Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.
“Como vai proibir quando o galo insistir em cantar?
Quando chegar o momento, esse meu sofrimento, vou cobrar com juros. Juro!” (Chico Buarque)
Dois fatores esquentaram os dados que indicam, hoje, o crescimento histórico de 20% no número de eleitores brasileiros no exterior, segundo o TSE. Em dados proporcionais, é significativo que as campanhas promovidas não somente pelos organismos públicos, mas principalmente pelas associações e redes de brasileiros como a Fibra (Frente Internacional de Brasileirxs pela democracia), aumentassem o número do eleitorado brasileiro num país como a Holanda, por exemplo: 70% – aproximadamente.
A Holanda é um bom exemplo, enquanto os dados vão ganhando o mundo, pois há muitos outros números ainda a comemorar.
O primeiro fator foi o Trumpismo. O segundo, eu chamo de Anittismo.
O Trumpismo é a ameaça de golpe antes mesmo das eleições acontecerem, seguido do estímulo aos eleitores antifascistas para registarem-se eleitoralmente e enfrentar a ameaça, votando.
O Anittismo é a resposta a isso. Foi a intensidade da campanha junto ao público jovem para se inscreverem no censo eleitoral brasileiro e poder votar. Além disso, difere-se da campanha supostamente “neutra” por parte dos organismos públicos brasileiros. Pois o Anittismo, por um lado, é uma campanha de enfrentamento ao bolsonarismo e a tudo o que ele pode representar. Como se além de inscrever-se eleitoralmente, já viesse no pacote um tal Voto Consciente.
Viu, galera, Dicaprio tá até aprendendo português pra ajudar a salvar a gente https://t.co/DxPxkgIWnP
— Anitta (@Anitta) May 2, 2022
Então agora é isso hein… me pediu foto quando me encontrou em algum lugar? Se for maior de 16 eu só tiro a foto se tiver foto do título de eleitor. ?
— Anitta (@Anitta) March 23, 2022
E aqui haveria um mundo de debates entre não votar nas candidaturas fascistas ou votar em qualquer candidatura antisfascista (ou, não sejamos hipócritas: votar no Lula, que está em claríssimo primeiro lugar nas atuais pesquisas de intenção de voto, agora que a Farsa da Lavajato é assunto em qualquer cidade do mundo).
Quando entrei ao Mestrado de Ciências Políticas (na UFPE), um tema me fascinava: o direito ao voto como exercício pleno de cidadania, com tudo o que nele cabe. Consciente que Cidadania é faca de dois gumes e comporta, como quase tudo na vida, ônus e bônus, direitos e deveres, despesa e receita.
Tudo na vida tem o seu lado bom e o seu lado ruim. Costumo dizer que depende, quase sempre, de perspectiva.
A história da humanidade seria outra se não fosse a pioneira luta do movimento feminista por ele, pelo direito ao voto. Assim como a farsa da “abolição das escravaturas” teria sido desmascarada já no começo se houvesse dado aos ex-escravizados a condição de cidadania com direito a votar (“pelo menos” a votar).
E não esqueçamos jamais que o direito a votar deveria incluir, inexoravelmente, o direito de ser votado. Quem é capaz da primeira circunstância, deveria ser capaz da segunda. E vice-versa.
Ainda hoje, nas principais metrópoles ocidentais, a absurda negação do direito ao voto da população migrante, continua sendo a prioritária forma de controle social e de impedir a mobilidade social de significativas parcelas da sociedade. Xenofobia pura, combinada com hipocrisia.
O direito ao voto é um velho debate entre a diversidade de comunidades de brasileiros emigrados (morando fora do país). Os 603.391 brasileiros aptos a votar, morando no exterior, já são muito mais do que os eleitores de Estados da Federação, como o Acre, o Amapá e Roraima. Quando esse número aumentou assim, significativamente, em outros países (com exceção do Brasil), logo promoveram-se reformas na legislação eleitoral que permita a esse imenso contingente de eleitores poder não somente votar, mas ser votado.
Ou a gente deixa de ser brasileiro quando decide morar fora do Brasil?
Há ainda um dos pilares fundamentais da democracia plena (se é que existe em algum lugar do mundo): quem vota terá o direito de ser votado – salvo em caso de circunstâncias excepcionais.
Como se opera esse direito? Já existe jurisprudência, boas práticas e ampla literatura sobre o tema. O pior cego é aquele que não quer ver.
O que opino, considerando-o um absurdo é o cerceamento do direito ao voto (no exterior principalmente, pois é o que me compete como cientista social e migrante ao mesmo tempo). E este cerceamento, dificultando, punindo, excluindo, opera-se (ainda na minha sincera opinião) de várias formas.
Em primeiro lugar, ela, como sempre, a inimiga da igualdade de oportunidades: a Burocracia, no centro desse assunto. Ela, a Burocracia, consegue associar – de forma leviana, segundo opino – o direito de votar para Presidência da República (a única eleição que está permitida aos brasileiros emigrados) com algo sagrado como o direito de fazer um novo passaporte, para os que moramos fora do Brasil. Utilizar esse artifício como um incentivo, um impulso, um estímulo, seria, para mim, uma coisa diferente de usá-lo como um dever – que ao não ser cumprido implica uma severa punição.
Só quem mora “fora” sabe a importância do passaporte para vários temas importantes na nossa vida.
Ainda no meu sagrado direito de liberdade de expressão, opino que é demasiadamente severo que um dos passaportes mais caros do mundo, o brasileiro (quem quiser que pesquise sobre isso), tenha o seu prazo de validade diminuído de 10 para apenas 1 único ano, no caso de muitos brasileiros que (por diversas circunstancias, não vou entrar nesse detalhe) não tenham regularizada a sua situação eleitoral.
Mesmo sendo consciente do vasto número de campanhas de utilidade pública sobre a Regularização Eleitoral, da existência de uma velha desconhecida (cada vez mais presente no cotidiano da emigração brasileira, a tal Certidão Circunstanciada – pesquisem em Mr. Google), e de que “sempre se pode pegar um voo para votar no domicílio brasileiro, se não conseguiu transferir” – parece piada, mas não é; uma sugestão como essa, vindo de um organismo público em tempos de crise econômica e social – o fato é que o direito ao voto é um dos mais sagrados. Nem menor nem maior que muitos outros direitos. Mas sagrado, sim.
E tudo isso, pra completar, no meio de uma inédita briga política aberta entre o atual mandatário do Poder Executivo e o Tribunal Superior responsável pela eleição de um novo Presidente.
Como em todos os debates sobre a compatibilidade entre direitos e deveres, a essência da palavra Cidadania, serve-nos de algo muito importante. A perda de um direito, mesmo que temporária (ou, absurda, como opino) somente beneficia a abertura e amplidão dos debates mais importantes que – a meu ver – transcendem o direito ao voto, sem querer diminuí-lo mas ressignificando.
Porque é importante não somente inscrever-se eleitoralmente, mas votar? Melhor ainda: não somente votar, mas debater, questionar, exercer a capacidade crítica, votar de forma consciente, enfim.
Porque eu posso votar para Presidente do país que está a milhares de quilômetros de distância e não posso votar (nem ser votado) para o Prefeito da minha cidadezinha do exterior – mesmo depois de anos vivendo, pagando impostos e trabalhando nesta cidadezinha?
(Eu já posso votar e ser votado em todo o Reino da Espanha pois já tenho dupla nacionalidade, mas falo em nome dos milhares que estão excluídos desse direito)
Porque existem políticos que, vivendo dos votos, desejam (no fundo) que pessoas não possam votar?
Em que medida os processos de inclusão digital (com as inovações tecnológicas e a Internet, por exemplo, democratizando o acesso à informação) podem ser utilizados como mais um fator de exclusão, considerando que o acesso não é o mesmo para todos, para todas as histórias de vida, para todos os “lugares de fala”, perante todos os privilégios, coberturas digitais, analfabetismos instrumentais, que uns possuem sobre os outros? Nascer com um I-Phone 12 no berço é o mesmo que ter que escolher entre botar crédito no celular ou comprar comida pra um filho que chora de fome?
Porque uma campanha de cadastramento eleitoral deveria haver sido (como de fato o foi, para todo o “ativismo de esquerda”) um “fazer o bem sem olhar a quem”, na medida que ampliar o censo eleitoral é um benefício de toda a cidadania e não somente um patrimônio da luta antifascista?
Acabo este texto felicitando todas aquelas pessoas (sem falso orgulho, me incluo) que dedicaram horas preciosas dos seus dias e noites auxiliando, no exterior, pessoas a estarem aptas e habilitadas para derrotar o fascismo nas urnas, em outubro próximo.
Porque Neutro, minha querida, é tipo de Shampoo.
Fora Desgraçado!
Aquele abraço.
Barcelona, 9 de maio de 2022
@1flaviocarvalho. @quixotemacunaima. Sociólogo e Escritor. Ex-dirigente sindical da CUT e ex Formador da Escola de Formação da CUT no Nordeste. Barcelona, 4 de fevereiro de 2022.
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