemia
Existe um número, sim, que é significativo e que a gente não pode ignorar, mas mesmo antes da pandemia eu tenho certeza de que a população brasileira sempre acreditou na ciência e nos cientistas. Talvez ela não conheça muito sobre a ciência, talvez seja uma falha nossa, talvez a gente precise melhorar essa comunicação da ciência com a sociedade, porque a ciência salva vidas.
Se nós estamos aqui hoje, é porque nossa expectativa de vida melhorou em virtude de vários aspectos da ciência, e não só na área de saúde. Na área de saúde, [melhorou] muito em termos de medicamentos e de vacinas. Depois da pandemia, então, a ciência está na mídia todos os dias, e a gente observa realmente que nunca se falou tanto em ciência. E a população está torcendo por uma vacina.
Estava torcendo por um medicamento, e infelizmente nós não temos medicamentos eficazes contra o Sars-CoV-2, que causa covid-19, mas a população está torcendo por uma vacina, e vacina é ciência.
Então, as universidades públicas brasileiras, os institutos de pesquisa também realizaram varias ações com a sociedade, produzindo álcool gel, os kits de diagnóstico, as máscaras e equipamentos de proteção individual [EPI]. As universidades e as instituições públicas brasileiras mostraram o seu valor pra sociedade durante esta pandemia.
Então, eu tenho certeza absoluta de que a confiança da população brasileira na ciência, nas instituições públicas de ensino e pesquisa, nos cientistas e pesquisadores aumentou muito, por isso que eu não concordo com os dados dessa pesquisa. Acredito que eles tenham sido, de certa forma, equivocados particularmente no que diz respeito ao Brasil.