Uma analogia da atual conjuntura brasileira. Por Roberto Liebgott.

Onde estamos?

Arte: Desacato.info.

Por Roberto Liebgott, para Desacato.info.

Onde estávamos

Na beira de um abismo. Alguns já tinham sido empurrados para dentro dele, os demais adoeceram física e psicologicamente.

Lá, diante do abismo, não havia espaço e tempo para sonhos e planos. Naquele lugar, as causas sociais, populares, quilombolas e indígenas estavam sob o constante risco da queda.

Até o início do ano de 2023, resistia-se para não perder tudo. Lutava-se, durante os dias, tentando evitar o fim do caminho.

Lutava-se contra a devastação do ambiente e da terra, bem como para sustentar os direitos fundamentais e combater a intolerância.

O fascismo, tal qual uma doença, atacou o sistema imunológico de nossa sociedade e abriu caminho para múltiplas infecções.

Resistir a esse ataque debilitante foi uma dura missão, pois a condição extremada que ele impunha já vinha sendo aceito pelas mídias, por parlamentares, igrejas e boa parte do judiciário.

Deve-se, portanto, manter atenção a essa doença, porque o mal não foi tratado e a cura parece bem distante.

Onde estamos

Os que sobreviveram à queda do abismo estão, agora, numa sala de emergência, aguardando atendimento para exames, diagnósticos e tratamentos. Estão à disposição dos pacientes alguns especialistas, médicos, enfermeiros, cientistas, técnicos e tantos outros agentes. É bem verdade que nem todos acertam os diagnósticos, alguns por opção, outros por despreparo. E há, também, a necessidade de exames de média e alta complexidade, esses mais demorados.

A chefia – que atualmente comanda a emergência – ficou, ao longo de dois meses, enredada nos imprevistos: ataque fascista aos poderes públicos; a urgência de resposta ao genocídio Yanomami, causado pela invasão garimpeira; a solidariedade aos impactados pelas enchentes em São Paulo – que se dá em decorrência do descontrole do clima; e a retomada do diálogo junto às diplomacias internacionais.

E, como não podia deixar de ser, a chefia dedicou-se também ao cuidado de alguns focos de doenças: junto aos poderosos do agronegócio; do empresariado de serviços e produtos de consumo; das empresas mineradoras; e do sistema financeiro, sedento por lucro farto e fácil.

Neste período, o novo gerente e seus comandados perderam muito tempo agradando e colocando compressas de gelo nas inflamações causadas por militares e panos quentes no Centrão, esperando, com isso, que se evitem novos agentes de contaminação. Ainda, para agravar o quadro de contaminações, o gerente vem aceitando a aplicação de certos venenos nas lavouras, liberados por um Ministério da Agricultura sem controle.

Apesar de alguns esforços, nota-se lentidão no atendimento aos pacientes mais necessitados e na realização de exames. Sem esses procedimentos não haverá definição dos diagnósticos, das prescrições e o fornecimento das medicações, impossibilitando, com isso, uma volta à normalidade na vida.

Para onde vamos

As doenças deveriam ser adequadamente tratadas. No entanto, as informações dão conta de que as equipes, por mais boa vontade que demonstrem, são frágeis e a capacidade de infraestrutura – dentro da emergência – é limitada, indicando de que não conseguirão cuidar de todos os pacientes.

Sabe-se da existência de vacinas que previnem o avanço de certas doenças, mas há dificuldades na obtenção de seringas, agulhas e mãos fortes para aplicá-las. Haverá antibióticos, mas estes, antes de serem receitados, carecem de um diagnóstico preciso. Observando bem o ambiente, têm-se a noção de que utilizarão – prioritariamente – analgésicos e anestésicos, ao invés de tratamentos eficazes.

Vislumbram-se, portanto, no espaço emergencial, três possibilidades: uma, de que os doentes esperarão até que os diagnósticos e tratamentos sejam adequadamente identificados e ministrados.

A outra, de que se optará pela liberação das pessoas, sem orientação de tratamento, fornecendo-se paliativos, evitando dor e desconforto. No entanto, a vida, lá fora, se tornará quase inviável.

E, por fim, a pior de todas as possibilidades, que seria a liberalização geral. Ou seja, diante do fato de uma emergência superlotada, de não haver consensos quanto às formas de tratamento das doenças, de prevalecerem os desentendimentos, conjugados com um possível desinteresse em relação a alguns pacientes, assumir-se-á o risco de abandonar os doentes, deixando a critério de cada um, as formas de tratamento.

Mas tudo indica que a sala de emergência não se esvaziará. Persistirá a doença do mercado especulativo, a qual merecerá a atenção de uma poderosa equipe. Mas, de antemão, já se sabe que não haverá possibilidade de cura, porque a contaminação se alastrará freneticamente.

A doença do agronegócio manter-se-á ativa e deve ser tratada por alguns dos melhores médicos da emergência. Eles a considerarão uma doença comum e curável. Mas, pelo histórico, subsistirão nela alguns vírus e bactérias que poderão infectar todos os demais pacientes.

A doença da corrupção, associada à bactéria gerada por dentro do Centrão, persistirá. Essa combinação é destruidora, se espalha facilmente e contamina até os que têm boa condição física e imunológica. Os médicos e especialistas, que tratarão dessa doença, estarão suscetíveis à contaminação.

A doença da devastação terá prosseguimento. Ela não se esgotou. Continuará a corroer a natureza e a aniquilar as potencialidades da terra, retirando-lhe as forças, a vitalidade, impedindo-a de gestar sementes, flores e frutos. Aos especialistas, que sabem como tratar dessa doença, não lhes deixarão chegar os remédios, podendo liberar-lhes tão somente alguns analgésicos.

Terá ainda a intensificação da doença do racismo, conhecida desde os tempos da colonização. Há remédios e tratamentos para combatê-la, todavia se convive com o vírus pandêmico da desumanização dos outros, de pele preta, indígenas e demais mulheres e homens pobres. Existem especialistas que podem ajudar a erradicar a doença, mas estes não serão levados a sério. E, no espaço da emergência, improvisarão com alguns paliativos, sonegando a possibilidade de controle da pandemia.

Persistirão as doenças da intolerância e injustiça, que afligem os povos indígenas, os quilombolas e tantos e tantas excluídas e excluídos. São doenças seculares que exigem remédios eficazes – justiça e direito –; no entanto, estes não poderão ser acessados na emergência. Lá, quando muito, lhes oferecerão o paracetamol ou, na hora de uma dor aguda, a morfina.

Nesse ambiente, ainda muito controverso e insalubre, corre-se o risco de promover, dentro da emergência, uma seleção de prioridades, escolhendo entre alguns que permanecerão para morrer e os que serão amparados e tratados.

Se for confirmada essa tendência, uma vez mais, os direitos dos povos – comunidades originárias e tradicionais – serão postos sobre a mesa de negociações políticas, jurídicas e econômicas.

Sabe-se, portanto, que na emergência persistirá a interminável lista de doenças e adoecidos, que a capacidade de atendimento e de um eficaz tratamento não se mostram adequados e satisfatórios. Todavia, nada justificará, em nenhuma hipótese, qualquer opção que privilegie alguns – ricos – em detrimento dos – pobres – vulnerabilizados.


Roberto Antônio Liebgott é Missionário do Conselho Indigenista Missionário/CIMI. Formado em Filosofia e Direito.

 

 


Obs.: A opinião do autor não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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