Tubiano: o silêncio que encobre violências. Por Rita Coitinho

Para quem não é habituado ao palavreado gaúcho, a palavra tubiano talvez não remeta a nenhuma imagem imediata.

Foto: Divulgação.

Por Rita Coitinho.

A tensão entre o universal e o particular, o local e o global, um problema tão em voga nos estudos geográficos e sociológicos, tem frequentemente seus melhores desdobramentos na literatura. É o que acontece no romance de Nicole Reis, Tubiano. O livro, publicado em 2022 pela Quintal Edições, pode ser lido como um romance regional, fortemente carregado pelos acentos do Rio Grande do Sul, sendo ao mesmo tempo profundamente universal. Os fragmentos das vidas dos personagens do romance, tão particulares, são simultaneamente retratos de muitas vidas e lugares. As angústias de seus personagens, entrelaçados no espaço e no tempo, evidenciam as injustiças, os silêncios e as ansiedades que são comuns a tantos brasileiros.

Para quem não é habituado ao palavreado gaúcho, a palavra tubiano talvez não remeta a nenhuma imagem imediata. Tubiano é cavalo de pelo vermelho ou escuro, com manchas brancas. Os entendidos de montaria dizem que é bicho rebelde, difícil de montar. Um animal ensimesmado. Um pouco como o personagem Inácio, que escolheu, dentre tantos disponíveis, um cavalo tubiano para montar, apesar das críticas do pai, figura rude que não o compreendia e o intimidava.

Ensimesmado é também Vitor, que por vezes achou que ia morrer, mas agarrou-se outra vez à vida a fim de desvendar os mistérios que cercavam sua existência. Uma vida como tantas, por anos encerrada em uma casinha nos fundos do quintal da casa dos patrões, onde viveu com a mãe, empregada doméstica. Vitor e a mãe eram daqueles empregados de quem se diz, cinicamente, que “são como da família”, já que os patrões, uma família de classe média porto-alegrense, fizeram dele seu afilhado, tendo este a mesma idade de sua filha mais velha, com quem repartiu a infância. Na adolescência, entretanto, seus caminhos se separaram, tomando aquela distância que há entre os estudantes das escolas particulares, com suas festas e interesses, e a dos meninos e meninas do grupo escolar, filhos e filhas das empregadas e demais desafortunados, que não frequentam a escola de inglês e sequer cogitam prestar o vestibular.

Vitor, menino negro, “o filho da empregada”, vai perdendo espaço na casa dos padrinhos à medida que cresce, até o ponto em que é levado a sentir-se um intruso. Quando a mãe falece, vítima da violência urbana de Porto Alegre, Vitor sente que nada mais o prende àquela casinha dos fundos. É quando sua existência, separada pelo espaço, conecta-se à de Inácio, o menino que um dia escolheu um cavalo tubiano. O adulto Inácio é um infeliz funcionário. A infância no interior, marcada pela rudeza do pai, a ausência da mãe e a proteção da tia sem filhos fora preenchida pelo laço afetivo com o animal de montaria. Inácio torna-se um adulto angustiado. Seu relacionamento familiar conturbado, somado ao inesperado encontro com Vitor, levam-no a remexer o passado.

É esse o fio que vai ligar os dois jovens ao drama de Jaqueline e de sua mãe. O infeliz destino da jovem, que fora trabalhar em “casa de família” para guardar algum dinheiro e ir atrás de um sonho, é semelhante ao de tantas como ela, mulheres negras e solitárias em um Brasil interiorano hostil, racista e machista. O silêncio que cerca sua existência é o mesmo silêncio que encerra a vida de tantas mulheres e meninas, submetidas às violências de nossa sociedade. O contraste entre as trajetórias familiares que abrigam os três personagens remete-nos à célebre abertura de Anna Karenina (Tolstói), onde ficamos sabendo que cada família infeliz é infeliz à sua maneira, ao passo em que todas as famílias felizes – com a de Rubens e Marta, os “padrinhos” de Vitor – se parecem.


Romance: Tubiano

Editora: Quintal Edições, 2022.

Autora: Nicole Reis

 

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