Por Fernanda Paixão.
Segundo o arquivo da Coordenadora contra a Repressão Policial e a Violência Institucional (Correpi), um em cada cinco feminicídios na Argentina são cometidos por agentes de segurança. Em 90% dos casos, os crimes são executados com a própria arma da corporação.
A falta de dados oficiais também revela grande parte da persistência desse tipo de crime. Portanto, os dados existentes são elaborados pelo acompanhamento dos casos por organizações militantes, como a Correpi. O Instituto MuMaLa revelou que, este ano, 12% dos feminicídios na Argentina foram cometidos por forças policiais.
O Observatório de Feminicídios Adriana Zambrano também revelou números nada animadores ao final de janeiro: a cada 24 horas, uma mulher foi vítima de feminicídio, com um total de 31 casos.
Até o fechamento desta edição, a contagem subiu para 56. E é entre esses últimos casos que ocorreu o feminicídio de Úrsula Bahillo, uma gota d’água que fez transbordar a indignação popular em todo o país.
O caso da jovem de 18 anos foi emblemático: ela era perseguida por seu ex-namorado, Matías Ezequiel Martínez, oficial da polícia de Buenos Aires.
A informação não é mero detalhe, somando-se ao fato de que a violência institucional, exercida pelo próprio Estado, é representada, em grande parte, pela prática cotidiana de abusos das forças de segurança.
Uma equação explosiva
A violência policial e os abusos de autoridade são noticiados diariamente na Argentina. Só em 2020, foram 397 mortes provocadas por forças policiais, em casos que não representavam riscos para os agentes nem para terceiros.
A conduta agressiva se estende à vida privada. Entre as vítimas contabilizadas pela Correpi desde 1992, a principal causa de morte entre homens é estar detido ou sob custódia policial ou o chamado gatilho fácil (tiros sem causa justificável); entre as mulheres é o feminicídio, ao serem companheiras ou ex-companheiras dos ofensores.
“A conclusão que chegamos, analisando as características da repressão estatal e a violência machista e patriarcal, é quando esses dois elementos se encontram em um mesmo indivíduo, se potencializam”, afirma María del Carmen Verdú, da Correpi.
Uma carta assinada por militantes e organizações endereçada ao governo nacional após o caso de Úrsula descrevia: “Não podemos tolerar nem uma morte mais de mulheres e identidades feminizadas, que pagam com suas vidas o custo de uma masculinidade que acredita ter o poder de possuí-las.”
O argumento pode encontrar base em um dado chamativo: dois de cada dez feminicidas terminam se suicidando na Argentina. Como afirmou a jornalista e escritora feminista Luciana Peker, o ato de reivindicar essa posse fantasiosa parece valer mais que a própria vida.
No caso dos chamados “feminicídios de uniforme”, a equação torna-se explosiva e, assim como faltam dados oficiais, não há políticas públicas que deem conta da particularidade dessa interseção.
Existem capacitações em violência de gênero direcionadas a funcionários públicos, como desde 2018 dita a Lei Micaela. No entanto, isso não se refletiu na diminuição dos casos de feminicídio nem de repressão policial.
“É essencial fortalecer as capacitações e transformar a cultura das forças policiais. São instituições que, historicamente, foram guiadas com uma ideia de que intervir é fazer uso da violência”, aponta a coordenadora da área de Segurança Democrática e Violência Institucional do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), Victoria Darraidou.
“Trata-se de um fenômeno específico, que soma a violência institucional com a violência de gênero. Ao ser perpetuado por forças de segurança, o Estado tem uma obrigação maior para evitá-lo”, conclui.
Caso Úrsula: o estopim
As agressões físicas ocorridas durante o relacionamento alarmaram a mãe de Úrsula, que fez uma denúncia contra Martínez na delegacia de Rojas, cidade da província de Buenos Aires. Foi a primeira de muitas.
Foram um total de 18 denúncias, apenas três registradas, nenhuma suficiente para evitar o fim trágico – e anunciado.
Úrsula foi ameaçada de morte, mas Martínez continuou em liberdade, ainda que tivesse também processos judiciais em curso, fruto de denúncias de outras ex-companheiras.
A violência policial não terminou com o crime: em uma manifestação pacífica em frente à delegacia de Rojas, uma amiga da vítima protestava parada, de braços cruzados, quando recebeu um disparo de bala de borracha no rosto e quase perdeu um olho.
O caso ganhou repercussão nacional. Os pais de Úrsula foram recebidos na Casa Rosada pelo presidente Alberto Fernández, e a ministra de Mulheres, Gêneros e Diversidade, Elizabeth Gómez Alcorta, apontou a responsabilidade dos poderes judiciais e da polícia, para quem a violência de gênero “não é tema prioritário”, afirmou.
Alguns dias depois, foi anunciada a criação por decreto do Conselho Federal para a Abordagem de Feminicídios, Travesticídios e Transfeminicídios, para integrar o trabalho do governo nacional com o das províncias. A medida foi considerada insuficiente pela militância feminista.
O Estado é responsável
Representante do movimento Juntas y a la Izquierda, do Movimento Socialista dos Trabalhadores (MST), Cele Fierro aponta o déficit de orçamento para programas direcionados a atender vítimas de violência de gênero, inclusive o próprio Ministério das Mulheres, Gêneros e Diversidade que, ultimamente, tem sido alvo de críticas por “falta de ação”.
“O Programa Acompanhar, por exemplo, tem o objetivo de ajudar a vítima a alcançar uma independência econômica, mas com um salário mínimo [cerca de R$700] por apenas seis meses. Como isso pode representar uma autonomia econômica?”, questiona Fierro.
“Toda essa questão abre uma porta para discutir uma segurança comunitária, com a participação da população e das organizações de direitos humanos. Ter uma polícia a serviço deveria significar prevenção, e não repressão. Isso é parte do que temos que tomar para pensar e construir um outro tipo de sociedade”, conclui.
O movimento Ni Una Menos convocou uma manifestação no dia 17 de fevereiro para levantar pautas urgentes que o caso de Úrsula deixa às vísceras: a ignorância do sistema judicial sobre os casos de violência de gênero e a falta de coordenação entre as instituições, muitas dedicadas ao tema, como a Delegacia da Mulher.
Se as vítimas de violência de gênero não raras vezes são desacreditadas – vide o caso de Mari Ferrer, no Brasil –, as denúncias que recaem sobre os próprios agentes de segurança intensificam esse quadro. Segundo Verdú, a justiça e as forças de segurança andam juntas.
“Não faz diferença uma placa dizendo ‘Delegacia da Mulher’ quando, no final das contas, quem atende é um policial, com a mesma conduta que em qualquer outra delegacia. Também há o vínculo próximo entre o poder judicial e as forças de segurança, que, tecnicamente, são seus auxiliares. A lógica dos tribunais parte de acreditar nos uniformizados”, aponta Verdú.
“A função das forças é justamente impor o disciplinamento; não há maneira de que isso possa ser exercido com uma perspectiva de gênero. É necessário capacitar, mas só isso não é suficiente, por ser uma cultura que atravessa todo o corpo social”, afirma.
“Seria necessário um lugar com equipe civil onde as vítimas possam fazer suas denúncias, e serem recebidas com uma escuta real.”
Como medida urgente, as organizações sociais demandam declarar a violência contra as mulheres e dissidências por razão de gênero como emergência nacional.
Uma carta assinada por militantes e organizações foi endereçada ao governo federal, exigindo, entre outros pontos, a coordenação entre o poder judicial, as forças de segurança e os municípios, assim como a incorporação da perspectiva de gênero na futura reforma judicial.
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