Por Fernanda Paixão, Brasil de Fato.
O primeiro trigo transgênico aprovado para comercialização no mundo, o trigo HB4, tem avançado com o sinal verde para importação em diversos países neste ano, chegando este a ser considerado “o ano do trigo HB4”. Em uma lista crescente de aprovações desde março, que já inclui Colômbia, Estados Unidos, Nova Zelândia e Austrália, além da própria Argentina e do Brasil, a mais recente aprovação veio da Nigéria, há duas semanas. O que esperar, então, do avanço dessa novidade transgênica?
Por parte da Bioceres, empresa responsável por vender a tecnologia e que anuncia as aprovações como boa notícia, trata-se de um cultivo com potencial em climas adversos, já que foi arquitetado para resistir à seca. Em termos econômicos, promete atacar mais pragas com um herbicida, o glufosinato de amônio. Em princípio, o custo para produzi-lo soa mais atraente em relação aos cultivos tradicionais.
Por outro lado, as organizações ambientalistas e especialistas no tema alertam para a alta toxicidade do glufosinato de amônio, da afetação dos solos e da água e da contaminação de variedades não transgênicas por polinização cruzada, vento e outras vias, segundo demonstram estudos. Isso eliminaria as muitas variedades da planta em campos de trigo convencional (ou seja, não transgênico).
Também entra na equação a rejeição dos consumidores aos alimentos transgênicos que incluem em seu pacote tecnológico a aplicação de agrotóxicos. No entanto, apesar do obstáculo comercial e da rejeição inclusive de alguns setores da cadeia produtiva, como os moinhos brasileiros e produtores argentinos, o projeto avançou sem muitos empecilhos.
Na Argentina, como um empreendimento público-privado, o trigo HB4 foi desenvolvido pela equipe da cientista Raquel Chan na Universidade do Litoral, em Buenos Aires, em conjunto com a empresa de biotecnologia Bioceres e financiamento do Estado.
Com um investimento de anos para o desenvolvimento da tecnologia HB4 a partir de um gene do girassol – que, aplicado a outras plantas, confere características diferentes de produção e resistência –, a aposta pelo seu êxito parte, principalmente, e de maneira definitiva, do próprio Estado argentino.
“Observando o processo, é evidente que o Estado argentino é quem realiza o lobby do HB4 e garante o mercado para que se possa comercializá-lo”, opina a doutora em Ciências Sociais Carla Poth, pesquisadora sobre biossegurança e ativista ambiental. “Existe uma aposta muito grande da Argentina para, em 10 ou 15 anos, desenvolver transgênicos, com muito investimento no sistema científico-tecnológico e associado a empresas; neste caso, a Bioceres.”
Com as aprovações aceleradas e o interesse direto do Estado nesse ritmo, é possível que o trigo HB4 prospere nos campos argentino e, dali, para exportação mundo afora, em forma de farinha. Mas há um movimento contrário. Além da oposição de uma parte de produtores da cadeia do trigo, os ambientalistas, cientistas e especialistas relacionados ao assunto têm levado adiante uma batalha para frear o primeiro trigo transgênico do mundo.
Leia mais: Justiça argentina proíbe o trigo transgênico até que seus efeitos sejam estudados.
Cenário mundial
O mercado do trigo HB4 tem se ampliado a um ritmo acelerado desde a aprovação condicionada pelo Brasil, principal comprador do país vizinho, em novembro do ano passado. A demanda pelo cereal mais consumido pela população ocidental aumentou especialmente após a guerra desatada entre Rússia e Ucrânia. Juntos, ambos os países representam 27% da oferta mundial de trigo, segundo a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad).
Na última sexta-feira, um acordo assinado indiretamente entre a Rússia e a Ucrânia pode destravar os grãos parados em portos ucranianos desde fevereiro, no início da guerra. No dia seguinte, o porto de Odessa, na Ucrânia, foi bombardeado. Ainda assim, o acordo pode prosperar, e foi bem recebido pela comunidade internacional, já que representaria um alívio nos preços em um mundo com demandas crescentes de alimentos – como o trigo.
Além dos alertas de uma possível crise alimentar global, em tempos de aprofundamento dos efeitos da mudança climática, um trigo resistente à seca consiste em um atrativo adicional a países que tinham na Rússia e Ucrânia seus principais fornecedores de trigo. É o caso da Nigéria, sexto país mais populoso do mundo e que demanda cerca de 5 milhões de toneladas de trigo por ano para consumo.
Felices de anunciar que Nigeria aprobó el Trigo HB4®? para procesamiento y producción de alimento humano y animal. El país africano es uno de los 10 países importadores de trigo más importantes del mundo ?? pic.twitter.com/5s3fEZHP9l
— Grupo Bioceres (@grupobioceres) July 15, 2022
Antes da Nigéria, o aval ao trigo HB4 veio por parte da Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA), um dos órgão reguladores dos Estados Unidos responsáveis pela avaliação de organismos transgênicos no país. O órgão concluiu que não havia ressalvas em relação à biossegurança da tecnologia, e não solicitou revisões ou estudos adicionais.
Há um requerimento de estudos de impacto e suspensão do trigo HB4 em nível nacional; mas o caso está em processo, com a apelação do governo nacional. No caso da província de Buenos Aires, a medida cautelar pôde avançar com o que se considera um vazio legal: a própria legislação provincial exige a formação de uma Comissão Provincial sobre Biotecnologia e Biossegurança Agropecuária para eventos transgênicos, como é o caso do HB4. A lei, que consta de 2002, nunca foi regulamentada.
Os requerentes contra o HB4 também apelam para o cumprimento do Acordo de Escazú, ao qual a Argentina adere, em relação à proteção ambiental e à saúde humana.
O desenrolar do caso na província de Buenos Aires virá após o período de recesso forense, até o próximo dia 29. Os pleiteadores da causa, assim como os cientistas e ativistas ambientais que se opõem ao HB4 em geral, sabem estar enfrentando grupos poderosos que apostam no transgênico.
Foram solicitados comentários à empresa Bioceres e ao Ministério da Agricultura da Argentina, mas não foram atendidos até o fechamento desta matéria.
Edição: Arturo Hartmann