Por Marcio Sotelo Felippe.
Em 16 de outubro de 1998 o senador Augusto Pinochet encontrava-se tranquilamente em Londres para tratamento médico. Foi preso pela Scotland Yard em cumprimento a um pedido de extradição emitido pelo juiz espanhol Baltazar Garzon por crimes contra a humanidade.
A ditadura de Pinochet deixou 40 mil mortos segundo dados oficiais, mas estima-se que o número real seja próximo de 100 mil. Entregou o poder em 1989, mas manteve o controle das Forças Armadas e, em 1998, tornou-se senador vitalício.
Nenhum dos crimes foi cometido na Espanha ou na Inglaterra. Embora houvesse menção a cidadãos espanhóis vítimas da ditadura chilena no pedido acatado por Garzon, isso não era relevante. O pedido de extradição e sua observância pelo Estado inglês naquele momento tinham como fundamento a regra da jurisdição universal dos crimes contra a humanidade. Não importa a nacionalidade das vítimas, o lugar em que os crimes foram cometidos; não importam as regras típicas do Direito comum e interno sobre competência. Por força de uma norma vinculante (diz-se “cogente”) de Direito Internacional, todo Estado tem jurisdição nos crimes contra a humanidade.
Nada de novo. Desde o início da Idade Moderna, por volta do século 16, a pirataria está sujeita à jurisdição universal. O primeiro escritor do Direito Internacional, Grocio, em 1624, escreveu que “reis têm o direito de punir não apenas por ofensas contra si ou seus súditos, mas também nas graves violações das leis da natureza (…) porque devem cuidar da sociedade humana em geral” (De Jure Belli ac Pacis).
No episódio, o Estado inglês deu decisões contraditórias, em alguns momentos reconhecendo a jurisdição universal. A resistência liderada por Margaret Thatcher, que gostava de Pinochet porque combateu o comunismo, fez com que o ditador não fosse extraditado para a Espanha e pudesse retornar para o Chile por razões de saúde.
Faria bem a Bolsonaro refletir sobre Pinochet. Ou sobre Eichmann, condenado por um Estado que sequer existia quando seus crimes foram cometidos. Um dia, quem sabe, ao pisar em algum aeroporto em algum lugar do mundo, o presidente poderá ser surpreendido por um mandado de prisão.
O colunista da Folha de S. Paulo Bruno Boghossian fez a revelação mais chocante sobre a conduta de Bolsonaro na crise da pandemia. Deveria ter sido manchete em todos os jornais, mas passou algo despercebido em meio à coleção de loucuras perpetradas por ele desde o início da crise. Boghossian afirma que o ex-secretário do Ministério da Saúde, Wanderson Oliveira, contou à repórter Natalia Cancian que o Palácio do Planalto foi avisado em março que a estimativa de mortos pela pandemia seria de 100 mil pessoas em seis meses. No momento em que escrevo, quatro meses depois, ultrapassamos 70 mil mortos. A projeção está sendo certeira. Sabendo dela, Bolsonaro disse no final de março que “alguns vão morrer, é a vida” e que os mortos “não passariam de 800”.
Desde então aglomerou-se sem máscaras. Afirmou tratar-se de uma gripezinha. Defendeu o uso de remédios sem comprovação científica. Fez carga contra os governadores e prefeitos que tomaram as necessárias e sãs medidas sanitárias restritivas. Usou a si mesmo como exemplo de saúde por ser “atleta”, escancarado a eugenia da sua conduta (os idosos, frágeis e portadores de comorbidades não importavam). Quis liberar academias e salões de beleza das restrições. Quis impedir o uso de máscaras em presídios, templos religiosos e em lojas. Demitiu dois ministros da saúde porque não seguiram a sua política criminosa. O Ministério da Saúde é ocupado por um militar interino. Nunca houve plano, estratégias ou esforço coordenado de combate à doença por parte do governo federal. Dos 40 milhões de reais previstos para enfrentar o novo coronavírus, o governou gastou apenas 12 milhões.
Para cúmulo e remate, vetou pontos de projeto aprovado pelo Congresso que garantiam a comunidades e aldeias indígenas acesso universal a água potável, distribuição gratuita de materiais de higiene, de limpeza e desinfecção de superfícies, oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidade de terapia intensiva, ventiladores, máquinas de oxigenação sanguínea e recursos para resguardar a saúde indígena. Cerca de nove mil estão contaminados e 190 morreram. Sentenças de morte para indígenas. A recusa em proteger presidiários e indígenas são, mais uma vez, criminosas políticas eugenistas.
O Estatuto de Roma, que rege o Tribunal Penal Internacional, estabelece como crime contra a humanidade, entre outros, homicídios e atos desumanos que causem intencionalmente grande sofrimento ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental, cometido no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil.
O dispositivo é, na verdade, uma consolidação de normas imperativas, obrigatórias, de Direito Internacional, fixadas desde Nuremberg, cujas fontes são o costume, o reconhecimento ao longo do tempo, os princípios gerais de direito. No caso dos crimes contra a humanidade, o conceito e as regras de aplicação foram solidificadas pela Comissão de Direito Internacional da ONU, em 1950, e contemplavam a mesma norma: assassinato, extermínio, escravização, deportação e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil.
Convém estabelecer a distinção entre normas costumeiras, imperativas de Direito Internacional e normas convencionais estabelecidas por tratados, acordos firmados entre Estados. É que as primeiras têm vigência e eficácia acima das segundas. Isto é expresso na Convenção de Viena sobre tratados: “É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza”.
O Brasil assinou o Estatuto de Roma. Não tivesse assinado continuaria, como todos os países que não o firmaram (como os Estados Unidos), ainda sujeito às normas costumeiras imperativas de Direito Internacional Penal, à categoria crime contra a humanidade. A prisão de Pinochet não se deu sob a égide do Estatuto de Roma, que somente se aplica aos signatários e por atos posteriores à sua vigência. Deveu-se a tais normas imperativas de Direito Internacional, assim como a condenação de Eichmann, o processo de Klaus Barbie e de tantos outros criminosos nazistas desde o fim da II Guerra.
Teria Bolsonaro, seja pelo Estatuto de Roma, seja pelas normas imperativas de Direito Internacional, cometido crime contra a humanidade na crise da pandemia, devendo ser responsabilizado por milhares de mortes? A resposta é inapelavelmente sim.
Não é qualquer violação de direitos humanos que pode ser caracterizada como crime contra a humanidade. Exige-se o “elemento internacional”, que está presente quando dois requisitos são satisfeitos: uma política de Estado e a gravidade das violações. Sem tais requisitos a conduta está sujeita apenas aos ordenamentos internos. Por isso a Máfia ou o PCC não podem ser responsabilizados por crimes contra a humanidade. Somente pelos que estão à frente ou são executores de ações de Estado (embora se admita que organizações políticas não estatais, mas poderosas, possam ser sujeitos das violações, como Al-Qaeda, por exemplo).
Que a conduta de Bolsonaro seja uma política de Estado não pode haver dúvida razoável. Ela é explícita, confessa. Toda a sua trajetória no trato da pandemia grita isso. Ao criticar a absurda interinidade de um militar sem formação médica no Ministério da Saúde, há meses, enquanto morrem todos os dias mais de mil pessoas, o ministro Gilmar Mendes afirmou que o “o exército está se associando ao genocídio”. O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta disse ter havido “um desmanche do Ministério da Saúde no meio da maior pandemia do século”. Todo o corpo técnico do Ministério foi trocado. Uma política selvagem e fascista.
Os dois países com maior número de mortes têm presidentes negacionistas. Estados Unidos, com 140 mil, Brasil, com 70 mil, em curvas ascendentes. A China, com equivalentes dimensões continentais e 1,3 bilhão de habitantes, controlou a pandemia com 4.600 mortes. Trata-se, portanto, de violação grave, maciça, do direito à vida, à saúde, à integridade física, em decorrência de uma política de Estado.
O conceito de crime contra a humanidade contém a expressão “ataque generalizado ou sistemático”. A palavra “ataque” pode à primeira vista significar apenas uma conduta ativa, ou como se diz no jargão jurídico, “comissiva”, vindo à mente a ideia de ataque armado, de um pogrom, de um ato ostensivo de violência. No entanto, homicídios ou atos desumanos podem ser ataques cometidos por omissão, como no exemplo clássico da mãe que, tendo o dever jurídico de zelar pela vida do filho, deixa de alimentá-lo ou se omite dos cuidados necessários. Ou do salva-vidas que se omite diante de pessoas se afogando. Basta que o agente tenha o dever jurídico específico de evitar a morte para que se caracterize o homicídio por omissão. Se assim é em casos singulares, assim é quando as vítimas são milhares e os omissos têm, como agentes de Estado, dever jurídico de salvaguardar a vida dos cidadãos. No Holocausto, parte das milhões de vítimas morreram por maus tratos, condições desumanas de trabalho ou ausência de cuidados médicos, e não só pelo assassinato dito comissivo, “positivo”. Igualmente no genocídio armênio, em que parte da população foi morta por condições desumanas impostas no curso de um deslocamento territorial cujo objetivo era efetivamente o extermínio.
A morte de milhares de cidadãos brasileiros teria sido evitada se a política de Estado do governo Bolsonaro não tivesse sido a omissão, motivada por interesses políticos mesquinhos, pela eugenia e a indiferença à vida, como é próprio do fascismo. Isso diante de dados que vinham de todo o mundo desde o começo do ano, e da informação de que 100 mil pessoas morreriam no Brasil em seis meses.
Considerar isso tudo um fato da política ou mera gestão passível de crítica política é afastar-se de qualquer patamar civilizatório. É permitir, ignorando toda a construção jurídica moderna, que chefes ou agentes de Estado possam ser criminosos em massa, desde que com meios implícitos ou por omissão.
A vigência de uma norma jurídica e o reconhecimento de sua obrigatoriedade, dita “cogência”, não significam, claro, a sua eficácia. Os Estados Unidos foram responsáveis por inúmeros crimes contra a humanidade no século 20, e ainda no século corrente, apoiando ditaduras terroristas ou praticando atos terroristas de mão própria que causaram milhares de mortos. Não se pode razoavelmente esperar que a política perca do Direito na maior parte das vezes. Ela ganha, praticamente sempre. Supor que algum presidente norte-americano encontre seu Nuremberg não é realista.
No entanto, que Bolsonaro, tal como Pinochet, encontre em algum aeroporto do mundo um mandado de prisão é um sonho civilizatório possível. Poderia Mussolini imaginar, no auge de seu poderio, que terminaria seus dias enforcado em praça pública e pendurado de ponta cabeça em um posto de gasolina?
Melhor do que elucubrações éticas duvidosas e cerebrinas, como desejar a sua morte, são o impeachment e a responsabilização jurídica. Desejar a morte não tem, até onde se sabe, qualquer eficácia, além de ser um dilema moral inútil no discurso público, a menos que seja um incitamento ao assassinato. Já Bolsonaro encontrar um Nuremberg seria um avanço civilizatório. Que se sente no banco dos réus em Haia, no Tribunal Penal Internacional, ou em qualquer lugar do mundo em que houver um juiz que tenha a coragem e o compromisso que um dia tiveram os acusadores espanhóis e o juiz Garzon.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP
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