Unidos da Lona Preta, a luta fazendo o samba e o samba fazendo a luta

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Por Tiarajú D’Andrea – As escolas de samba são um patrimônio cultural brasileiro de inestimável grandeza. É central o papel que essas organizações cumpriram e cumprem na socialização das camadas populares e na luta pela afirmação das expressões culturais afro-descendentes em um país segregador e preconceituoso como o Brasil.

Com o passar do tempo, as escolas de samba sofreram algumas mutações que as impedem de cumprir plenamente o seu papel de polo articulador da cultura negra e da classe trabalhadora, mesmo que hoje ainda o façam parcialmente.

Podemos apontar pelo menos três elementos principais que incidiram nesse processo: o gigantismo dos desfiles, que empurra as escolas de samba à busca de patrocínios privados; a invasão das escolas de samba pelos setores mais abastados da sociedade, que passaram a incutir valores ligados ao individualismo, à disputa e ao espetáculo, em detrimento da solidariedade de classe e; a televisão, que transformou os desfiles em um produto privilegiado do mercado de bens simbólicos.

No entanto, mesmo com todas essas mutações, as escolas de samba seguem possuindo comunidades atuantes e que lutam pela afirmação de seu pertencimento a uma classe e a uma história. De certo, uma organização como uma escola de samba expressa o caleidoscópio confuso e contraditório do que é a sociedade brasileira.

Reverente às escolas de samba, mas não observando nelas a possibilidade de realizar uma crítica social mais aguda (ao menos na atualidade), eis que alguns sambistas-militantes fundam em 2005 a Unidos da Lona Preta, a escola de samba do MST, organizada na Regional Grande São Paulo.

Alguns de seus pressupostos são: aglutinar a juventude dos espaços do movimento; reunir diversos coletivos e movimentos pra batucarem juntos; fazer a batalha ideológica por meio da cultura popular; valorizar a identidade de classe por meio do samba; fortalecer as relações sociais; politizar a arte e impregnar a ação política de elementos genuínos da constituição cultural da classe trabalhadora brasileira.

Diferentemente de alguns setores da esquerda que execram as escolas de samba, taxando-as como uma expressão cultural que perdeu sua finalidade, a Unidos da Lona Preta observou o que elas tinham de melhor, tentando reproduzir no âmbito de um movimento social essa forma virtuosa de organização popular. Enfim, não se pode jogar a água do banho com o bebê junto…

Assim sendo, três são os grandes aprendizados que a Unidos da Lona Preta assimilou das escolas de samba e os passou a reproduzir.

O primeiro aprendizado se refere ao fortalecimento das relações sociais por meio da arte em um mundo cada vez mais individualista e competitivo. Uma escola de samba militante, com seus elementos estético-musicais, alimenta as místicas para as lutas cotidianas e reforça o pertencimento a um coletivo e a identidade de classe.

Um segundo elemento de aprendizado com as escolas de samba se refere ao fato de os desfiles serem ligados a uma temática. No entanto, na Unidos da Lona Preta os temas são escolhidos coletivamente e se referem às lutas históricas da classe trabalhadora, temas estes infelizmente cada vez mais raros nas escolas de samba tradicionais.

Sambas-enredo

Seguindo essa linha, em 2009 a temática escolhida foi a Juventude e a Revolução Cubana, derivando no samba “Avante Juventude”. Em 2010, o tema escolhido foi a aliança campo-cidade.

Em 2011, discorreu-se contra o agronegócio, os agrotóxicos e os transgênicos, derivando em um samba cujo refrão diz: “Comida ruim ninguém aguenta/ é veneno em todo canto/ mata gente e mata rio/ agronegócio, a mentira do Brasil”.

No final de cada um dos versos, é possível substituir a letra e cantar contra algumas grandes empresas do agronegócio. A ousada brincadeira tem efeito imediato nos ouvintes-lutadores e foi um acerto em termos de composição de samba- enredo. A esse tipo de inovação estética deu-se o nome de “samba camaleão”.

Para 2012, escolheu-se como temática os militantes anônimos que fazem a luta acontecer: as cozinheiras dos encontros; as educadoras das cirandas; os pintores de bandeiras; os motoristas; os que fazem trabalhos burocráticos; os que montam acampamentos, dentre outras tarefas pouco visíveis.

Em 2013, a Unidos da Lona Preta cantou sua própria história. Para 2014, escolheu-se um tema que une o passado ao presente: os 50 anos do golpe civil-militar e o que resta em nossa sociedade das estruturas criadas na ditadura.

A Unidos segue a linha dos sambas-enredo clássicos, que apresentam narrativas épicas subvertendo a história oficial. Foi seguindo essa linha que esse gênero musical se impôs no panteão da música brasileira.

Trabalhando coletivamente na composição do samba, alcançou-se patamares elevados em termos musicais e poéticos. Basta escutar os sambas da Unidos da Lona Preta para chegar a essa conclusão.

O terceiro grande aprendizado com as escolas de samba se refere à batucada. A experiência de fazer música de maneira coletiva é superadora. Uma orquestra percussiva é uma metáfora da vida em coletivo e da organização de um movimento social. Cada um toca o seu instrumento.

Do som que se extrai do toque da baqueta no couro expressa-se a individualidade de cada um. Só o indivíduo toca o instrumento, adequa-o ao seu corpo e se relaciona com ele. Há uma expressão pessoal nisso.

No entanto, o ritmista não pode fazer qualquer coisa com o instrumento. Para que seu toque tenha sentido, deve estar afinado com o toque dos demais ritimistas e com o andamento da batucada toda.

Só assim a massa sonora adquire uma harmonia capaz de dar sentido a todos os sons e levando em consideração a relação indivíduo e coletivo. O uno e o todo. Também neste ponto, a Unidos optou pela qualidade técnica, adquirida com muito ensaio. Uma batucada mal tocada fere a percepção do ouvinte, assim como desacredita o coletivo que a organiza.

Batuque

Mesmo que admitamos a (falsa) hipótese de que o samba tem pouco ou nada a dizer à nossa juventude na contemporaneidade, ao menos cada ressoar da batucada comunica aos ouvintes sobre um passado no qual estamos umbilicalmente conectados, que é nosso passado africano.

Batucar também nos lembra como estamos socialmente mal resolvidos, e como nossa sociedade atualmente possui um grande legado escravocrata. Então é esse passado reavivado sonoramente que toma às ruas para cumprir seu destino, que é superar-se por meio da luta, do compromisso, da necessidade de urgentes mudanças na estrutura social de nosso país.

O samba nos conecta ao passado, mas tem muito a dizer ao presente. Ao apresentar um “de onde viemos” às novas gerações, interpela o próprio presente a construir um futuro que leve em consideração as lutas e as lágrimas de um passado.

É desse modo que a batucada se faz atemporal, persistente como expressão cultural e resistente a modinhas, justamente porque passa ao largo delas e porque não apoia sua existência em estruturas mercantis que, por meio de um mesmo mecanismo, engendra e destrói as modas.

Dez anos

Em 2014, a Unidos completa dez anos de desfiles. Nesse tempo, fomentou a constituição do movimento das “Batucadas do Povo Brasileiro”, que, na cidade de São Paulo, inclui a Batucada Carlos Marighella, o Cordão Boca de Serebesqué, o Bloco Unidos da Madrugada, o Bloco da Abolição e o Bloco Saci do Bexiga. Sua forma de organização também influenciou o surgimento de outras experiências parecidas em São Paulo e no Brasil inteiro.

Com a retomada das ruas por parte da população no ano de 2013, foi possível verificar a eficácia de uma batucada nesses atos, tanto para criar unidade e fomentar o caráter festivo dos mesmos, como para encorajar e fortalecer os ânimos.

Uma batucada é a lembrança persistente do nosso passado, uma fértil construção no presente e um caminho a ser trilhado no futuro. Quando as batucadas do povo brasileiro tomam as ruas, os poderosos tremem…

Foto: Reprodução/Piratininga.org.br

Fonte: MST

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