Por Rafael Moro Martins e Guilherme Mazieiro,para The Intercept.
“ESTAREI NA PRAIA de Copacabana participando de um evento que une brasileiros dos quatro cantos do país. Evento onde, entre nós, não há qualquer diferença. Somos todos iguais”, falou Jair Bolsonaro já ao final de seu primeiro discurso de ontem, quarta-feira, em Brasília.
“Entre nós, não há qualquer diferença” é uma confissão do Brasil com que sonha o fascismo explícito de Bolsonaro, evidenciado mais do que nunca nos atos que sequestraram para ele e seus seguidores fanatizados o 7 de setembro de 2022, bicentenário da Independência.
Porque nós não somos todos iguais: o Brasil é multifacetado por onde quer que se olhe. Somos indígenas, pretos, pardos, brancos, católicos, judeus, candomblecistas, umbandistas, ateus, muçulmanos, evangélicos, agnósticos, kardecistas, (muitos e muito) pobres, remediados e, alguns poucos, ricos. Somos também filhos de mães solo, filhos de pais separados, temos famílias LGBTQIA+. Plantamos soja, mas também arroz orgânico e plantas comestíveis não-convencionais – e muitos de nós gostariam apenas de ter o que comer. Gostamos de carnaval, mas também de música sertaneja, de roqueiros carcomidos, de hip hop, de funk – ou de nada disso. Divergimos sobre o aborto: parte expressiva da sociedade defende o direito a ele nas situações previstas por lei. Muitos de nós gostaríamos de discutir a liberação das drogas. E votamos em muitos partidos e políticos diferentes.
É contra a diversidade da sociedade que formamos que o bolsonarismo se voltou ontem. Se o 7 de setembro de 2021, com os caminhões tentando invadir o prédio do Supremo Tribunal Federal, foi de golpismo explícito, o 7 de setembro de 2022 passará à história como um ato de fascismo escancarado.
Já havia muitos sinais de fascimo no bolsonarismo: do slogan eleitoral que copia o lema do integralismo, o fanatismo maniqueísta da “luta do bem contra o mal”, a visão do líder como a última salvação possível, a simbiose entre a figura do presidente e os símbolos nacionais, escancarada na apropriação da bandeira e das camisas da seleção brasileira de futebol pelo bolsonarismo.
Ontem, o presidente e candidato à reeleição sequestrou para si e os seus, apenas, a mais simbólica data cívica nacional. Mais grave, fez isso abusando do poder político, usando para promoção pessoal eventos de estado, montados e custeados com muito dinheiro público.
O que se viu não foram manifestações populares, mas sim manifestações de um corte muito específico do povo brasileiro. Ao longo da avenida Atlântica e da Esplanada dos Ministérios, vimos gente majoritariamente branca, na maioria homens, fanatizados pelo discurso sectário, agressivo e religiosamente apelativo de Bolsonaro. É gente que, por motivos diversos, sente saudades da ditadura militar, gostaria que o presidente acionasse as Forças Armadas para prender ministros do Supremo Tribunal Federal que tomam decisões que lhe desagrada, acha que deveríamos todos viver sob o seu credo religioso.
É para eles, e apenas para eles, que Bolsonaro governa. Ao implodir o Ministério da Cultura e entregar seus despojos a uma ex-celebridade adolescente, ao nomear para o Ministério da Educação uma sequência inédita de idiotas que variaram do fascismo explícito à conivência com pastores evangélicos suspeitos de corrupção em nome do presidente, ao colocar a Fundação Palmares na mão de um sabotador do movimento negro, o recado é explícito: só haverá governo para os que são iguais a mim. Para não falar de Funai, do Ibama, da sabotagem à compra de vacinas contra a covid-19.
Ontem, Bolsonaro deu um passo adiante: colocou o imaginário da formação nacional a serviço de sua causa – e em oposição a todas as outras bandeiras políticas. Não se trata mais, apenas, de fuzilar a petralhada, de mandar os vermelhos para a ponta da praia, mas – como ele mesmo já disse – de forçar a “minoria a se curvar à maioria ou desaparecer”.
Em democracias de fato, minorias jamais são obrigadas a se curvar a maiorias. Mas quantos são eles, os que adulam o presidente como vimos ontem pelas ruas do país? A julgar pelas pesquisas eleitorais, não são a maioria: 49% dos eleitores brasileiros ouvidos pelo Ipec no início de setembro dizem que não votariam de jeito nenhum em Bolsonaro; 57% desaprovam a maneira dele de governar, e só 30% acham que ele faz uma boa administração. Mesmo tendo a ajuda do Centrão para praticar o maior pacote de benesses pré-eleitorais da história da democracia brasileira, Bolsonaro não lidera as pesquisas em sua busca pela reeleição. A tentativa escancarada de comprar a simpatia do eleitorado mais empobrecido, até agora, não colou.
Não importa. O 7 de setembro do bicentenário foi só deles, ainda que pago por todos nós. Foi transmitido em rede nacional com estrutura e qualidade profissional pela Empresa Brasil de Comunicação, a EBC. Consumiu toneladas de combustível para aviões, helicópteros e navios de guerra servirem de cabos eleitorais de Bolsonaro. Em Brasília, o palco reservado às autoridades entregou lugar de destaque à figura tosca de Luciano Hang, o véio da Havan, apoiador e financiador do bolsonarismo. Ele desfilou com seu patético terno verde e foi aplaudido pelos manifestantes. Além de parecer um papagaio, fez o papel de um, pendurado ao lado de Bolsonaro durante o evento. Hang, alvo de investigação do STF pela suspeita de trabalhar por um golpe de estado, passou mais tempo sob os holofotes que o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, convidado de honra do evento em Brasília.
Do outro lado, brasileiros que não se alinham a Bolsonaro foram aconselhados a não sair às ruas. Em Brasília e outras cidades, há muitos anos movimentos sociais de esquerda realizam, todo 7 de setembro, o Grito dos Excluídos. O ex-presidente Lula, que era esperado, avisou que não iria. Temia-se que sua presença fosse vista como provocação – o Grito dos Excluídos na capital é realizado a uns dois quilômetros de distância da Esplanada dos Ministérios. Em Copacabana, casais gays, por precaução, desderam-se as mãos. Parece razoável? Não é, mesmo.
Com as ruas só para si, o fascismo bolsonarista deitou e rolou em Copacabana e em Brasília. Faixas pediram abertamente que não haja eleições, que adversários políticos sejam presos, que outros Poderes sejam enquadrados pelo presidente e que se faça uso das Forças Armadas em um golpe de estado. Em dado momento, o locutor que animava o trio elétrico do pastor Silas Malafaia lia os cartazes erguidos diante dele. Um dizia “Supremo é o povo”, uma provocação óbvia ao Supremo Tribunal Federal – e que escancara mais uma visão fascista, a de que a vontade da maioria pode se sobrepor à lei ou aos direitos de minorias. Foi a deixa para o locutor passar a repetir: “Supremo é o povo, viu, Xandão? Viu, Fachin?”. Mais claro, impossível.
Mas não haveria como encerrar esta análise do triste espetáculo do fascismo brasileiro do século 21 sem destacar o papel lamentável a que se prestaram as Forças Armadas brasileiras. Ao lado do Forte de Copacabana (de onde partiram os 18 tenentes que tentaram golpear o país em 1922), havia um palco armado para a solenidade militar que Bolsonaro mandou fazer para abrilhantar sua festa política exclusivista. É outro traço marcante do fascismo, afinal, o uso dos militares como ferramentas de demonstração de poder coercitivo do líder autoritário de forma a intimidar os inimigos internos: ou seja, quem quer que lhe faça oposição.
Sob o pretexto de celebrar o bicentenário da Independência, canhões dispararam salvas de tiros ao longo de todo o dia, no Rio. Na baía da Guanabara, navios e um submarino da Marinha se exibiam logo atrás de onde estavam ancorados os jet skis e lanchas da elite bolsonarista. Aviões da Força Aérea Brasileira e da esquadrilha da fumaça voaram, entretendo as hordas presentes em Copacabana. O problema é que não havia como distinguir o evento oficial do ato político de Bolsonaro – eles foram, como era previsível, uma coisa só. Pouco depois do meio-dia, quando um imponente helicóptero da Marinha sobrevoou a praia carregando uma grande bandeira brasileira, houve frisson na multidão bolsonarista. Do alto de um dos muitos trios elétricos, um locutor mandou que parassem de tocar o funk de louvor a Bolsonaro que jorrava das caixas de som e disparou: “Olha aí! A nossa bandeira jamais será vermelha!”.
Representadas pela ridícula figura do ministro Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira – em si mesmo uma caricatura perfeita, na aparência, no espírito e no hábito de falar aos gritos, do milico golpista de republiqueta de bananas –, as Forças Armadas se prestaram docilmente ao papel de animadoras da micareta golpista e fascista de Bolsonaro.
Pois a maioria do povo brasileiro, que não esteve em Copacabana ontem e – segundo 100% das pesquisas sérias – rejeita a continuação deste desastroso governo militar, sente vergonha e indignação diante de mais um papelão de suas Forças Armadas. E espera desde já que o ministro Paulo Sérgio, junto dos atuais comandantes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, da Marinha, almirante Almir Garnier Santos, e da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, seja condenado a passar a eternidade ao lado de tipos como Carlos Alberto Brilhante Ustra na lata de lixo da história.
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