Uma crítica à utilização do termo “neuroatípica”

Por Kumi Yamashita
Por Kumi Yamashita

Por Ana Beys.

De tempos em tempos surgem novas nomenclaturas que se popularizam nas redes sociais, nomenclaturas muitas vezes adotadas e incorporadas pelos movimentos sociais de uma forma que não parece ocorrer por elas serem mais completas ou expressarem a realidade de uma maneira melhor e sim porque tem bastante gente usando, então, “vamos usar também”! É o que me parece quando reproduzimos conceitos os quais muitas vezes não sabemos o que significam, de onde vêm e, o mais importante: se são úteis enquanto categoria de análise. Um dos mais recentes que tenho visto é o “neuroatípico”.

Falando em termos de feminismo, tenho visto essa palavra sendo utilizada como a forma “correta” de se referir a mulheres com diagnósticos de doenças mentais ou sofrimento psíquico, quaisquer que eles sejam. É uma palavra que designa que o funcionamento psíquico – mais especificamente do sistema nervoso – é diferente do que seria normal ou esperado. Mas que comprovação existe, e há quem serve a ideia, de que o problema das pessoas, e especificamente das mulheres (as mais atingidas pela vasta maioria das doenças mentais e as maiores consumidoras de medicação psiquiátrica) reside em um funcionamento irregular do sistema nervoso?

Há muito tempo a psiquiatria vem impondo o modelo médico para área da Psicologia. Ou seja, existe uma coerção e um “lobby” se passando por científico para que se aceite a mente como qualquer outro órgão do corpo, que adoece e se cura da mesma forma. Que o problema de quem tem doenças mentais é um problema fisiológico. Porém, as muitas pesquisas, incluindo aí mesmo as diversas manipuladas por interesses capitalistas e ideológicos, não conseguem comprovar de fato que a chave do adoecimento mental encontra-se numa deficiência anatômica. A mente é muito mais complexa que, por exemplo, um rim. Tanto é que se criou uma ciência, a Psicologia, especificamente para estudar ela, que por fim é o estudo do funcionamento humano em suas diversas formas, incluindo a social. E empurrada por essa coerção médica e farmacológica, a Psicologia e as mulheres muito sofreram.

O lado social, componente central para a formação da personalidade e uma das causas das doenças mentais, é, com frequência, deixado de lado. Como feministas, como mulheres que acreditam que não tem nada de biológico no gênero, deveríamos também ser as primeiras a questionar se é a biologia a responsável pelas doenças mentais. Estudando a história da Psicologia e das mulheres, e olhando para distúrbios como a antiga histeria, a anorexia e fobia social, fica claro como o desenvolvimento de distúrbios está intimamente conectado com as condições sociais, econômicas e culturais de cada período histórico. Por que pegamos para nós, então, a utilização da nomenclatura “neuroatípica”? É útil pensar, dentro do feminismo, que o problema é individual? Que ele reside no funcionamento errôneo do nosso sistema nervoso, do nosso cérebro? E qual seria o oposto, a forma “neurotípica” de funcionamento, o padrão, a normalidade? Quando uma mulher desenvolve depressão por sofrer abusos verbais, físicos, emocionais, ela é neuroatípica? É a sua parte neurológica que não está funcionando bem e é, portanto, isso que deve ser nomeado ou ela está tendo uma resposta normal frente a condições, essas sim, problemáticas? Quando uma mulher sofre transtorno pós-traumático depois de sofrer violência obstétrica, de sofrer na prostituição, depois de um estupro, incesto, de apanhar do marido, ela é “neuroatípica”? Quando uma mulher desenvolve agorafobia (dificuldade de sair de casa) depois de sofrer, na rua, lesbofobia, racismo, assédios sexuais e morais, ela é neuroatípica? Se admitimos que a geração de doenças mentais é multifatorial, por que nomear apenas a parte biológica, a qual costuma ser o menor dos disparadores?

Não individualizemos o problema. Não coloquemos o problema como estando em nós. Ser mulher frequentemente se traduz em existir na dor. Em nascer, viver e morrer na dor, especialmente quando estão envolvidos outros marcadores como raça, classe e orientação sexual. E o que as mulheres fazem é resistir apesar do sofrimento que nos é imposto desde o nascimento por um sistema patriarcal, capitalista e branco-supremacista. Nossas reações às violências diárias e incessantes que nos ocorrem, nos mais diversos níveis, tem que ser destacadas pelo menos no feminismo, afinal, boa parte da Psicologia já faz o trabalho de manter a ideia da transposição do modelo médico para o funcionamento da mente. Por isso, acredito que a nomenclatura “neuroatípica” para se referir a mulheres em sofrimento mental não é útil nem expressa com precisão o que se passa. Nosso sofrimento não é menos real ou menos digno de estudo e de respeito por não ser biológico ou genético.

Fonte: Psique Vulva

3 COMENTÁRIOS

  1. Bom, entendo seu ponto de vista, porém, a utilização do termo “neuroatípico (a)” é para identificar aqueles (homens, mulheres e crianças) que carregam algum tipo de anomalia ou retardado no neurodesenvolvimento, como TEA, TDAH, DI ou Dislexia. Sim, o termo pode ser utilizado para identificar mulheres carregam algum ou vários destes transtornos psíquicos, mas não é exclusivo para este uso, inclusive, este termo foi inserido na sociedade por uma luta feminista. Na década de 60 quando mães (principalmente mães solo) de filhos autistas eram acusadas de causarem estas anomalias em seus filhos, por influência e maus tratos, elas se juntaram e criaram este termo para explicar a condição neurológica atípica de seus filhos.

  2. Muito interessante sua reflexão, Ana Beys, e pertinente, dado que estamos em um momento de individualização radical das pautas sociais, o que é bem perigoso, como bem sabemos…Mais ainda se a gente considerar que o subtexto dessa narrativa consiste na total responsabilização de grupos marginalizados por seus desvios e tratamentos, que deveriam ser objeto de investigação e trabalho da saúde pública.
    Isso quer dizer que, na prática, a tendência é pipocar episódios de culpabilização de vítimas, como vemos no problema do suicídio de jovens trans – a sociedade heteronormativa entende essas vidas como transviadas do caminho “esperado” e por isso sofredoras, e a comunidade trans tenta, por meio da linguagem e do uso do termo “a pessoa foi suicidada”, reacender o debate sobre as causas daquele sofrimento. É complicado, e assim como as dificuldades enfrentadas por pessoas trans são atravessadas por inúmeras narrativas muitas vezes conflituosas, as vidas das mulheres em sofrimento psíquico sofrem com esses atravessamentos e intervenções desproporcionais (uma mãe em depressão que se afasta dos filhos pra se tratar, por exemplo, é demonizada por seus familiares e convivas).
    O discurso médico biologizante é tão largamente disseminado, ovacionado e legitimado pela vida insana e sedenta que levamos na contemporaneidade, que vemos comentários como este acima, acusando a reportagem de “falar bobagem”, quando na verdade o artigo nesse site pretende dimensionar de modo mais responsável as narrativas em torno dos desvios psíquicos tão recorrentes (o que devia ser uma evidência de sua relação direta com problemas de ordem social, certo? mas não, basta ter opinião baseada em experiência pessoal pra que as pessoas passem a analisar sintomas sociais desviantes a partir de excertos duvidosos e pingados..as mídias sociais fazem com que todos nós nos achemos muito importantes)
    Eu nunca havia visto o termo “neuroatípico” (ou “neurotípico”) sendo aplicados para mulheres, mas, como trabalho no campo da educação, muitas vezes vi sua aplicação em discussões sobre espectros autistas, transtorno de ansiedade e afins na infância.
    Sua reflexão me levou a pensar na infância também, e por isso agradeço. Bom trabalho a todas, beijos

  3. Amiga do céu, não fala bobagem. Com uma breve pesquisa você vai encontrar o seguinte:

    “A depressão é uma síndrome cujas reações no organismo são muito mais amplas do que as alterações de humor perceptíveis. Ela engloba desde a deficiência no nível de alguns neurotransmissores – serotonina, noradrenalina e dopamina – até alterações em níveis hormonais. Com menos “mensageiros”, a comunicação entre neurônios fica prejudicada e também a regulação das funções desses neurônios. A partir daí, o corpo – e a mente – começam a padecer. A deficiência de neurotransmissores traz ainda a diminuição de substâncias protetoras dos neurônios, podendo causar inclusive morte de células cerebrais.”

    Sim, é claro que essa falha nos neurotransmissores pode ser causada pelo sofrimento imposto pela sociedade. Mas não deixa de ser biológico. Esse tipo de afirmação sem conhecimento cientifico só deslegitima o movimento. Você falar esse tipo de coisa, é quase como afirmar que depressão é coisa da cabeça, é social, é frescura, não existe. Não faz isso. Sério.

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